quarta-feira, 10 de maio de 2023

O “bem-amado” e as comadres

Ela e ele (um ex-parlamentar, por sinal, muito bem de vida) moram em Curitiba-PR, onde criaram os filhos, os netos crescem e a vida segue, só lhes restando agora, aposentados, implicar um com o outro o dia todo, todo dia. 


Esta semana retomaram uma briga antiga. Diz ela que ele vive dando em cima das mulheres mais jovens que frequentam um pub aconchegante e descolado, com decoração vintage, que serve uns coquetéis e petiscos maravilhosos. Ele nega. Garante que ela está ficando louca, vendo tranças e chifres em cabeça de pulga.

 

Ontem, ela buscou um ombro amigo numa videochamada para sua comadre Márcia, mulher de meu amigo Luizão, que a tudo ouviu porque o tom da prosa foi tão alto que o impediu de cochilar seus 20 minutos pós-almoço.

 

– Ele pensa que sou besta! – dizia ela. – Sou feito aquela que cantava "sinto quando alguém te interessa, mesmo quando finges que não vês..." 

– Calma, comadre! – ponderava Márcia –. Vai me dizer que nunca olha pra ninguém além de seu marido? Olhar não arranca pedaço de ninguém. Lembra quando você me disse que era difícil admitir que Harrison Ford ronca, que Richard Gere arrota, que Brad Pitt peida?

– Epa! Assim, não! Artista não conta...  

– Vai me dizer então que não existe nenhum gatão grisalho no seu prédio? Você não fala nada pra não desagradar o compadre, não é?

– Desagradar, não. Se eu elogiar alguém, na primeira bunda que aparecer na nossa frente ele vai esquecer que estamos juntos há mais de 40 anos. O bicho é safado mesmo. E quanto mais velho, mais sem-vergonha fica!

 

E veio à tona o estopim da encrenca: o noticiário sobre o imbróglio envolvendo o prefeito da cidade de Araucária-PR, que, no frescor de seus 65 anos, acaba de se casar com uma moça de 16. Dois dias antes do casório, ele havia nomeado a mãe da noiva como secretária de Cultura e Turismo. 

 

Imagem: Reprodução/Instagram 

Deu nos jornais que se trata do quinto casamento do insaciável alcaide. Reeleito com 47 mil votos, o bem-amado teria recentemente declarado à Justiça Eleitoral dispor de mais de R$ 14 milhões de patrimônio. Nada mal pra quem está começando uma nova vida a dois.

  

Aqui, legalmente é possível se casar aos 16 anos com autorização do responsável – a menina completou a idade mínima quatro dias antes de se casar. “Mas a ONU considera casamento infantil qualquer união com menor de 18”, argumenta a comadre de Márcia e Luizão. “Isso é uma violação de direitos. Pedofilia, falando português mais claro”, afirma.

 

A suposta prática de nepotismo é que deu visibilidade nacional ao caso. Após a repercussão, o prefeito se viu emparedado e cuidou de exonerar a sogra com menos de duas semanas após empossá-la no cargo.

 

Luizão me conta que, surfando no noticiário enquanto as comadres conversavam, descobriu que o Ministério Público do Paraná investiga a denúncia de nepotismo. Também existe uma análise sigilosa – seja lá o que isso significa – sobre o casamento.

 

O viril burgomestre concedeu entrevista ao jornal "O Popular do Paraná" declarando que o casal está bastante feliz. "Minha esposa me faz muito bem, e eu faço bem a ela...”. Nas redes sociais, ela retribuiu: disse não se importar com a repercussão do caso. "O que importa, sinceramente... É que não nos importamos!".

 

Ai de quem duvidar desses corações apaixonados que decidiram ficar juntos! Arrisca-se, no mínimo, a ser processado por preconceito contra idosos. Afinal, o etarismo (palavrinha na moda, hein?!) pode ser enquadrado como crime de injúria, quando alguém com mais de 60 anos tem a sua honra ou dignidade ofendidas.

 

A mídia, arvorando-se no papel de termômetro social, avalia a temperatura de uma possível investigação por exploração sexual, mas só na hipótese de o Ministério Público encontrar indícios robustos – de novo, seja lá o que isso significa. 

 

Uns dizem que, apesar de esse tipo de união ser legalmente permitido no Brasil, uma menina de 16 anos sequer tem o corpo (e a mente) completamente formado e, por isso, não há que se falar em consentimento. Outros defendem que não se pode acusar de ambição material uma criatura inocente, sem maldade.

