Na sala de espera da oftalmologista, Lito esperneava no colo de Eulália, sentindo-se ameaçado pela atendente que lhe dilataria as pupilas antes da consulta:
– Vai arder!
– É só uma gotinha – explicava a atendente.
– Lito, pelo amor de Deus não me faça passar vergonha. Você já tem cinco anos!
– Quero não, vai doer!
– Não vai, eu prometo – prometia a atendente, de olho na reação de outras crianças na sala de espera.
– Se você não deixar a moça colocar o colírio – ameaçava a mãe –, vai apanhar quando a gente chegar em casa, visse?
– Deixo não! Vai arder!
– Sente aqui na cadeira que eu quero olhar bem na sua cara!
– Quero não... Mamãe, tire ela daqui!
– Vou contar até três: Lito um, Lito dois...
Espremido pelo peso do "argumento" final, o menino se rendeu:
– Pinga, vai...
A atendente então pôs uma gota de colírio em cada olho. Ele enxugou as lágrimas, sorriu amarelo e arrematou:
– Nem doeu...
Viúva aos trinta e poucos anos de idade, Eulália não queria mais saber de homem a seu lado. Mudou-se para Maceió logo após a morte do marido e lutou muito para criar os filhos, preparando marmitas, bolos e tortas. Com boa freguesia, completava assim a pensão que recebia.
Foi avó cedo, aos 40. E ao ver a nora com o primeiro neto nos braços, despertou a mãezona que ainda cochilava dentro dela, embora não cogitasse parir novamente.
Nelito, seu irmão mais velho, outro pequeno agricultor tangido do meio rural para o cinturão de miséria urbana, percebeu na irmã a sobra de afeto e procurou convencê-la a criar o seu filho:
– Não tô aguentando mais, Lala...
– Vixe... Eu já tenho dez bocas para comer – antevendo o que o irmão queria.
– Onde comem dez, comem onze...
– Né assim não, Nelito!
– Fique com o bichinho, vai... Tô com pena de dar pr'outra pessoa.
– E se a rapariga da mãe aparecer?
– Aparece não... Sumiu de vez...
– Tá bom, mas nem pense que vou alisar a cabeça dele, visse? Vai ter que ser gente na vida...
Assim Lito caiu no colo de Eulália, aos dois anos de idade, abandonado pela mãe biológica, uma morena dos olhos de chimbra que passou algum tempo nos cabarés do sertão alagoano e por quem Nelito ainda tomava umas e outras de paixão e saudade.
Desnutrido, além do baixo peso ao nascer, do desmame precoce no sumiço materno e de uma alimentação pobre em nutrientes, Lito sofrera até ali repetidas infecções, doenças diarreicas e parasitoses intestinais. Quase engrossou a lista de pagãos sepultados nos cemitérios clandestinos de anjinhos do Nordeste.
Eulália tinha consciência de que não deveria castigar ou repreender o menino, por exemplo, pelo xixi na cama. Ele já se sentia meio perdido desde o afastamento do pai, até então sua única referência emotiva. O quadro inclusive poderia piorar com a mudança de ambiente numa fase crítica do desenvolvimento.
Ela viu naqueles programas matutinos de tevê que as mães que possuem filhos com a tal enurese noturna deveriam manter um diálogo aberto com os filhos sobre o problema. Não era necessário repreender ou castigar, e sim, explicar que quando se cresce não se faz xixi na cama.
Um dia, porém, com a enxaqueca a latejar, cansada de lavar lençóis encharcados de urina e colocá-los para quarar no quintal, chamou Lito no quarto e foi direto ao ponto, como fizera antes com os filhos mais velhos:
– Olhe bem aqui na minha cara, seu moleque, se você mijar de novo na cama eu vou cortar sua pinta, visse?!
A vizinha – que não gostava de Eulália – ouviu o carão e a denunciou junto ao Conselho Tutelar, que marcou audiência para a semana seguinte. No dia marcado, a psicóloga escalada nem chegou a abrir a boca. Na sua inocência, Lito falou primeiro:
– Não mijo mais no colchão. E nem doeu.
Lito cresceu. Estudou em boas escolas particulares tal como seus irmãos de criação, porém não obteve resultados parecidos. Era inteligente para algumas atividades, mas tinha dificuldades noutras, notadamente em ciências exatas. Desistiu apenas com o ensino fundamental.
Para desgosto de Eulália, caiu na esbórnia junto com o que havia de pior em termos de colegas de infância no bairro. Muitas vezes chegou em casa sujo, esfomeado, bêbado e fedendo a cigarros. Acabou envolvido com consumo e tráfico de drogas.
Numa tarde como outra qualquer, Eulália viu um camburão nas proximidades de sua casa, mas não desconfiou de nada. Só caiu em si quando acordou no dia seguinte e soube pela empregada doméstica que Lito escapuliu às pressas com uma sacola nas mãos e sumiu sem deixar um bilhete sequer, depois de envolver-se numa tentativa de assassinato ao emprestar sua arma a um colega traído pela namorada.
A mistura de frustração, desencanto e mágoa, esfriou o coração de Eulália de tal modo que não lhe escorreu uma lágrima sequer. “Se arrependimento aleijasse...”, comentaria meses depois com a vizinha, a quem perdoara pela delação.
Há alguns meses, vinte e tantos anos depois do sumiço, Lito reapareceu numa videochamada:
– Mainha, me perdoa...
– Onde cê andou esse tempo todo, menino?
– Aconteceu tanta coisa... Nem gosto de lembrar. Mas agora tô bem, aqui na Bahia. Me casei, tenho uma filha...
– Cê tá careca? Tá fazendo o quê?
– Tem mais de oito anos que sou socorrista do Samu.
– E de saúde, tá bem?
– Já tô meio cego, precisando trocar os óculos.
– Mas tá se cuidando direito?
– O corona me pegou. Quase me mata. Saí anteontem do hospital.
– Meu Deus, como foi isso?!
– Doía tudo. Tive medo de nunca mais ver a senhora.
– Ô, filho! Cê tá bem mesmo?
– Quase. Só de ver a senhora, nem dói mais.
– Tudo poderia ter sido tão diferente...
Lito ficou de trazer sua filha a Maceió, no Dia das Mães, para conhecer Eulália. Ao se despedir, pediu de novo o que aquietava o seu coração no tempo em que tinha medo de alma penada, boi da cara preta e careta:
– Bença, mainha?