quarta-feira, 21 de junho de 2023

Fora de controle

O dramaturgo e romancista Ariano Suassuna dizia ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente. “Eu acho uma falta de educação muito grande, não é? Falar mal pela frente constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas…” Dizia mais: “Eu minto! Vejam bem, não me levem a mal. Não gosto de quem mente para prejudicar os outros. Gosto de quem mente por amor à arte. O mentiroso lírico…” 

 

Bem, o nome aqui não vem ao caso, mesmo porque um cidadão com quem trabalhei nos anos 1980 ainda é vivo e pode achar que estou distorcendo os fatos. Vou chamá-lo de Xaréu (peixe da cabeça grande, olhudo, de águas oceânicas) por causa do par de faróis de jipe que ele carrega sobre um bigode de para-choque.

 

Nascido em berço de prata, tinha em torno de 35 a 40 anos de idade quando o conheci. Nas horas vagas de bancário, praticava pesca submarina no litoral alagoano. Jactava-se de ter descoberto uma técnica para "hipnotizar" tubarões. Dizia até que tirou fotos acariciando um tubarão azul de mais de três metros.

 

Um dia, Xaréu resolveu revelar como colocava tubarões em "transe" para serem apreciados por turistas, sem o estresse da captura. O primeiro passo para imobilizar o bichão era atraí-lo chacoalhando a água e usando sardinhas (a isca ficava numa caixa que permitia sentir o cheiro e até ver a comida, embora não pudesse mordê-la).


Reprodução: bastidores de "Jaws", de Steven Spielberg

Quando o predador se aproximava, ele o induzia a um profundo relaxamento. Colocava as mãos numa certa posição, fazendo com que o animal pensasse que seus dedos eram pequenos peixes. “Provoco o bicho para me morder. Essa é a parte mais perigosa, porque se eu for muito rápido, ele vai embora, e se eu for devagar, ele abocanha...".  

 

Contou que mergulhava protegido por uma roupa feita de um aço especial. Caso fosse mordido, os dentes não perfurariam o traje. “Houve até um caso em que um tubarão mais afoito ficou banguela”, pontuou. 


Antes de morder, o animal abria o bocão, deixando a água entrar para obter oxigênio por meio das guelras. Em seguida, fechava as mandíbulas. “De boca fechada, eu conseguia imobilizar o bicho. Como não estava respirando, era fácil colocar a mão no nariz dele e fazer massagem...".

 

Depois de deixar o bichão “chapado de prazer”, retirava parasitas da pele. “Ele até ameaçava ir embora, mas percebia que havia carinho e respeito; por isso, ficava. Não tem quem não goste de um cafuné, né mesmo?”

 

Como o tubarão não pode permanecer muito tempo parado e precisa estar constantemente em movimento para respirar, Xaréu disse que o conduzia à superfície e exibia para os turistas, de quem recebia polpudas gorjetas, inclusive em dólares.

 

Pois muito bem, diria Suassuna. Ao me ver meio cabreiro, desconfiado, Xaréu admitiu que não era possível aplicar a técnica em todos os predadores. Garantiu porém que nunca sofrera um acidente grave. “Às vezes, me vejo no meio de 20 tubarões e procuro descobrir quais são os mais confiantes. Quando acho, atraio um deles...".

 

É fato que “Tubarão”, do cineasta Steven Spielberg, fizera um tremendo sucesso no Cine São Luiz, em Maceió, no final dos anos 1970. No filme, um inesperado ataque sinaliza que a praia de uma pequena cidade americana teria virado o refeitório de um monstro que se alimenta de turistas. O prefeito ainda tenta esconder da mídia, mas o xerife local busca a ajuda de um pescador veterano para eliminar a besta-fera. A tarefa acaba sendo bem mais difícil do que se esperava.