 

Mas para a comadre de Márcia, no entanto, "houve, sim, jogo de interesses, pois a mãe da ninfeta foi nomeada pouco antes do casamento. E se o sujeito recompensou a mãe por autorizar a filha a se casar, teve exploração sexual..."

  

Ao perceber que meu amigo Luizão estava acordado, ouvindo o desenrolar da prosa, Márcia tenta envolvê-lo:

– E você, meu bem, o que acha disso?  

– Sei lá! Não vou me meter em conversa de comadres, mas...

– Mas o quê?

– Pode atrapalhar os planos do compadre. Outro dia ele me contou que será candidato a prefeito, aqui na região metropolitana, nas próximas eleições...

– Só capando aquele velho safado! – despediu-se a comadre, lacrando a videochamada. 


E Luizão, enfim, pôde cochilar. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Trocando em miúdos

Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo   governo de inspiração fascista desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa. 

Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa. 

 

A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula, que participou da cerimônia junto do presidente português, Marcelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Antonio Costa.

 

O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, dentre outros.

 

Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples — pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. 

 

Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da Jovem Guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico. 


Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo.Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni.

 

Reprodução: Redes Sociais

Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá,
quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.

 

Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho — o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo —, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

 

Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais. 


Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

 

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

 

Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz-de-conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.

 

Chico, assim como você e eu, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz-de-conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos.

 

Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz-de-conta num sanatório geral de banguelas e caolhos. 

 

Trocando em miúdos, estou vendo a hora de Chico pedir para deixarem em paz o seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! — apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar... Pode esquecer.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

O espírito das coisas

Admiro as pessoas que simplificam hábitos e pertences ao estritamente necessário. Não sou minimalista, longe disso, mas já renunciei a muitos bens materiais e tento tocar a vida mais centrada em experiências com poucas coisas.

 

De novo, não sou minimalista. Ainda estoco comida e parte acaba no lixo, fora do prazo de validade. Isso é loucura num país onde um terço da população não faz três refeições por dia, mas já estou quase curado. Talvez o mal remonte aos períodos de escassez de meus ancestrais, mistura caboclo-indígena que sobrevive desde o Brasil colônia.


Fotografia: Dedé Dwight

A esta altura da travessia, deve-se levar no “barco” apenas a carga leve das paixões que vêm de dentro, como diria o menestrel de São Bento do Una. No meu caso, eis aqui o espírito das coisas:


Óculos – Primeira que pego ao acordar e última que largo na cabeceira antes de dormir. Ninguém consegue mantê-los limpos por mais de 10 minutos. Desconfio de que minha cabeça cresceu em torno deles e que a única utilidade prática das orelhas foi servir de suporte para a armação. 

 

Escova dental – Quando criança me ensinaram que sua função seria evitar cáries e remover a placa bacteriana. Mais tarde, que não deveria ser usada com movimentos bruscos, sob pena de remover inclusive os heróicos cacos da resistência. Nunca aprendi direito como usá-la. Aliás, aprendi que só em filmes e novelas os casais se beijam de língua assim que acordam e não engulham.

 

Chinelo de dedo – Mais que um calçado despojado para se usar em casa ou na praia, vejo com prazer que vem ganhando adeptos, sobretudo nas regiões tropicais, porque arejam os pés, diminuindo o risco de chulé e frieiras. Ando pensando seriamente em usá-lo com paletó e gravata no próximo casamento que for convidado. Em último caso, um par de alpercatas cai bem em qualquer situação.

 

Bermuda de cordão – Até agora não se descobriu nada que se ajuste melhor às oscilações da bolsa (abdominal, bem entendido!), nesse vaivém doido dos ponteiros da balança, tentando administrar uma barriga com mais de meio século rendida ao pecado da gula. 

 

Liquidificador – Se o café da manhã não incluir vitamina de abacate ou banana, alguma coisa está fora da ordem mundial, diria o poeta. O hábito vem do tempo em que minha mãe abastecia até a tampa o tanque de combustível dos filhos antes de irem à escola, alguns ainda lambendo os bigodes leitosos.

 

Tablet – Para mim, tão multifuncional quanto um computador. Já esqueci até que escrever um texto exigia papel, caneta, mesa, cadeira etc. Correm agora sério risco de extinção aparelhos de TV, boa parte dos álbuns de fotografias e livros que nunca reli.


Celular – Complementa o tablet como tapioca e queijo. No meio da rua, serve de bússola e de bloco de anotações. Mesmo que eu já não faça (ou receba) nem meia dúzia de ligações ou mensagens por dia.  

