quarta-feira, 28 de junho de 2023

Casa de farinha

Famintos e com sede, chegávamos à zona rural de Colinas, no oeste maranhense, logo depois do São João de 1967. Ali moravam meus avós paternos, Mãe Sussu e Pai "Simente", alcunha poética para um agricultor de subsistência ou simplificação de "Nascimento", sobrenome português de origem religiosa emprestado a cristãos nascidos em 25 de dezembro.  

 

Mais de meio século adiante, é difícil imaginar como uma família (pais e sete filhos) viajou numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1.300 km de estradas esburacadas, na lama ou na poeira, a partir do sertão paraibano. Jornada, inclusive, com desfecho épico: a légua final, escorregadia e enladeirada, se deu sobre uma tropa de jumentos.



 

Como esquecer do fim de tarde em que Pai Simente, sentado na porta de casa, ao lado de uma escarradeira, quase infarta por minha causa? Tio Marcelino, que preparava fogos de artifício, deixara próximo da janela algumas tabocas (gomos de bambu cheios de pólvora), enfileiradas como pirulitos num tabuleiro. Buliçoso, encostei uma brasa no estopim de uma delas para ver o que aconteceria.

 

Foguetões subiram assobiando e iluminaram o céu, ofuscando as primeiras estrelas. Meus pais, que raspavam pratos de “Maria Isabel” – arroz puxado no alho com carne de sol picada –, correram da cozinha até a sala onde me encontraram com a cara de sonso, sem atinar para o que poderia ter ocorrido à cobertura de palha de babaçu de todas as casas do povoado.


 

Como não recordar do abraço quente e apertado de Mãe Sussu e do olhar tolerante de Pai Simente, livrando-me de uma surra? Neto é neto no coração dos avós, com ou sem a anuência dos pais.


 

Na manhã seguinte, Bento, meu primo, admirou-se da balinheira (estilingue) que eu trouxera. Ele também usava uma arma poderosa: o bodoque caiçara, arco com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Além do parentesco, em comum entre nós havia apenas o propósito de extinguir as rolinhas “fogo-apagou”.

 

O encanto pelo brinquedo alheio nos levou a trocar as armas, e o que se viu foram polegares e indicadores duramente castigados durante a aprendizagem. Esfolamos os dedos e não acertamos as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Os deuses das matas nos pouparam desse remorso.  


O mundo mudaria quando vi pela primeira vez uma casa de farinha. Depois da arranca da mandioca, adultos a descascavam e ralavam até virar massa. Em seguida, extraíam a água numa prensa, antes de peneirar a massa para retirar impurezas. O que sobrava, seguia para ser mexido numa chapa enorme, no fogo a lenha, até virar farinha.



 

Não me deixaram raspar a mandioca no caititu (cilindro com serrilhas metálicas), nem mexer a farinha na chapa quente. Pensei que tinha jeito pra coisa, como achava que usar o moedor de carnes era a coisa mais besta deste mundo, apesar dos nove anos de idade. Soube que a casa de farinha não existe mais. Praga de menino? Minha, juro que não foi. 

 


Triglicerídeos à parte, ali descobri do que uma boa farinha era capaz de provocar quando misturada à água em que cozida a carne ou o peixe: o bendito pirão que me leva, até hoje e sem culpa alguma, a reincidir no pecado capital da gula. 





E como não lembrar dos beijus de tapioca e dos bolinhos de farinha de arroz, servidos com café coado? E das redes espalhadas pela casa na hora de dormir, onde o "dono" de cada uma, depois que as lamparinas eram apagadas, só poderia ser identificado pelo par de chinelas?


Havia nas proximidades do sítio um olho d'água onde algumas mulheres, fiéis à etnia de seus antepassados Timbiras, após lavarem e enxaguarem trouxas e mais trouxas de roupas, tomavam banho nuas em pelo. Pena que alguns adultos, por motivos que desconheço, não me deixaram matar a minha curiosidade, digamos, antropológica. 

 

 

No dia da volta, chorei bastante. Obrigaram-me a deixar o bodoque caiçara, por falta de espaço no bagageiro da Rural Willys. Ainda faríamos escala em Caxias, já próxima da fronteira com o Piauí, onde meu pai havia morado antes de migrar para a Paraíba. 