 

Clarinete, chefe do setor em que trabalhávamos, não apostava um cruzeiro nas aventuras de Xaréu, mas, com o semblante sério, perguntou se aquela coragem toda vinha de criança. Ele nem pestanejou. Disse que desde os tempos de escoteiro, sempre que se via diante de animais furiosos, encarava-os com destemor para ter o controle absoluto da situação, “o que deixava os bichos desconfortáveis, por se sentirem desafiados ou ameaçados… E a maioria acabava fugindo”.

 

Se era verdade ou não, difícil saber, a esta altura. Sei que Xaréu, na época, ficou chateado porque a turma fez uma algazarra danada quando Clarinete, em seguida, começou a cantarolar uma canção que fazia muito sucesso no rádio: “olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais...” 


Soube que Xaréu, depois que se aposentou, andou oferecendo seus préstimos à prefeitura do Recife para resolver “um probleminha” no trecho que vai da praia do Pina, na Zona Sul, até a praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana. Mas as negociações não evoluíram. "É por isso que a coisa anda fora de controle por lá", ele teria dito. Liricamente, imagino.

 


34 comentários:

  1. Hayton, que maravilha de relato. Rivaliza bem com o mestre do Auto da Compadecida. Devidamente citado. A narrativa, apesar de breve, deixa antever figuras, locais, situações e até falas. Que imaginário fértil! É um daqueles casos bem contados. Que deixam atento a quem tudo assiste. Para não perder nenhum pedaço. Nenhuma palavra ou passagem fantástica. Os olhos Saltam às órbitas para melhor ver. E a situação toda ainda é envolta em tom leve, meio jocoso e brincalhão. O que só aguça o interesse do leitor. Morto de curiosidade para descobrir o final da trama.
    Roberto Rodrigues

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    1. Pois é… Logo esta semana que o Ibama acaba de realizar uma apreensão histórica de quase 29 toneladas de barbatanas de tubarão que estavam a caminho da Ásia de forma ilegal para virar sopa da elite chinesa.
      Deu no jornal que cerca de 10 mil tubarões, da espécie Azul e Anequim, foram mortos para a obtenção do montante. E a maior parte da carga ilegal foi localizada em uma empresa exportadora em Santa Catarina.
      Só Xaréu na causa pra evitar a extinção da espécie.

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  2. Amigo Hayton, que ótimo, sua crônica traz curiosidade, envolve, traz um presente a leitura.

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  3. Ademar Rafael Ferreira21 de junho de 2023 às 05:31

    As peripécias de Xaréu "eu só sei que foram desse jeito", sem muito jeito faço adaptação de uma das criações de Ariano. Um acima das verdades das redes sociais. Viva o São João.

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  4. Riqueza de temas e de abordagens, numa forma que prende e encanta o leitor. Sempre.

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  5. Mentir com criatividade não é mesmo pra qualquer um. Como bem disse Ariano, é uma arte. Como nunca me vi com essa competência, me contento em admirar Xaréu e outros que já encontrei pela vida.
    Já falar mal dos outros pelas costas, isso sim, é bem mais fácil 😎

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    1. Estou contigo! Acabo de lembrar a outro querido amigo como você, Otaviano, pra não ficar tão preocupado. Todos mentimos quase todo dia (alguns, o dia todo), inclusive pra nós mesmos.
      Liricamente, claro!

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    2. Verdade, prezado Hayton. Com o passar do tempo, a gente vai aprimorando (rsrs)

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  6. O lirismo é tudo! Nunca aceitei por exemplo que duvidassem das histórias que meu avô contava, por mais fantásticas que fossem, porque nada tão lírico poderia perder para a realidade. Convimos numa realidade e nos atemos a ela, e a Vida será sempre maior q nossa capacidade de compreendê-la, pq nosso entendimento está contido nela e nunca poderemos ser maiores que sua glória para observá-la com objetividade. Todo mundo deveria assegurar um andar pela existência promovendo o lirismo e beneficiando a maior quantidade possível de pessoas com sua presença. Dedé Dwight

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    1. Boa, Dedé! Aliás, segundo estudiosos no assunto, todos somos obrigados de certa forma a mentir. Assim como também omitir várias e várias vezes e isso acontece por mais que afirmemos o oposto. Significa dizer que quem diz que nunca mente, na verdade, está mentindo. Deslavadamente!