 

Cortador de unhas – Passei a valorizá-lo ainda mais desde a partida de um amigo, vítima de AVC, que tentava aparar as unhas dos pés. Pena que o inventor da “coisa” não a concebeu mais funcional, pelo menos em relação aos pançudos. A dificuldade no manuseio está no comprimento e na curvatura, em relação ao cabo. Precisava ter acoplado um periscópio.  

 

Ar-condicionado – Há quem duvide da existência do ser humano sobre a Terra antes do surgimento desse aparelho mágico, tanto mais quando recordo, vagamente, de que já usei terno completo, camisa de mangas compridas, gravata, cueca, meias e sapatos. Inclusive no trânsito engarrafado, ao meio-dia, nas ensolaradas Maceió, Recife e Salvador.


Rede de dormir – Desaparece com minhas dores lombares em questão de minutos. Com suas indiscutíveis propriedades anestésicas, substitui com vantagens não só anti-inflamatórios, como colchão, poltrona e cadeira de balanço, trazendo, no meu caso particular, relaxamento e completa indiferença ao que se passa nos arredores.


Tapa-olhos – Já se foi o tempo em que a escuridão me metia medo (o obscurantismo, sim, ainda me assusta). Dormir sem penumbra absoluta, agora, não é de todo repousante. Sou dos que acreditam que a diminuição da luminosidade induz a produção de melatonina, o hormônio do sono. Tanto que o cochilo à tarde pode ser reparador, mas é outra coisa quando se usa tapa-olhos e cpap (do inglês, significa pressão positiva contínua nas vias aéreas).

 

Cpap – É um troço utilizado no tratamento da apneia do sono para impedir a obstrução das vias respiratórias e evitar o ronco. Exalto-o (em nome inclusive de todos os usuários que conheço) pelo sacrossanto resgate do direito de voltar a sonhar durante o sono, de sobrevoar de novo a infância e até mesmo antigos ambientes de trabalho. Quem usa sabe que nem copo d’água gelada depois de uma colher de doce de leite dá tanto prazer. É viciante.

 

E você, já parou pra pensar na lista de coisas realmente indispensáveis no seu barco a essa altura da travessia? Só de pensar, acredite, já reduz bastante o peso. 



quarta-feira, 19 de abril de 2023

Durango, paçoca e tranca-portas

De nada adiantou, semana passada, o comunicado do gabinete do líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, 87 anos, com o pedido oficial de desculpa diante da revolta de internautas do mundo inteiro com o vídeo em que o budista beija um menino na boca e, em seguida, pede que lhe chupe a língua. 


Quando soube do ocorrido com o carismático religioso defensor da paz, da compaixão e da solidariedade, meu velho amigo Urtiga lembrou que o clero de Portugal, país fortemente católico, abusou de quase 4.500 crianças desde 1950, segundo uma comissão independente, ao anunciar, no ano passado, suas descobertas após ouvir centenas de relatos de vítimas. 

 

Esses relatos têm surgido com espantosa frequência. O Vaticano anda cada vez mais pressionado a enfrentar com o devido rigor os escândalos, alguns capazes de corar rufião na zona de garimpo na Amazônia.

 

Ele me disse que a coisa vem de longe, não é de hoje. Que havia coroinhas nas igrejas de tudo que é canto do Brasil. Que se orgulha de ter jogado no time durante uns três anos.

 

Reprodução: Redes Sociais

Coroinha é aquele que ajuda o sacerdote no serviço litúrgico da missa. Não sei do que se ocupa hoje em dia, mas não deve ter mudado tanto. Quase não tenho ido à igreja. Apenas em casamentos, missas de sétimo dia e olhe lá. Isso com relação a terceiros. No meu próprio caso, nem considero a hipótese.  

 

Ele me contou que vestia uma batina encarnada e uma espécie de jaleco branco (sobrepeliz) sem nada especial nas missas de rotina. E bordado, em casamentos, Páscoa, Missa do galo e outras efemérides.

 

Tentava cantar músicas cujas letras nunca conseguia decorar, fazendo articulação bucal para fingir (feito as dublagens dos filmes no SBT). Isso quando não encaixava, por conta própria, uma letra qualquer criada ali mesmo. 

 

Não foi a fé que o levou à prática do acólito (calma aí, não é o que parece!). Devotou-se à causa para escapar da mãe, que lhe cobrava estudar o tempo inteiro. Além disso, era um “durango” – menor carente de mesada, duro, liso – e recebia do pároco uns trocados pra comprar paçoca de amendoim na volta pra casa.

