quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não sou eu…

Três anos depois de tantos abraços reprimidos, de tanta angústia e de cinco doses de vacina, uma variante sorrateira do inominável bateu à porta e, sem pedir licença, se instalou sobre duas almas rendidas pelo pânico.

 

Passado o susto inicial (nem nos deu tempo de colocar detrás da porta um pouco de sal grosso), eu e minha mulher já estamos bem. Assumimos como inevitável o que aconteceu quando resolvemos deixar o cárcere voluntário.

 

Lembro-me de um livro (“O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati) que ganhei de presente, em 1982, de meu querido amigo João Batista de Almeida. Reli trechos durante o confinamento. Difícil engolir que nunca mais verei João flanando nas livrarias. Nem nos despedimos. 

 

O livro conta de um jovem que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente numa fronteira desabitada. Tinha a esperança de fazer algo de nobre pelo seu país, que poderia ser atacado pelos Tártaros, a qualquer momento. 

 

Trinta anos depois, velho e doente, após esperar por uma guerra que não veio, o tenente reflete sobre quantos deixam a vida passar esperando um conflito que talvez não venha e, se vier, pode encontrá-los já derrotados. E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso.    

 

Em minha guerra particular, parecia fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, tropeçando nas quinas que se metiam no caminho entre a cozinha e a varanda onde os primeiros sinais de luz diziam que a agonia passaria depressa. 

 

Parecia normal trocar o noticiário mórbido da TV pelas canções de ontem, admitindo uma certa alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Diminuía a ansiedade ouvir Simone propor que pegasse aquele feijão preto, colocasse meia dúzia de latas pra gelar e mudasse a roupa de cama que já, já, a vida estaria de volta.

 

Parecia simples preparar a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão, depois de limpar a última ruga da folha de alface ou rúcula, como se ali cochilasse o monstro capaz de acabar com tudo em duas ou três semanas.

 

Fotografia: Magdala Veras

Parecia fácil ver a mulher na varanda, resignada, sem botar os pés na areia havia meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, longe das franjas de espuma que escorriam na praia, querendo pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar. 

 

Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher o cárcere de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante de uma cena qualquer do seriado da vez.

  

Parecia normal ver tantas crianças longe da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabiam como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias críticas como amar e perdoar. 

 

Ou – em meio a tanta mentira, tanta força bruta escorrendo nas redes sociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao boteco, ao supermercado ou ao restaurante, onde incautos se infectavam e, não raro, sumiam. De vez.

 

Parecia fácil, normal, simples. É... Parecia.

 

Toda noite, me deitava mais cedo, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.  

 

Mesmo isolado do mundo (que já cheirava, de novo, a fumaça de óleo diesel), me inspirava nesses marujos para rascunhar meia dúzia de linhas e tirar a paciência daqueles que ainda prestavam atenção naquilo que eu tinha a contar.

  

“Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”, dizia Chico, outro marujo calejado. Mas enquanto não chegava o habeas corpus que me libertaria do cárcere, precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. 

 

Ainda não descobri, mas uma hora chego lá. 

 

Hoje, mais do que ontem (e menos do que amanhã), quanto mais remo, mais rezo. E me contento ouvindo Paulinho, outro velho lobo-do-mar, extrair da viola uma certeza em forma de oração: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.

33 comentários:

  1. Bonito, tocante, poético!
    Uma síntese do que nos alcançou a todos (sendo ou não atingidos pelo disparo).
    Parabéns!

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  2. Bom dia, amigo
    Descrever a sensação de prisão decretada por um vírus invisível é arte de Mestre.
    Amanhã faz três anos que perdi Garrido, meu amor, amigo, companheiro, parceiro de todas as horas: das boas risadas, das reflexões e dos bate-papos despretensiosos do dia a dia.
    Se no seu texto o vírus chegou meio abatido pelas doses de vacina, na minha realidade ele chegou forte, covarde, guerreando contra a vida dos mais vulneráveis.
    O sentimento hoje é duplo: de saudade e gratidão por tudo o que me foi dado viver junto com ele e de revolta pela demora em punir quem recusou comprar as vacinas a tempo de salvar ao menos parte dos 700 mil que perderam a batalha para um vírus que poderia ser abatido ou enfraquecido e ainda tripudiou dos doentes infectado e dos mortos que ele ajudou a matar porque como ele mesmo disse, é só o que ele sabe fazer, e fez.
    E agora só me cabe repetir, como numa oração que as freiras rezavam que ao final diziam “quando será, meu Deus, quando será?”
    Nelza Martins

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  3. No mais pessimista de nossos pensamentos, jamais imaginamos que passaríamos um período tão conturbado assim, onde a sensação da finitude estaria tão aflorada em nosso cotidiano. Sensações de pânico, medo e tristeza tornaram-se protagonistas de uma série real, em que fazíamos parte do elenco e cuja quantidade de temporadas era indefinida e renovadas sem interrupções. Perdi a conta de quantas vezes ouvi Oswaldo Montenegro e Belchior nesses longos dias. Viajei nos versos de Mongol, na bela "Agonia" , com a qual Oswaldo foi premiado em um festival da MPB ou internalizando parte de "Tudo outra vez" do grande compositor cearense. Sequelas e cicatrizes, físicas e psicológicas ficarão, mas a esperança não foi plenamente perdida. Parabéns por mais um excelente texto de reflexão, similar a tantos outros de outras quartas-feiras, que nos ajudaram a ir atravessando esse abismo.