 


Ardia de febre quando chegamos. Era o sarampo. Assim como já acontecera em anos anteriores, nas temporadas de catapora (varicela), caxumba (papeira) e coqueluche (tosse-comprida), a doença derrubaria também meus irmãos. Ser o primeiro a contrair teve seu lado positivo: poder tomar guaraná, leite em pó e comer maçã, além de desfrutar do cuidado prioritário de uma mãe de muitos.




O mundo deu muitas voltas de lá pra cá. Tia Cristina, que desapareceria nos primeiros dias da peste que virou o planeta de ponta cabeça meio século depois, antes de partir me contou que o sítio em que viveram Mãe Sussu e Pai Simente já dispõe de energia elétrica e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas com TV a cabo. 



 

Sei que paredes e medos mudam de lugar, que a gente embrutece e até desaprende a chorar nossas perdas. Mas nada neste mundo apaga as coisas e cores guardadas que a saudade, volta e meia, nos pede pra remexer. 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Fora de controle

O dramaturgo e romancista Ariano Suassuna dizia ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente. “Eu acho uma falta de educação muito grande, não é? Falar mal pela frente constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas…” Dizia mais: “Eu minto! Vejam bem, não me levem a mal. Não gosto de quem mente para prejudicar os outros. Gosto de quem mente por amor à arte. O mentiroso lírico…” 

 

Bem, o nome aqui não vem ao caso, mesmo porque um cidadão com quem trabalhei nos anos 1980 ainda é vivo e pode achar que estou distorcendo os fatos. Vou chamá-lo de Xaréu (peixe da cabeça grande, olhudo, de águas oceânicas) por causa do par de faróis de jipe que ele carrega sobre um bigode de para-choque.

 

Nascido em berço de prata, tinha em torno de 35 a 40 anos de idade quando o conheci. Nas horas vagas de bancário, praticava pesca submarina no litoral alagoano. Jactava-se de ter descoberto uma técnica para "hipnotizar" tubarões. Dizia até que tirou fotos acariciando um tubarão azul de mais de três metros.

 

Um dia, Xaréu resolveu revelar como colocava tubarões em "transe" para serem apreciados por turistas, sem o estresse da captura. O primeiro passo para imobilizar o bichão era atraí-lo chacoalhando a água e usando sardinhas (a isca ficava numa caixa que permitia sentir o cheiro e até ver a comida, embora não pudesse mordê-la).


Reprodução: bastidores de "Jaws", de Steven Spielberg

Quando o predador se aproximava, ele o induzia a um profundo relaxamento. Colocava as mãos numa certa posição, fazendo com que o animal pensasse que seus dedos eram pequenos peixes. “Provoco o bicho para me morder. Essa é a parte mais perigosa, porque se eu for muito rápido, ele vai embora, e se eu for devagar, ele abocanha...".  

 

Contou que mergulhava protegido por uma roupa feita de um aço especial. Caso fosse mordido, os dentes não perfurariam o traje. “Houve até um caso em que um tubarão mais afoito ficou banguela”, pontuou. 


Antes de morder, o animal abria o bocão, deixando a água entrar para obter oxigênio por meio das guelras. Em seguida, fechava as mandíbulas. “De boca fechada, eu conseguia imobilizar o bicho. Como não estava respirando, era fácil colocar a mão no nariz dele e fazer massagem...".

 

Depois de deixar o bichão “chapado de prazer”, retirava parasitas da pele. “Ele até ameaçava ir embora, mas percebia que havia carinho e respeito; por isso, ficava. Não tem quem não goste de um cafuné, né mesmo?”

 

Como o tubarão não pode permanecer muito tempo parado e precisa estar constantemente em movimento para respirar, Xaréu disse que o conduzia à superfície e exibia para os turistas, de quem recebia polpudas gorjetas, inclusive em dólares.

 

Pois muito bem, diria Suassuna. Ao me ver meio cabreiro, desconfiado, Xaréu admitiu que não era possível aplicar a técnica em todos os predadores. Garantiu porém que nunca sofrera um acidente grave. “Às vezes, me vejo no meio de 20 tubarões e procuro descobrir quais são os mais confiantes. Quando acho, atraio um deles...".