  

Na Semana Santa, o arcebispo era esperado para a cerimônia do "lava-pés". Antes da chegada, uma senhora com cara de nojo revisava as unhas dos meninos e avaliava a qualidade do ar conferindo, in loco, a possível existência de fungos entre os dedos dos “apóstolos”. E sempre aparecia um candidato disposto a ocupar a vaga de algum excluído por razões sanitárias.

 

Durante a cerimônia, o bispo jogava água sobre os pés da meninada, encenava uma lavagem numa bacia sem água nem sabonete, em seguida simulava um beija-pés, que na realidade se dava sobre o seu anel. Depois, punha um envelope na manga da túnica contendo determinada quantia (digamos, algo como 100 reais). Os “durangos kids” exultavam.

 

Tudo isso escorreu pelo ralo quando se descobriu que o padre da paróquia vinha pedindo a um daqueles moleques que o ajudasse a fechar as portas, diariamente, após a missa das 19 horas. 

 

Diferentemente de quase todos os “durangos”, o prestimoso menino começou a esnobar, usando boné e tênis Conga, além de andar com cédulas de 10 no bolso.

 

Um dia, dois irmãos gêmeos que pretendiam ingressar na confraria dos coroinhas, porque também eram “durangos”, foram escalados por Urtiga para a missão secreta de investigar o que acontecia naquilo que, à época, chamou-se de “rito do tranca-portas”. 

 

Os intrépidos detetives se esconderam no confessionário, perto da sacristia, ao final da última missa de uma quarta-feira. Ao verem circular na área o moleque ostentador, seguiram-no com a respiração presa, de olhos bem abertos e na ponta dos pés. 

 

Meia hora depois, foram até Urtiga prestar contas da missão: o suspeito, na verdade, apenas ajudava o sacerdote a tirar as vestes eclesiásticas e, em seguida, cerravam as portas da casa paroquial. Nada mais. 

  

Só agora, depois do insólito beijo do líder religioso budista do outro lado do mundo, Urtiga se deu conta de que, dois meses após a investigação, as atividades dos coroinhas foram suspensas por tempo indeterminado. Embora os gêmeos nunca mais tenham se queixado da falta de dinheiro.

 

Quando me relatam um caso, tim-tim por tim-tim, trazendo uma visão panorâmica de todos os ângulos e personagens envolvidos, fico com um carrapato graúdo detrás da orelha. Sei lá!

 

Mas preferi não esticar a conversa. Vai que meu amigo Urtiga, que até hoje não dispensa uma paçoca de amendoim, se ofende.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Cores do jogo

A camisa da Seleção brasileira ainda é tida como uma das mais “pesadas” do futebol mundial, status conquistado por craques lendários e cinco títulos mundiais. Mas nem sempre o Brasil jogou com a “amarelinha”.

 

A primeira era branca, com detalhes em azul na gola e nas mangas. Mas já teve que usar outras, como uma vermelha, em 1917 e 1936, e as do Boca Juniors e Peñarol, numa época em que não havia uniformes reservas.

 

Reprodução: Redes Sociais

Mudou após a trágica derrota para o Uruguai, em 1950, na partida final da primeira Copa do Mundo realizada no Brasil. A CBD (precursora da atual CBF) resolveu trocar as cores e, antes do torneio seguinte, na Suíça, em 1954, um concurso organizado pelo jornal O Correio da Manhã definiu o novo modelo de uniforme, inspirado nas cores da bandeira nacional: camisa amarela com detalhes em verde, calção azul e meias brancas. 

  

Talvez por conta do que o jornalista Nelson Rodrigues chamou de “Pátria de chuteiras”, expressão que, mais tarde, a imprensa e a ditadura militar tomariam emprestada para mobilizar o povo em torno dos semideuses do “País do futebol”.  


Reprodução: Redes Sociais

Ou porque a execução de hinos antes das partidas de Copa do Mundo demarca a origem de cada time, remetendo os torcedores a símbolos nacionais, mesmo aqueles, como eu, que questionam o mofo e a poeira de certas expressões (de “raios fúlgidos”, “impávido colosso” ao “lábaro que ostentas estrelado”).

 

Implico também com as cores do uniforme da Seleção. Inspirado numa bandeira que representa a independência, a soberania e a unidade da Nação, foi concebida, há 133 anos, a partir dos olhos do colonizador português.  

 

O verde vem do escudo da família real de Bragança e não representa mais nossas florestas. O Brasil tornou-se fomentador de queimadas, um dos seis países do mundo (ao desonroso lado de Indonésia, Bolívia, Venezuela, Congo e Malásia) responsáveis pelo desmatamento de 60% da área total de matas que sumiu do Planeta de 1970 para cá. 