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  7. Muito bom
    Acordar e ler suas crônicas não tem preço. A de hoje nem sei se da pra ser história de pescador ou de mágico . Encantador de serpentes que mudou de ramo? Kkkkk

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  8. Mentiroso lírico é ótimo! Rindo demais aqui. Abração.
    Gradim.

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  9. Que maravilha! Quanta saudade dos mentirosos líricos e suas histórias engraçadas à beira de uma fogueira, que sempre vinham com algum ensinamento, alguma reflexão, a moral da história! Já dos mentirosos modernos das redes sociais, só preocupação!

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  10. Certa vez assistindo uma entrevista do genial Ariano Suassuna fiquei sabendo que seu tão carismático personagem "Chicó" foi inspirado num amigo dele. Era de fato um contador de histórias e que certa feita um engomadinho recém chegado a Taperoá começou a indagar se suas histórias eram de fato verdadeiras. Assim, lhe respondeu: " Vocês preferem ouvir as minhas mentiras engraçadas ou as verdades desse chato?!" ... Todos foram unânimes: QUEREMOS SUAS HISTÓRIAS!!!!! Lá longe existem grandes sonhos. Aventuras como as nossas e os contadores de história que fazem deste mundo algo mais aprazível de se viver!
    Agora que os encantadores existem, eles existem sim!
    ENCANTADOR DE TUBARÕES: MERGULHADOR HIPNOTIZA OS PEIXÕES DIANTE DE TURISTAS

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  11. Genial!
    O mentiroso lírico é realmente uma figura essencial.
    Pena que esteja ameaçada de extinção, pois uma espécie altamente predadora e voraz tende a não deixar espaço para a arte.

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  12. Como diz o Ariano Suassuna, como não estamos na frente, podemos falar mal...rs. Pescador é difícil.

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  13. Hayton, como sempre nos prende nas suas crônicas ímpares que nos surpreende toda quarta feira. Gostei muito do mentir liricamente, quem já não o fez? Agora, encantador de 🦈, essa é novidade. Parabéns mais uma vez por esta memória fabulosa que nos presenteia logo ao amanhecer de toda quarta feira. Um forte abraço

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  14. Também sou fanzaça do grande Ariano Suassuna. Já tive o prazer de assistir uma palestra muito agradável aqui numa Feira Anual do Livro, que acontece sempre no segundo semestre aqui em São Luís do Maranhão. Valeu!

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  15. Que beleza, Hayton! Até me transportei para aquele mar lindo das Alagoas e me deleitei com Xaréu e seus tubarões. E ainda fui parar lá nas margens do rio São Francisco, em Pão de Açúcar, também nas Alagoas. Ali tomei posse no Banco e conheci Seu Antônio, um mestre nas mentiras líricas. Interessante que as contava, seriíssimo, perante toda a família que participava atestando sua veracidade. Obrigada por me fazer viajar no lirismo de seus escritos.

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  16. Maravilhosa a referência a Ariano Suassuna, ao dizer ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente e sua justificativa. De fato, não custa nada conter-se e evitar o constrangimento. Feliz a referência sobre o famoso romancista. Faz sentido, sim, o que ele disse. Constrange mesmo. O certo é não fazer juízo mal na ausência, e sim lamentar. Daí a analogia com o amigo Xaréu e sua semelhança com o peixe do mesmo nome. Quanto a invenção de imobilizar o tubarão, é demais. Parabéns por mais um belo texto. Grande abraço.

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  17. História deliciosa, que nos remete a uma reflexão importante. Quantas vezes dizemos que toleramos tudo, menos mentira!
    E, no fundo, todos mentimos. Uns mais, outros menos. Uns com arte, outros com cara de pau. Uns para preservar pessoas, outros pra preservar seus próprios interesses.

