Esta semana revi o documentário “Pelé”, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas (disponível na plataforma Netflix), mesmo sabendo que não traz novidades sobre a carreira do Rei do Futebol.
Explicação para a ausência de fatos inéditos: embora o “monstro” tenha emergido, nos confins da Via Láctea, na metade do século passado, quando a televisão ainda engatinhava entre nós, a sua trajetória foi fartamente documentada com a criação do videoteipe nos anos 1960. Seus feitos mereceram ampla cobertura jornalística e grande parte está no YouTube.
Como não existe lenda sem mistério, resta inédito o que é considerado, pelo próprio autor, seu gol mais espetacular, na vitória do Santos por 4 a 0, diante do Juventus-SP, no dia 2 de agosto de 1959. Sobrevive apenas na memória de poucas testemunhas e em nossa imaginação.
Apesar do risco inerente à biografia de pessoas vivas – o passado pode mudar a qualquer momento –, vale a pena rever a saga de um mito em carne, nervos e ossos, já machucado pela brutalidade do tempo, preso ao andador ou à cadeira de rodas, sem o brilho de antes nos olhos.
Contraste tocante para aquele cujas condições atléticas transcendiam as exigências do esporte, isso mexe com quem o viu gingando, correndo, saltando, sorrindo, marcando gols e mais gols. Tanto mais quando o herói entra em cena batucando um dobrado numa caixa de engraxate, a despertar dentro de si a criança que ajudava o pai no provimento da casa, antes de transformar-se num cidadão cosmopolita, conhecido do Afeganistão ao Zimbábue.
O documentário explora algo que Pelé sempre relutou em fazer: opinar sobre a “redentora”. Não mente quando diz que sua vida continuou a mesma depois do golpe militar de 1964. Os produtores até tentam compará-lo ao boxeador Muhammad Ali, que na mesma época bateu pesado no governo norte-americano, por conta da Guerra do Vietnã, como se o ídolo devesse pedir perdão aos brasileiros por não ter agido da mesma forma contra a ditadura militar. Não fazem ideia, óbvio, do que lhe poderia acontecer.
Os contextos de liberdade de expressão em que viviam Pelé e Ali eram bem distintos. Quem agiria de outro modo se tivesse a mesma origem, a mesma trajetória e fosse tido como um semideus em sua aldeia? Seus críticos, no entanto, gostariam de ter visto somente gestos inatacáveis.
É dolorido, sim, para muitas famílias, rever o lendário jogador abraçando o general Médici, após a conquista do tricampeonato no México, em 1970. Na época, os militares sabiam que a imagem do Rei seria impagável para projetar slogans ufanistas do tipo: “Brasil: ame-o ou deixe-o” ou “Este é um país que vai para frente!”.
Os “deslizes”, se houve, relacionados a questões políticas e pessoais (por exemplo, a paternidade não reconhecida de Sandra Regina Machado, cujos traços dispensavam testes genéticos), não diminuem o tamanho do atleta que alcançou nível incomparável, apesar dos vacilos humanos, queiram ou não seus críticos.
Após o fracasso da seleção na Copa de 1966, na Inglaterra, Pelé declarou que nunca mais participaria de um Mundial. O documentário sugere que teria mudado de ideia por causa de pressões dos quartéis. Nada mais falso e injusto! Cineastas também são humanos e vacilam. Na cabeça do Rei, além da coroa, ainda pesavam o vexame da desclassificação e o medo (a mais elementar das sensações) de novo fracasso.
Mas tinha apenas 25 anos. Era natural que disputasse pelo menos a Copa seguinte, independentemente da vontade dos quartéis. A vitória épica na Copa de 1970, portanto, se deve a ele e a um timaço de coadjuvantes (jogadores e comissão técnica) jamais visto na história do futebol. Nunca ao esquadrão verde-oliva, que tinha outras preocupações na alça de mira.
De lá pra cá, a coisa piorou bastante na aldeia. Hoje, o individualismo, a mentira e a vaidade saltam aos olhos em todos os quadrantes da cena nacional, inclusive no futebol, aqui por conta da overdose de dinheiro, para dizer o mínimo, de procedência duvidosa.
Não se sabe se o jogador que está na vitrine, atuando como titular de um time, é aquele que possui o empresário mais influente ou o atleta mais talentoso, mas que se recusa a jogar esse jogo. E isso contamina o ar até nas categorias de base, onde pequenos aspirantes à fama e à fortuna passam a inalar desde cedo dessa imundície.
Para alguns pavões misteriosos, com seus cortes bizarros de cabelos, barbas e sobrancelhas, brincos, piercings e tatuagens até sobre a última vértebra da coluna dorsal, ter um número expressivo de seguidores e de curtidas em posts nas redes sociais é mais importante que um gol de bicicleta no minuto final de uma partida, ou servir de exemplo para uma criança com um par de chuteiras nos pés e a cabeça nas nuvens.
Por isso, bateu uma vontade danada de rever o documentário, em especial o gol do moleque chorão, aos 17 anos, na final da Copa do Mundo contra a Suécia, em 1958: ele recebe a bola pelo alto, amortece no peito, dá um chapéu no zagueiro, toca por baixo do goleiro e corre para receber o abraço dos parceiros. Para espanto do resto do mundo.
Como atleta dentro das 4 linhas indiscutivelmente o melhor de todos os tempos, como pai e homem um canalha e como cidadao e referencia para a geracao da epoca, fez o que era "politicamente correto" para sua imagem. Nao diferente de tantos outros.
ResponderExcluirNão tenho dúvidas que muitos que atiram pedras em Pelé, por força de algumas escolhas fora das "quatro linhas", se estivessem em seu lugar não teriam agido de forma diferente. Em campo o pai de Edinho jamais será superado.