 

O amarelo remete à cor da casa de Habsburgo, da imperatriz Leopoldina, e também ao ouro, metal nobre e vil que, atualmente, nos impõe severos prejuízos com o garimpo fora de controle, inclusive nos territórios indígenas remanescentes, devastados pela ação de dragas e retroescavadeiras, resultando erosão e poluição de rios e solos pelo uso de mercúrio. Sem contar a tragédia humana da fome, da exploração sexual e de toda sorte de doenças “brancas”.

 

O azul e o branco, presentes na bandeira do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, um dia já traduziu o céu estrelado do Rio de Janeiro, onde agora só se fala de crime organizado e enchentes transbordando cursos d’água assoreados por derramamentos de óleo, além de favelas e condomínios desmatando encostas, num círculo de flagelo anualmente anunciado.

 

Em 2022, a jornalista e escritora Milly Lacombe defendeu em sua coluna no UOL “uma campanha por uma camisa preta... De um preto jamais visto, jamais usado por nenhuma outra seleção... Uma camisa preta que evoque os horrores dos quase 400 anos de escravidão para que, enfim, possamos começar a superá-los. Uma camisa preta que abra espaço para que a verdadeira história desse país seja contada...”.

 

Prefiro a mistura de branco e preto (diga-se, indevidamente chamados de cores), nada mais que a presença ou a ausência de luz. O branco é luz pura, reflexão abrangente de todas as cores. O preto, a total ausência de luz, quando as cores são absorvidas mas não se refletem. 

 

Defendo uma camisa simples, cinza, entre o branco e o preto. Um cinza grafite (inclusive no calção e nas meias) que nos remeta à ponta do lápis que faltou na alfabetização de mais de 10 milhões de brasileiros, segundo o Serviço Social da Indústria (SESI), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2019.


A identificação do atleta (apelido e número) seria em vermelho, como o sangue derramado há mais de meio milênio de história pelas minorias sociais em situação de desvantagem cultural, econômica, étnica, política e religiosa.

 

Se quiserem uma referência histórica ao colonizador, cairia bem uma faixa branca diagonal atravessando o peito, símbolo das grandes travessias marítimas que levaram ao descobrimento do Brasil. Com uma cruz de malta na altura do coração, evocando o primeiro clube brasileiro a aceitar a participação de negros, pardos e caixeiros viajantes. 


Reprodução: Redes Sociais

Há 99 anos, aliás, esse clube se recusou a excluir pretos e pobres de seu grupo de jogadores, ato que ficou conhecido como “Resposta Histórica” à condição estabelecida para inscrição na Associação Metropolitana de Desportos Atléticos do Rio de Janeiro .

 

Ano que vem, no centenário desse marco histórico, seria arrebatador ver a próxima Seleção brasileira perfilada antes de uma partida eliminatória de Copa do Mundo, cantando, à capela, “Maria, Maria”, de Fernando Brant e Milton Nascimento.

 

Afinal, é a cinza (e o sangue) dessa gente humilde, “que traz na pele essa marca e possui a estranha mania de ter fé na vida”, que pode e vai virar esse jogo sem graça que se arrasta por aqui. No braço, nem que seja no ultimo lance da prorrogação.


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Parafuso frouxo

Nada define melhor as coisas do Interior do Nordeste do que o verso e a prosa matuta que brotam no universo popular, refletindo cenários e circunstâncias numa linguagem singular. Em tudo que é lugar existe pelotões de soldados bem fardados no ofício, de repentistas a cordéis. Passam de mil os prosadores (e poetas) nesse pedaço de mundo, muitos de pouca leitura mas dotados de inegável talento.

 

Um deles é Jessier Quirino, “arquiteto por profissão, poeta por vocação e matuto por convicção”, como se autodefine – no que estamos concordes –, que conheci em 1997, quando o convidei para trocar dois dedos de prosa com os gerentes do Banco do Brasil que atuavam em Pernambuco.

 

Paraibano de Campina Grande, Jessier optara por viver em Itabaiana – terra de Sivuca e Zé da Luz, o poeta –, conciliando com as atividades de Doró, como carinhosamente chama sua mulher, arquiteta como ele. 

 

Dotado de uma memória espantosa, o que mais me impressionou nele foi a presença de palco, a debulhar espigas de saberes que iam de uma narrativa matuta, carregada de gíria, humor, neologismo, sarcasmo e sotaque, até cantigas do mais genuíno regionalismo. 