 

É fato que “Tubarão”, do cineasta Steven Spielberg, fizera um tremendo sucesso no Cine São Luiz, em Maceió, no final dos anos 1970. No filme, um inesperado ataque sinaliza que a praia de uma pequena cidade americana teria virado o refeitório de um monstro que se alimenta de turistas. O prefeito ainda tenta esconder da mídia, mas o xerife local busca a ajuda de um pescador veterano para eliminar a besta-fera. A tarefa acaba sendo bem mais difícil do que se esperava.

 

Clarinete, chefe do setor em que trabalhávamos, não apostava um cruzeiro nas aventuras de Xaréu, mas, com o semblante sério, perguntou se aquela coragem toda vinha de criança. Ele nem pestanejou. Disse que desde os tempos de escoteiro, sempre que se via diante de animais furiosos, encarava-os com destemor para ter o controle absoluto da situação, “o que deixava os bichos desconfortáveis, por se sentirem desafiados ou ameaçados… E a maioria acabava fugindo”.

 

Se era verdade ou não, difícil saber, a esta altura. Sei que Xaréu, na época, ficou chateado porque a turma fez uma algazarra danada quando Clarinete, em seguida, começou a cantarolar uma canção que fazia muito sucesso no rádio: “olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais...” 


Soube que Xaréu, depois que se aposentou, andou oferecendo seus préstimos à prefeitura do Recife para resolver “um probleminha” no trecho que vai da praia do Pina, na Zona Sul, até a praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana. Mas as negociações não evoluíram. "É por isso que a coisa anda fora de controle por lá", ele teria dito. Liricamente, imagino.

 


quarta-feira, 14 de junho de 2023

Vem aí um novo passaporte?

Descobri que o passaporte se tornou obrigatório nas viagens internacionais apenas no começo do século passado, após a Primeira Guerra. O termo vem do francês arcaico ("passeport"): o papel que autorizava o viajante a passar pelo porto e sair do país.  

Havia certa liberdade editorial em sua confecção, um século atrás. Era uma folha de papel dobrada em oito partes, capa de papelão, trazendo dados básicos (nome completo, data de nascimento, nacionalidade etc.), além de breve descrição física do titular, como olhos claros, nariz adunco e cabelos ruivos; e sinais particulares, como lábio leporino, cicatrizes etc.

 

Ainda bem que a descrição do viajante se limitava aos traços do rosto. Dou por visto o que registrariam a meu respeito na época: cabeçudo, míope, gengivas de macaco, orelhas curtas e sobrancelhas de taturana. As partes íntimas estariam preservadas do escárnio público.

 

E se a coisa tivesse evoluído para inclusão de traços psicológicos? Seria possível agora extrair dos arquivos descrições interessantes, por exemplo, sobre figuras ligadas ao futebol.

 


Dá pra imaginar os responsáveis pela coleta de dados, no final do dia, tomando uma cerveja no boteco e cometendo deslizes ético-etílicos:

– Viu só o Edmundo? É atormentado, encrenqueiro, prestes a explodir... Pior que Almir Pernambuquinho. 

– E o Sávio, aquele que joga no Real Madrid. Triste, depressivo, cai no choro a qualquer instante. É moleque criado com a avó em apartamento, nunca brincou num quintal.

– Pô... E Dodô? Vive rindo não se sabe de quê. Parece que nunca ouviu Frejat cantar que “rir é bom, mas rir de tudo é desespero”.

– Tá escorrendo rabugice nos cantos da boca de Dunga, percebeu?

– Sim! E o olhar gelado de Romário... Típico do sujeito que enfia um estilete até o cabo e não escorre uma gota de sangue da vítima…

 

Volto no tempo. Dizem que depois que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, um funcionário da repartição de passaportes teria caprichado na descrição de Maria Capitulina de Pádua Santiago, mais conhecida como Capitu: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Um tanto leviana e fútil. Desde pequena só pensa em vestidos e penteados, tem ambições de grandeza e luxo, e outros predicados que evito citar para não cair em tentação”. 

 

O chefe, no entanto, ávido por predicados e sujeitos mais picantes (bota picância nisso!), cobra: “Esqueceu daquela história de olhos oblíquos e dissimulados de cigana, do triângulo amoroso relatado no livro pelo próprio Bentinho, o maridão desconfiado?” 