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  18. Bela "história"... Diante de tantas "histórias de pescador", essa do "encantador de tubarões" é bem mais interessante... Imagina se ele fosse contratado, de fato e de direito, para atuar no trecho do Pina ao Paiva... Certamente seria uma solução e que atrairia muitos candidatos para atuarem como auxiliares do Xaréu... Forte abraço.

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  19. Hayton, será que o Xaréu aprendeu o ofício de mentir com os nossos políticos? Abraço.

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  20. Olá Hayton, sobre "mentiras líricas", me lembrei de Manoel de Barros que dizia: "Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira” ...
    Acho que isso vale para suas deliciosas crônicas!

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    1. É dele também: “Tudo que não invento é falso”. Por isso virou lenda, monstro sagrado da poesia universal.

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    2. É bom conversa de pescador, cada uma mais engraçada que outra. Dayse Lanzac

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  21. Agostinho Torres da Rocha Filho22 de junho de 2023 às 11:09

    Rezam os antigos que o maior castigo para o mentiroso não é o fato de que ninguém mais acredita em suas palavras, mas o de que nem mesmo ele acredita. Uma mentira esporádica, no entanto, desacompanhada de maldade, faz muito bem à saúde, sendo inclusive prescrita para o tratamento de estresse e depressão. O protagonista do texto deve ser parente muito próximo de um velho conhecido meu que, ao ser indagado sobre os seus conhecimentos acerca do Zeppelin, respondeu cinicamente:
    "Não o conheci pessoalmente, mas tenho uma ótima relação com seus irmãos, Chico Pelim e Mané Pelim, desde os tempos de infância." E assim caminha a humanidade! Parabéns por mais um belo texto, criativo e bem-humorado.

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  22. Ariano é uma referência sempre que lemos ou ouvimos histórias de certas figuras que, para quem morou no interior, eram muito comuns, a exemplo de mentirosos, doidos, palhaços e outros tantos. A deliciosa crônica nos apresentou mais um para o rol: Xaréu. E para quem gosta do tema de mentirosos, sugiro a leitura de "Histórias de Alexandre", do grande Graciliano Ramos. É um deleite e nos remete direto a um famoso personagem criado décadas mais tarde por Chico Anysio, o Pantaleão, que usava o bordão "É mentira, Terta?"

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  23. Seus personagens são antológicos. O Xareu bem merece uma crônica de altíssimo valor, como essa sua.
    Quanto à mentira, é difícil encontrar alguém que não tenha se valido dela alguma vez, principalmente pra se sair de uma situação delicada.
    De minha parte, vou me defendendo. Quando dizem que estou bem fisicamente aos 74 anos e perguntam qual energia do corpo é alterada com a idade, revelando alguma deficiência, respondo que absolutamente nada decresceu, continuo esbanjando força e disposição em todos os aspectos. Aí, logo depois digo que tinha esquecido de um detalhe. Perguntado qual, digo que há uma pequena alteração - "é que ficamos um pouco mentirosos".

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  24. Ouvir ou ler um bom “causo” não tem preço um boa mentira então nem se fala…
    Hilário e divertidíssimo foi mergulhar no universo de xaréu e Suassuna. Caí nas lembranças de meu padrinho, Seu Jessé, um excelente contador de estórias e de lorotas!!
    Muito grato por mais essa!!
    Beto Barretto

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  25. Delícia de texto. Tá batido, mas não aguentei não citar Tim Maia: "não bebo, não fumo e não cheiro... só minto um pouco".

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  26. Texto precioso e instigante. A mentira - ou o engano - está presente em toda forma de vida. Um estudo muito bem construído pelo escritor Eduardo Gianetti, em seu livro "Auto-Engano", afirma que, sem a fé na capacidade de acreditar sinceramente que somos aquilo que não somos, estaríamos reduzidos ao cálculo frio de um futuro insípido e previsível.
    Marina.

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    1. Síntese extraordinária de Gianetti, Marina. Obrigado por compartilhar conosco.

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  27. Essa ganhou qq história de pescador. O colega era bem espirituoso.

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