 

Fui impactado pelas “imagens” de sua obra, pela fartura de nuances do ambiente, de tramas e personagens entrelaçados, quando o vi declamar “Parafuso de cabo de serrote”, poema onde descrita uma bodega sortida, cujo desfecho nunca esqueci:

 

“(...) Tem cabides de copos pendurados

E um curral de cachaça e de conhaque

Logo ao lado se vê carne de charque

Tira gosto dos goles caneados

Pelotões de garrafas bem fardados

Nas paredes e dentro dos caixotes

Uma rodilha de fumo dando um bote

E um trinchete enfiado num sabão

E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote (...)”

 

Reprodução: Redes Sociais

Depois da "palestra", quando nos sentamos pra conversar, eu quis saber de seu processo criativo. Ele me contou de sua meninice no Interior, de ser devoto da sabedoria e da simplicidade do sertanejo, coisas que o fizeram um “prestador de atenção das ‘aconteçencas’ do mato”. 

Nunca mais deixamos de nos falar (bem menos do que eu gostaria, claro!). Descobri, inclusive, que sua sogra (Celinha) foi amiga de infância de minha mãe, a ponto de dona Pixitita, mãe de Celinha e avó de Doró, haver tentado, em vão, adotar Doça (Eudócia, minha mãe).

 

Reprodução: Redes Sociais

Com oito livros publicados, Jessier segue intercalando recitais em teatros, escolas, universidades e eventos corporativos, com seu “Papel de Bodega”, canal no YouTube onde, ao pé do balcão, declama poemas autorais, conta causos e recebe figuras caras à cultura brasileira.
 

Conversando com ele, numa tarde dessas, soube de um sujeito com um parafuso frouxo que, toda vez que se entupia de cachaça, ameaçava tomar veneno, cortar os pulsos, furar os olhos, mas nunca chegava às vias de fato graças à intervenção de terceiros.

 

Bêbado e tocado por uma paixão devastadora, certa vez o sujeito sobe numa dessas torres que existem em toda cidade interiorana disposto, numa visão “buarqueana”, a flutuar no ar como se fosse um pássaro, a agonizar no meio do passeio público e a morrer na contramão, atrapalhando o sábado.

 

Em minutos, o povo se aglomera em oração a pedir para que não cometa a desgraça. Ele, no entanto, resoluto como um camicase, faz o derradeiro apelo: que lhe mandem por uma corda alguns pertences de estima.

 

E iça uma gaiola, um rádio de pilhas e uma bicicleta em petição de miséria, parceira de andanças e confidências nos raros momentos de sobriedade.

 

Nisso, surge sua enteada no meio da multidão, de banho tomado, cheirando a água de colônia, trajando um shortinho e uma blusa “tomara que caia”. E, ainda que de longe, estende os braços ao padrasto, tentando evitar a doidice: “Não faça isso com mainha! Desce daí, vamos conversar...”

 

Mas o bêbado, nem-nem! Com o olhar dos desiludidos, prepara-se para o salto no escuro da eternidade. 


É quando aparece sua esposa, uma baixinha da cara de lua cheia, de buço e sobrancelhas grossas, braba feito uma gata parida, gritando: “Se quer morrer, cachaceiro safado, pule logo! Ou pare com essa cachorrada, desça daí e pegue o beco pra casa, agora!”

 

Um doidinho – toda cidade do Interior tem o seu, com um parafuso mais ou menos frouxo –, que a tudo assistia calado, só observando o desenrolar do drama, levanta-se do meio-fio, balança a cabeça, ergue o dedo indicador e opina com a segurança dos letrados no tema: “Oxente! Se nem pra moça ele desceu, vai descer pra essa aí?” 

 

Mas o infeliz desistiu. Jurou à esposa que não quer mais saber do cabide de copos pendurados nem do curral de cachaça da bodega. E foi-se embora costurando a rua, debaixo de vaia da molecada. 

quarta-feira, 29 de março de 2023

Sem motivo, juro!

Você não deve condenar os invejosos. No lugar deles, certamente também iria querer ser você, concorda? Se eu tivesse sido poderoso como meus filhos pensavam, rico como minha mãe achou que eu seria e irresistível como minha mulher ainda tem certeza de que sou, não vou negar: eu teria inveja de mim.

 

Você já ouviu falar na expressão inveja masculina? Pode parecer estranho à primeira vista e o motivo seria que esse sentimento sempre foi associado às mulheres. Nada mais sexista. É outra forma de colocar as mulheres em posição de inferioridade em relação aos homens.