 

“Há controvérsia, chefe!” – pondera o funcionário, com o dedo indicador em riste! – “Não encontrei vestígios de que Capitu e Escobar chegaram às vias de fato. Nem na cortina nem no carpete. Isso é coisa da cabeça do Bruxo do Cosme Velho, instigando os leitores...”.

 

“Vai me dizer que eles não...”

 

“Tá no regulamento, chefe: para fins de emissão de passaporte, pouco importa se Capitu capitulou ou não, como desconfia Bentinho. Aliás, Escobar pode ser carreirista, mas não é paraguaio ou colombiano... Se bem que ninguém precisa cruzar fronteiras para pular a cerca”.

 

Mais adiante, Escobar morre afogado e as lágrimas de Capitu pelo morto deixaram Bentinho transtornado. Tanto que acabou despachando a esposa para a Europa, onde ela viveria seus últimos dias. Com um passaporte, óbvio! 

  

Com o passar dos anos, a fotografia virou mais um elemento de identificação, embora em nada se pareça com a padronização do documento nos dias de hoje.

 

Sem regras claras, as pessoas providenciavam uma foto qualquer. Posavam de chapéu, de véu, tocando piano, chupando picolé ou tricotando. Reaproveitavam até fotografias antigas, recortando o próprio rosto, ou arrancando a imagem de outro documento. 

 

Mas contexto é importante. Um chapéu sobre a cabeça de um matuto, por exemplo, não passa de um simples utilitário de proteção contra o sol. Sobre a cabeça de uma primeira-dama, apenas um adorno numa cerimônia. Na fronte de um cardeal, um símbolo de poder. Na mão estendida de um esmoler, a vergonha (ou o vício) de pedir e a esperança de viver numa nação mais solidária.   

 

Hoje, para confecção do passaporte, deve-se manter uma  expressão neutra e a boca fechada na foto. Foi assim, aliás, que nasceu uma fábrica de monstros. Reveja a sua imagem no seu documento e diga se não tenho razão. 

 

Tudo isso me fez recordar da figura de um baixinho de fraque puído, bigode de broxa, chapéu-coco e bengala, que nunca precisou de passaporte para atravessar fronteiras e ser reconhecido em qualquer lugar. Sem dizer uma palavra, virou cidadão do mundo. 

 

Se ainda estivesse entre nós, Chaplin, em nome dos ambientalistas, diria em gestos, coberto de razão: “Já passou da hora das nações criarem um novo passaporte. Em papel não dá mais!” 


Concordo. Talvez um microchip no dedo mindinho do pé ou na omoplata (finalmente, um deles teria utilidade prática!), com os dados de identidade, biométricos e vistos do viajante, simplifique as coisas neste mundão cada vez mais complicado e dividido. 

 

Fica a dica. O que você acha?

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não sou eu…

Três anos depois de tantos abraços reprimidos, de tanta angústia e de cinco doses de vacina, uma variante sorrateira do inominável bateu à porta e, sem pedir licença, se instalou sobre duas almas rendidas pelo pânico.

 

Passado o susto inicial (nem nos deu tempo de colocar detrás da porta um pouco de sal grosso), eu e minha mulher já estamos bem. Assumimos como inevitável o que aconteceu quando resolvemos deixar o cárcere voluntário.

 

Lembro-me de um livro (“O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati) que ganhei de presente, em 1982, de meu querido amigo João Batista de Almeida. Reli trechos durante o confinamento. Difícil engolir que nunca mais verei João flanando nas livrarias. Nem nos despedimos. 

 

O livro conta de um jovem que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente numa fronteira desabitada. Tinha a esperança de fazer algo de nobre pelo seu país, que poderia ser atacado pelos Tártaros, a qualquer momento. 

 

Trinta anos depois, velho e doente, após esperar por uma guerra que não veio, o tenente reflete sobre quantos deixam a vida passar esperando um conflito que talvez não venha e, se vier, pode encontrá-los já derrotados. E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso.    

 

Em minha guerra particular, parecia fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, tropeçando nas quinas que se metiam no caminho entre a cozinha e a varanda onde os primeiros sinais de luz diziam que a agonia passaria depressa. 

