Vem de longe a paixão pelo futebol, desde o vexame na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966. Aos oito anos, passava férias no sítio onde viviam meus avós maternos, à margem do rio Paraíba, quando aprendi com um de meus tios a “ver” futebol ao pé do rádio.
Ninguém imaginava que naquele 12 de julho de 1966, em Liverpool, berço dos Beatles, Pelé e Garrincha disputariam contra a Bulgária sua última partida, juntos, pela Seleção brasileira. Uma história curta e intensa de 16 jogos, com duas conquistas mundiais. E se os deuses da bola não reservaram melhor sorte para o Brasil, foram justos com os dois maiores gênios da bola forjados nos campinhos de terra batida do interior.
Pelé abriu o placar aos 15 minutos do primeiro tempo e Garrincha ampliou aos 18 minutos da etapa final, ambos em cobrança de falta. Mais tarde, pude rever nas páginas da revista Manchete o que a imaginação me antecipara pelo rádio.
Três dias depois o rei não pôde enfrentar a Hungria, recuperando-se dos pontapés sofridos na estreia. Sem ele, o Brasil foi derrotado por 3 a 1. Tentaria a classificação para a fase seguinte contra Portugal. Mas, com o craque de novo caçado em campo e nove alterações em relação à partida anterior, a Seleção perdeu pelo mesmo escore.
Disseram que o fracasso teria sido castigo por causa da desorganização e da arrogância dos brasileiros (dirigentes, comissão técnica e atletas), convencidos de que eram os melhores e se repetiria o êxito dos mundiais anteriores, realizados na Suécia e no Chile. Engoli assim minha primeira frustração esportiva. Mesmo sem saber o que era “arrogância”, que me soava mais um desconforto na barriga.
Quatro anos mais tarde, já em Alagoas, vi (pela TV) Pelé, Jairzinho, Gérson, Rivellino e Tostão encantarem o planeta com um futebol de outra galáxia. Aos 12 anos, a paixão revelava traços patológicos: obcecado até pelo cheiro de tinta da revista Placar, sabia de cor e salteado nome e sobrenome dos heróis que trouxeram do México, em 1970, a taça Jules Rimet. Mesmo sem saber da dor daqueles que sofriam com o sumiço por aqui de entes queridos.
Doze anos adiante, em 1982, o Brasil, que já havia conquistado três mundiais e se consolidara como principal potência no esporte mais popular do mundo, chegou à Espanha como favorito ao título, com um time excepcional (Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior). Mas, aos 24 anos, meus vizinhos tiveram que ouvir meia dúzia de palavrões felpudos quando da queda da Seleção diante da Itália. Castigo pelos erros individuais e, de novo, pela soberba coletiva.
Vi também pela TV, em 1994, o tetra de Romário, Bebeto, Dunga, Aldair e Taffarel. E, em 2002, os Ronaldos, Rivaldo e Roberto Carlos conquistarem o penta. Porém já não éramos os mesmos: nem a Seleção, nem eu, àquela altura aos 44 anos, com os filhos criados. A vida embrutece paixões, desconstrói castelos. Deixa acesa apenas a lamparina da esperança com dois dedos de querosene, luz opaca e oscilante, como no sítio de meus avós ao cair da noite.
Quase 20 anos depois da última conquista mundial relevante, outro dia ouvi que “a Seleção se distanciou do torcedor". Foi Neymar, 30 anos – idade com que Pelé sagrou-se tricampeão mundial. "Hoje, a Seleção não tem mais a mesma importância, não sei como chegamos a esse estado", disse ele no podcast Fenômenos, apresentado pelo streamer Gaulês e por Ronaldo, hoje dono do Cruzeiro de Belo Horizonte.
Em sua longa adolescência, Neymar não sabe, mas pouca coisa me encanta (ou espanta!) na terra onde os últimos ex-presidentes da “dona” da Seleção (a CBF) perderam o cargo envolvidos em escândalos de corar certos políticos. Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero foram banidos por corrupção ativa e passiva. E Rogério Caboclo, por assédio moral e sexual. Talvez não tenha dado tempo de se igualar, na folha corrida, aos antecessores.
Enquanto isso, a Premier League (Inglaterra), La Liga (Espanha), Bundesliga (Alemanha), Serie A (Itália) e Ligue 1 (França), brilham no topo das ligas de futebol mais organizadas e rentáveis do mundo, saboreando o crème de la crème, inclusive uma porção bem servida por expatriados brasileiros ainda crianças.
Faltam alguns meses para a Copa do Mundo Qatar – 2022. Não sou de rogar praga, mas penso que o Brasil nunca esteve tão próximo de repetir o fiasco ocorrido na Inglaterra, em 1966, voltando mais cedo para casa. O triunfo dos incapazes (ou desonestos) continua sendo apenas uma hipótese estatística. Ainda bem.
Novo vexame pode ser o abano da brasa que ainda queima nos campinhos de periferia onde os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa árbitro e, pouco importa o placar parcial, ganha quem marca o gol da lua – o último ao cair da noite, o único que faz da guerra perdida a vitória arrebatadora.