 

Dito de outra forma, é como se a inveja não fizesse parte do acervo de emoções do homem, porque ele seria um ser “completo”. Não é assim. Manifesta-se quando qualquer pessoa se sente ameaçada diante da possibilidade, fantasiosa ou não, de ser preterida na escolha de determinado cargo profissional, ao ver a pessoa amada com outra, essas coisas. 

 

Enfim, estou seguro de que a inveja também é coisa de cabra macho. E nem preciso me reportar às cenas explícitas que testemunhei no mundo corporativo durante mais de 40 anos trabalhando numa grande empresa.

 

Acredite se puder, mas já fui alvo desse sentimento da pior forma possível: vindo de um dos maiores expoentes da música brasileira, praticamente uma unanimidade em termos de qualidade e sofisticação musical. 

 

Não vou citar o nome – você vai acabar descobrindo – para não reabrir feridas mal cicatrizadas no coração de um cara que sempre admirei, ainda inconformado com algo ocorrido há exatamente 10 anos. 

 




Talvez você o conheça como maestro, pianista, compositor e cantor, tão apaixonado pela Mata Atlântica que deixou transbordar todo o seu amor à natureza em belíssimas composições, que ganharam o mundo na voz de grandes intérpretes. 

 

Em 1962, eu tinha apenas quatro anos de idade, crescia no Sertão paraibano como qualquer moleque cabeçudo, desdentado e feio. Não sabia nada do que estava acontecendo no Rio de Janeiro quando ele e um certo poeta, amigo dele, batendo pernas na orla de Ipanema, se depararam com uma cena trivial: uma menina que caminhava pela areia a caminho do mar.

 

Digo trivial porque outras pessoas devem ter visto a cena e não enxergaram nada de mais, porém as curvas e os traços daquela menina flecharam o coração do invejoso e de seu amigo poeta, que decidiram ali mesmo compor uma canção para eternizar o instante no mais famoso bairro da Zona Sul carioca.  

 


A garota se tornaria nacionalmente conhecida somente em 1964, quando iniciou sua carreira de modelo trabalhando para revistas e agências de publicidade. Depois, chegou a participar de novelas de televisão e apresentou o programa “Ela”, nos idos de 1984. Atuou ainda como empresária e escritora de sua autobiografia.

 

Você deve estar curioso sobre o porquê o invejoso, que se mudou para o outro plano em 1994 – onde encontraria o seu amigo, desaparecido havia 14 anos –, teria inveja de mim, um reles bancário que nunca morou no Sudeste nem aprendeu a tocar um mísero instrumento musical, fosse cuíca, prato, reco-reco ou tuba.

 

Em verdade vos digo que tudo não passou de um lamentável mal-entendido por parte dele. Torço pela chegada do momento em que, pessoalmente, poderei explicar o ocorrido, mas que fique bem claro: que isso se dê daqui a 30 anos, no mínimo.  

 

Falando sobre ele, aliás, há pouco tempo a citada garota, numa entrevista na TV, revelou que foi pedida em casamento na época da criação de “sua” música. E confessou que ficou balançada com a proposta, mas teve medo. Ela contou:

 

"Ele era casado e eu falei: ‘Mas como?’. Ele disse que sua vida sentimental não estava muito boa e que não parava de pensar em mim. Eu, então, disse que não podia me casar com ele porque era virgem! Olha a minha inocência na época. Achava que ele queria se casar para tirar minha virgindade"

 


Pois bem. Há 10 anos, em pleno Carnaval de 2013, no Rio de Janeiro, eu fui apresentado a ela – agora, uma distinta madame, vivendo no eixo Rio/São Paulo –, a paixão mal resolvida do invejoso, que lá no céu deve ter movido os seus pauzinhos, invocando os privilégios conferidos aos músicos e poetas de boa vontade, para mergulhar nos pensamentos dos viventes aqui embaixo. E deve ter visto algo que lhe deixou furioso, transtornado.

 

Digo isso porque uma repórter-fotográfica, que por acaso registrou o nosso encontro naquela noite, cochichou nos ouvidos dela (eu ouvi!), querendo saber sobre quem estava do lado, talvez imaginando que a imagem pudesse render algum dinheiro junto às revistas de fofocas. 


Ela ficou calada. Mas o semblante risonho e enigmático certamente deixou o cara aborrecido. Sem motivo, juro! Eu já tinha uma garota (das praias de Alagoas) desde os anos 1970.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Segue o baile

Meu filho, hoje quarentão, outro dia compartilhou comigo a nova grade de aulas complementares de meus netos, ambos no 1º ano do ensino Médio de um colégio no bairro do Tatuapé, em São Paulo.