 

Parecia normal trocar o noticiário mórbido da TV pelas canções de ontem, admitindo uma certa alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Diminuía a ansiedade ouvir Simone propor que pegasse aquele feijão preto, colocasse meia dúzia de latas pra gelar e mudasse a roupa de cama que já, já, a vida estaria de volta.

 

Parecia simples preparar a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão, depois de limpar a última ruga da folha de alface ou rúcula, como se ali cochilasse o monstro capaz de acabar com tudo em duas ou três semanas.

 

Fotografia: Magdala Veras

Parecia fácil ver a mulher na varanda, resignada, sem botar os pés na areia havia meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, longe das franjas de espuma que escorriam na praia, querendo pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar. 

 

Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher o cárcere de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante de uma cena qualquer do seriado da vez.

  

Parecia normal ver tantas crianças longe da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabiam como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias críticas como amar e perdoar. 

 

Ou – em meio a tanta mentira, tanta força bruta escorrendo nas redes sociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao boteco, ao supermercado ou ao restaurante, onde incautos se infectavam e, não raro, sumiam. De vez.

 

Parecia fácil, normal, simples. É... Parecia.

 

Toda noite, me deitava mais cedo, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.  

 

Mesmo isolado do mundo (que já cheirava, de novo, a fumaça de óleo diesel), me inspirava nesses marujos para rascunhar meia dúzia de linhas e tirar a paciência daqueles que ainda prestavam atenção naquilo que eu tinha a contar.

  

“Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”, dizia Chico, outro marujo calejado. Mas enquanto não chegava o habeas corpus que me libertaria do cárcere, precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. 

 

Ainda não descobri, mas uma hora chego lá. 

 

Hoje, mais do que ontem (e menos do que amanhã), quanto mais remo, mais rezo. E me contento ouvindo Paulinho, outro velho lobo-do-mar, extrair da viola uma certeza em forma de oração: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Resta aprender

Mal começa 2023 e um campeão olímpico posta em sua conta no Instagram uma foto com uma espingarda nas mãos. E não se trata de atleta de tiro esportivo, modalidade presente nos Jogos Olímpicos desde a primeira edição, em 1896, em Atenas. 

Reprodução/Redes Sociais 

Então Wallace de Souza, 35 anos, “astro” do voleibol do Cruzeiro, de Belo Horizonte-MG, abre uma caixa de perguntas para seus seguidores. Logo, um dos fãs quer saber se ele daria um tiro na cara do presidente da República. O atleta retruca: “Alguém faria isso? Sim ou não?”. A "enquete" viraliza. Só é deletada horas depois, quando alguns prints já circulam nas redes sociais.

 

O fato é alvo de repúdio da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e do Governo Federal, através da Advocacia Geral da União.

 

O jogador é suspenso por 90 dias, período que abrange a data da final da Superliga Masculina de Vôlei, o que o leva junto com seu clube a buscarem a suspensão da pena no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.


O STJD aceita o argumento e concede liminar. A CBV, porém, vê impasse entre a decisão do Conselho de Ética do COB e a liminar emitida. Aciona então o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, órgão privado que é usado para mediar conflitos. Dá-se razão ao STJD.

 

Na final da Superliga Masculina, o "astro" entra em quadra, marcando inclusive o ponto do título de seu clube. Isso desagrada o Conselho de Ética do COB, que contra-ataca com um duro coice: a suspensão pula de 90 dias para cinco anos. Pune-se também a CBV, que é desvinculada do COB e perde as verbas que recebe do Ministério dos Esportes e do Banco do Brasil. 

 

Entre bravatas e coices, escorrem pelo chão da Pátria amada barris de intolerância política. E tudo deságua numa incitação à violência por parte de alguém supostamente esclarecido, ciente, imagina-se, do grau de discernimento de seus seguidores. 

 

Mas o petardo devolvido pelo Comitê de Ética do COB é descomunal. Querem matar beija-flor com tiro de bazuca. Ou acabar com o carrapato matando o gado. Isto é, no caso, quer asfixiar até quem não deu motivo a nada disso: o vôlei, como modalidade esportiva.


Quando o Banco do Brasil passa a patrocinar a CBV, há 32 anos, as conquistas das seleções de quadra e praia (feminina e masculina) fazem delas protagonistas nas principais competições pelo mundo afora. Rapidamente, o vôlei consolida-se como a segunda paixão nacional em termos esportivos, porém bem mais organizada do que a primeira.