ResponderExcluirInúmeros gênios, das mais diversas artes, não registraram vida exemplar, pessoal e profissionalmente. Pelé não foi exceção à regra. Seus feitos em campo, entretanto, como o texto evidencia, foram gigantes e isso fez com que as "mazelas" não denegrissem tanto sua imagem. Acredito que alguns fantasmas psicológicos certamente o atormentam em muitas noites, afinal, mesmo sendo gênio, é feito de carne e osso.
ResponderExcluirQue atire a primeira pedra quem nunca cometeu um deslize, principalmente nos alvores da juventude. Vida é a soma de tudo o que fizemos de nós até aqui. De vez em quando se dá um subtotal
ResponderExcluire se verifica se está negativo ou positivo para os devidos ajustes. No caso do Pelé, entendo que tem mais do que menos.
Pelé, o atleta do século 20! Isso basta para defini-lo.
ResponderExcluirBom Dia, caro amigo Hayton. A vaidade, na maioria das vezes, faz com que o ser humano exagere em situações condenáveis pelos admiradores. Para quem está na "vitrine", qualquer suspiro fora do ritmo, mesmo que seja no samba, pode afetar os pulmões... Alguns precisam desses "suspiros" para serem notados. Outros nem tanto. Mas é isso... Que o rei viva para alegria de seus súditos...
ResponderExcluirSem dúvida o melhor jogador de todos os tempos. Craque demais!
ResponderExcluirComo ser humano poderia ter sido um pouco melhor.
Nunca se posicionou contra a ditadura, não sei se por medo ou por concordar com ela.
Zezito
Apesar de futebol não ser a minha praia, você como sempre, da show em mais uma das suas cronicas. Fala com tanta propriedade que só quem conhece de verdade o faz. Pelé será sempre o nosso rei, até para mim que só o via jogar na copa do mundo.
ResponderExcluirPelé foi o maior na sua arte, sem dúvida! Na vida pessoal errou feio. Me faz lembrar que até o Rei Davi aprontou as suas mas continuou sendo o homem segundo o coração de Deus. Vitorioso mas atormentado até o final da vida. A história registra tudo!
ResponderExcluirFelizes os que tivemos a oportunidade de vê-lo jogar ao vivo. Torciamos para que a bola chegasse nele, pois já começávamos a gritar aplaudindo a jogada que ainda iria acontecer. Pena o desbunde que virou o futebol. A arte deu lugar à barbaridade, como diriam os gaúchos.
ResponderExcluirPerfeita sua crônica meu amigo, vou dizer mais o que." Pelé O MELHOR" em sua arte, trabalho, profissão....
ResponderExcluirSe este é “UM PAÍS QUE VAI PRÁ FRENTE”, eu não sei. Meu ceticismo com o que vem acontecendo não me permite acreditar nisso.
ResponderExcluirNa economia, damos voltas. No combate à corrupção, damos voltas. No futebol, damos voltas.
Se é devagar que não se vai longe, então, estamos a prontos para chegarmos a lugar nenhum.
Melhor ficar com o Pelé, o craque, praticamente uma unanimidade, do que com o Edson. Mas isso, a meu ver, só diz respeito a ele.
Descontadas raríssimas exceções, o mundo futebolístico está povoado de Edsons, e de quase ninguém que se aproxime de Pelé.
Hayton, vc realmente joga em todas posições, suas crônicas falam de tudo...futebol, cachaça, mulher, poeta, política, doido, humor... além de uma boa leitura, é um aprendizado... Haja baú e memória prá tanta matéria-prima! Parabéns!
ResponderExcluirTiberio
Belo e irretocável perfil!
ResponderExcluirBobagem buscar a perfeição, que não está em ninguém.
Apenas os ídolos mortos precocemente passam a impressão da infalibilidade.
Como atleta de futebol, o maior! Definitivamente não
ResponderExcluirera desse planeta!
Como terráqueo é um ser humano
como qualquer outro...
O Rei dos Reis. O maior de todos. Sou favorável a aqueles que analisam a situação politica da época, a formação, a idade do Pelé e a alta influência que o governo militar tinha em todas as áreas. Principalmente na que o colocaria em evidência, o futebol.
ResponderExcluirVida longa ao nosso rei do futebol. E que saibamos separar o homem do seu reinado.
ResponderExcluirAbraços a todos.
Que abordagem legal, realmente o Rei foi o “cara” dentro de campo, fora dele, alguns deslizes, entretanto não é o único, Garrincha, Maradona, Almir Pernambuquinho, Edmundo, dentre outros, no mundo do futebol, também podem ser lembrados por atitudes que macularam as suas biografias fora das quatro linhas.
ResponderExcluirA Vida só se dá para quem se deu!
ResponderExcluirPelé merece a lembrança, com certeza apresenta com o seu exemplo a ser seguido e outro não.
Resisti muito a postar um comentário aqui, porque sei que futebol desperta paixões inusitadas. Em se tratando de Pelé então!!!!
ResponderExcluirReconheço que foi um extraordinário jogador, um dos maiores, em todos os tempos, mas jamais vou achar que é absolutamente inalcançável, insuperável, como ele mesmo se pretende.
Em véspera de Copa do Mundo, até hoje em todas, ao ser perguntado por algum repórter se aquele torneio poderá protagonizar o surgimento de "um novo Pelé", responde invariavelmente - "Não, Pelé é coisa de Deus, não haverá outro".
Certamente a humanidade não conheceu alguém mais pretensioso.
E o pior, como ser humano é quase uma escória, assim penso.