Não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado. E não só por conta da titulação rebuscada das cinco trilhas de aprendizagem no contraturno escolar de segunda a quinta-feira. Veja: Gestão de negócios e consumo sustentável; Paz, justiça e instituições eficazes; Saúde e bem-estar; Ação contra mudança global do clima e Escola de negócios: crescimento econômico global. 

  

Há quatro décadas, já membro, a contragosto, da “elite” pagante de mensalidades escolares, me indignava com a excessiva mercantilização da educação. No começo de cada ano letivo, cobrava-se dos pais de alunos desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por barbantes, bolas de isopor, canudos, garrafas, pregos, velas etc., numa lista interminável de materiais “escolares”. 


Ficava intrigado: se todos os alunos cumprissem aquela demanda, a escola teria de possuir um depósito bem superior à biblioteca, e precisaria de uns três empregados só para classificar, organizar e armazenar o material. Parece que não era o caso.

 

Cansei de me chatear também de ver meus filhos mexendo com as mesmas coisas que foram exigidas de mim 20 e poucos anos antes, como ler soletrando sílabas ou somar, diminuir, multiplicar e dividir na ponta do lápis, como se as calculadoras que surgiam fossem bugigangas dispensáveis.

 

Como acontecera comigo, deles ainda seria cobrado decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra” ou que “duas ou mais retas paralelas só se encontram no infinito”. E, heresia das heresias, que "todo número diferente de zero elevado a zero é igual a um". Não sei o que isso mudou minha vida ou a deles, salvo pensar na triste solidão das retas.

 

Na época, sonhava que a escola fosse além de noções de disciplinas clássicas como Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. Queria tê-la ao meu lado auxiliando na formação humanística de meus filhos.

 

Queria que me ajudasse a ensiná-los a se sentar ao lado das pessoas que se sentiam vulneráveis, perdidas. A encorajar almas mais fragilizadas. A não se arrepender do bem que fizeram. A não guardar mágoas e ressentimentos, esse saco de pedras, mais ou menos pesado, que muita gente carrega nas costas. 


Poderia ter recebido boletins de avaliação de meus filhos em alguns "deveres de casa" como: Compaixão, Generosidade, Indignação, Inveja, Resiliência, Solidariedade etc. Quem sabe, daria tempo retocar projetos de gente em andamento.

 

Fotografia: Dedé Dwight

Só mais tarde me dei conta de que não se desenha por completo os filhos. Se muito, rascunha-se os traços básicos. Eles mesmos fazem a arte final a partir de suas conexões com o mundo.

  

Durante a pandemia, não tive febre, dor de cabeça, tosse seca ou qualquer outro sintoma da doença, mas tive meu delírio. Imaginei que, se sobrevivêssemos como nação à catástrofe sanitária, todo brasileiro com idade superior a 15 anos um dia estaria alfabetizado. 


No auge do meu delírio, vi Paulo Freire, um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia universal, explicando melhor às novas gerações uma de suas conclusões geniais: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

 

Aprender a identificar notícias falsas e desinformação era tão importante quanto a Matemática. Tanto que constava do currículo escolar a disciplina obrigatória “Alfabetização midiática”. 

 

Exigia-se da molecada que editasse seus próprios vídeos, como forma de perceber como é fácil manipular informações. Em seguida, discutia-se como e quando certos textos foram escritos e quais eram os objetivos reais ou surreais. 

 

Desde cedo, já se aprenderia em sala de aula como assimilar notícias, enxergando a diferença entre o que veria nos aplicativos de mensagens e o que estaria nos meios de informação. Não teria como saber o que são fake news se não soubesse distinguir jornalismo de mídias sociais.

  

Aprenderia também que é bem menor o esforço do processo cognitivo (percepção, pensamento, linguagem, memória etc.) nas mídias eletrônicas, o que torna a meninada mais vulnerável às notícias falsas ou incapaz de identificar mentiras disfarçadas de verdades. 

 

Mesmo a criançada tendo crescido em paralelo à evolução das mídias sociais, isso não significa que saiba como identificar e se proteger da desinformação. Aliás, a fase de ebulição hormonal é justamente quando se está mais propenso a acreditar em meias verdades (ou mentiras completas!).


Repito, não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado com a grade de aulas complementares de meus netos. É mais um passo no tanto de chão que os brasileiros têm pela frente para construir uma nação decente, digna, digamos assim, de nossos bisnetos.

 

E segue o baile. Que essa molecada que está na pista acerte o passo e entre na dança com tudo. Senão dançaremos todos.