 

Hoje, a primeira paixão do brasileiro agoniza com clubes falidos (exceto uma meia dúzia, que não sobrevive a médio prazo sem o fortalecimento dos demais), calendário desumano, baixa qualidade das partidas, estádios ociosos, violência entre torcidas organizadas, denúncias de apostas envolvendo cartões e pênaltis (leia-se, manipulação de resultados) etc.

 

Quanto à segunda paixão, desde 2001 uma incubadora de talentos instalada em Saquarema-RJ espanta e encanta o mundo. É o Centro de Desenvolvimento do Voleibol, espaço de 100 mil m2 com toda a estrutura necessária à formação de atletas, como ginásio, quadras, salas de musculação, alojamentos e até creche, o que, sem dúvida, explica o salto quântico da modalidade nas últimas três décadas. 

 

De lá para cá, se o futebol conquista as Copas do Mundo de 1994 e 2002, além da medalha de ouro nas Olimpíadas de 2016 e 2021, o vôlei, com bem menos recursos investidos, alcança nove títulos da Liga das Nações. E nos Jogos Olímpicos, três medalhas de ouro (Barcelona, Atenas e Rio de Janeiro).

 

Ainda bem que toda pena desproporcional tende a ser revista, pelo menos em nações minimamente civilizadas. Afinal, como aprendi quando era criança, "cavalo só dá coice porque não sabe conversar". 

 

E uma conversa aqui, outra ali, chega-se a um acordo. Prego batido, ponta virada! O vôlei, mais uma vez, se revela maior do que as pessoas e as instituições nele envolvidas:

– O responsável pela "enquete" já cumpre novo período de suspensão por 90 dias e está impedido, por 360 dias, de integrar a seleção brasileira (fora, portanto, daquela que poderia ser a sua última Olimpíada, ano que vem, em Paris).

 – O COB não reconhece a validade do resultado da final da Superliga Masculina de Vôlei.

– A CBV, que mantém as suas fontes oficiais de patrocínio, obriga-se a custear programa de valorização da postura ética de atletas nas redes sociais, sob a coordenação do COB. 


Em termos tácitos, porém, o acordo refresca que:

– Cada "astro" é, sim, responsável pelo impacto que a divulgação de sua opinião causa no universo em que atua. 

– Liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto. Nem o direito à vida é (prova: o direito à legítima defesa).

– Acima de todas as diferenças, é preciso garantir a convivência pacífica e educada entre elas. 

 

Como bem canta Beto Guedes em Sol de Primavera, “a lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. E chega de tentar aparar arestas de opinião na base da espingarda. Ou de coices!

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Há rosas que falam

Conheci o cantor e compositor Zeca Baleiro há 10 anos, no CCBB Rio de Janeiro. O projeto Banco do Brasil Covers entraria em cena novamente, pelo segundo ano, com três shows inéditos, trabalhando a ideia de que os ídolos também têm seus ídolos. 

 


Na programação para 2013, além de Zeca Baleiro homenagear Zé Ramalho e Maria Gadú reverenciar Cazuza, quatro ícones do rock nativo (Dado Villa-Lobos, João Barone, Leone e Toni Platão), ao lado de Liminha, produtor musical e ex-baixista de Os Mutantes, diriam de sua devoção aos Beatles.

 


Conversava amenidades com Zeca 
quando toquei em algo que vinha me deixando intrigado: mesmo grandes letristas, ao chegarem na faixa dos 60 anos de idade, não conseguem produzir obras arrebatadoras, inesquecíveis. Não era o caso dele, claro, à época um “menino” de apenas 47 anos.

 

Referia a achados poéticos raros, sem rebuscamentos, alguns lapidados às pressas, sob encomenda, para compor a trilha sonora de um filme ou de uma novela de TV, como:

 

“... Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas,

Diz: com que pernas eu devo seguir,

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu?”

(Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum “Vida”)


"...Um raio que inunda de brilho uma noite perdida.

Um estado de coisas tão puras que movem uma vida.

E um verde profundo no olhar a me endoidecer...

Quisera viesse do mar, e não de você.

Porque seu coração é uma ilha a centenas de milhas..."

(Djavan, aos 32, em 1981, ano de lançamento do álbum "Seduzir".

 

“... Luz do sol
Que a folha traga e traduz 

Em verde novo em folha, 
Em graça, em vida, em força, em luz.

Céu azul que vem
Até onde os pés tocam a terra,
E a terra inspira e exala seus azuis...”

(Caetano Veloso, aos 40, em 1982, ano de lançamento do álbum “Luz do Sol”).

 

Zeca Baleiro discordou. Não poderia ser diferente, pensei. A classe é meio desunida, mas nem tanto. Porém não ofereceu dados que me fizessem mudar de opinião. Nos reencontraríamos mais adiante, num show que fez em Brasília, mas não voltamos ao assunto.

 

Pouco antes de conhecê-lo, eu havia assistido ao documentário Vinícius, bela reconstituição da vida e da trajetória artística do diplomata, poeta e letrista Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos dele, como: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

 

Em certo trecho, Chico recorda que, já próximo do desembarque, convidaram o Poetinha para mais uma noitada nos bares de costume. Ele recusou sob o insólito argumento de que iria assistir Baretta, um seriado policial norte-americano dos anos 1970 protagonizado por um detetive trapalhão que tinha um caso de amor com uma cacatua. Sinal de que Vinicius já não pensava em obras arrebatadoras e inesquecíveis (faleceria em 1980, aos 66 anos).

 

Domingo passado, contei essa história a um amigo, que me deixou preocupado com suas justificativas: “Tem a ver com a motivação. Quando jovens, temos muitos sonhos, muitos objetivos, muitas lutas a serem travadas e, o principal, amores em curso. Com o tempo, as emoções se acalmam, a alma sossega e a produção intelectual diminui. É substituída pela cautela, pela paz interior que antecede a morte...” 

 

Contei a outro, que foi menos fatalista, mas cruel: “Veja o caso de Roberto e Erasmo Carlos: as canções do último quarto de vida não chegam aos pés das antigas. Caetano entrou numa fase de experimentalismo com letras que parecem aqueles quadros abstratos que só o autor entende. Alceu vive do passado. Milton, nem se fala. Fagner ficou bobo e de mal com a vida. O Chico ainda faz algo bom, mas nada inesquecível...” – queixou-se.

 

Quase convencido de que sempre estive certo em minha tese de mesa de boteco, somente agora me vieram à cabeça Cartola e “As Rosas Não Falam”.

 

Conta-se que Dona Zica, sua esposa, ganhou algumas mudas de rosas e resolveu plantá-las no jardim. Dias depois, ao abrir a porta bem cedinho, ficou em êxtase com a quantidade de flores que desabrocharam. Chamou então o marido e quis saber:

– Cartola, por que nasceu tanta rosa assim?

– Não sei, Zica. As rosas não falam… – ele respondeu, sorrindo. 

 

E ficou mastigando a frase, como se fosse um palito. Quando faltavam três dias para completar 65 anos, nasceu a “criança”. Cartola, que faleceu em 1980, aos 73 anos, dizia que a canção havia sido presente de Deus. 

 

Sobre a obra-prima, aliás, Paulinho da Viola conta que, em 1973, quando trabalhava na TV Cultura, em São Paulo, num programa que apresentava pessoas ligadas a escolas de samba, recebeu a visita de Cartola, que lhe pediu para mostrar uma de suas composições. E comoveu-se quando ouviu, pela primeira vez, a inesquecível declaração de amor de um poeta popular sessentão:


“... Queixo-me às rosas...
Que bobagem! As rosas não falam.
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti...”

 

Da próxima vez que encontrar Zeca Baleiro – difícil, mas não é impossível –, prometo que direi que estava enganado. Ele tinha razão. 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

O povo esquece

Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos. 

 

Reprodução/Redes Sociais

O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.

 

Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.

 

Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte. 

 

Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”

 

Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?” 

 

Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”

 

Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.

 

– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não? 

– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.

 

Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:

– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.

– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...

– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…

– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...

 

Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...

 

Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra: 

– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?

– De quê, Chefe?

– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...

 

E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.

 

Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:

– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?

– Não se deve fazer julgamentos precipitados.

– Sei…

– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga. 

– Só?

– E negue, negue tudo. O povo esquece logo.