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  4. Quando a bolha que julgamos nos proteger é furada a sensação de impotência chega de forma esmagadora, contar esse fato brincando com as palavras é a ciência não estudada. Viva a vida, viva a capacidade de usarmos bem nossas habilidades.

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  5. Lirismo.
    Para quem um dia me falou que não entende muito sobre poesia...
    Essa é uma verdadeira crônica poética, onde fala de maneira carinhosa os momentos de um cárcere vivido, onde tocará a todos os leitores.
    A reflexão que traz, sobre esse tempo que vivemos, podemos hoje, ver de formas assim, como essa, que resistiu a união de um casal com base, outros desandaram... Enfim, que todos, tenham passado carregados de lições.
    Parabéns não só pela crônica, pela união do casal, apesar de não nos conhecermos bem, sinto uma admiração especial por vocês, Deus os abençoe!
    A propósito, por que desse título? “ Não sou eu...” ao ler me senti tão próxima, que vi a cumplicidade dos autores na crônica e foto de Magdala.

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    1. O porquê do título? A renovada certeza de que quem nos navega é o mar. Ou de que quem cuida de nós não cochila.

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  6. Essa delícia de texto me lembrou Memórias do Cárcere do Graciliano. A rotina e seus meandros de detalhes é a única arma contra o mortal sufocamento do cárcere. Dedé Dwight

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  7. Sempre cirúrgico. Parabéns por mais essa linda crônica, meu tio.

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  8. Mais uma quarta-feira despertada com um texto especial. Desta vez apoiado na lembrança de “O deserto dos Tártaros”, presente de um amigo.
    O tema do livro presenteado se encaixa perfeitamente no habitual de cada um. É que, de fato, todos vivemos uma guerra individual onde os choques de opinião geram não raro conflitos em que sempre se paga um preço alto. Para a sua administração requer-se muita habilidade e espírito de renúncia.
    Para enriquecer a sua mensagem, o autor nunca esquece de mencionar uma canção e seu compositor, cujo benefício é proporcionado à criatura humana.
    Trata-se, pois, de um texto muito tocante, poético e aureolado de uma bela foto do mar ensolarado.
    Pela habitualidade da publicação, o texto do Hayton serve até para lembrar (para os menos avisados) que o dia é uma quarta-feira.
    Obrigado pelo presente.

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  9. Quantas e quão eloquentes citações poéticas para parafrasear uma condição da vida. Uma temeridade que se abateu sobre todos nós. Melhor mesmo recolher-se. Diante do medo do sumiço final. Muitos ficaram pelo caminho. Grande desgraça se abateu na vida de famílias inteiras. Ceifadas da presença vívida. Mas, agora há certa normalidade. Que permite pensar mais detidamente, refletir sobre a jornada de cada um. E tecer comentários líricos, como o que lemos. A beleza pode estar presente até mesmo quando trata de algo horripilante e escabroso. Melhor, então, ficarmos com as finas palavras, que trazem à compreensão o bem dito.
    Roberto Rodrigues

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  10. De fato, não somos nós…

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  11. Passamos momentos terríveis... víamos pessoas irem para sempre e torcíamos para que não fossemos... sobrevivemos, sei lá a que custo. As marcas ficarão para sempre. Se é um mar, que as marés nos levem e nos tragam, pelo menos como forma de afago.

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  12. Bacana. Traduz o sentimento de nós todos.

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  13. Texto lindo, afiado… Cada vez mais lobo-do-mar.

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  14. Obviamente não li tudo que se escreveu sobre a pandemia e seus impactos no corpo, no coração e nas mentes humanas.
    Mas asseguro que o texto de hoje é o mais profundo, mais poético e mais bonito que já li sobre esse período inédito e repleto de desafios que vivemos. Ou deixamos de viver.
    Parabéns, Hayton! Eu teria o maior orgulho de ter escrito um texto brilhante assim!
    Abraço

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  15. Vc, a cada quarta feira, traz uma bela crônica que está sempre superando as demais! Consegue brincar c as as palavras , despertar sentimentos e , sobretudo , encantar ! .Como alguém já dizia exagerando até " o céu é o limite"

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  16. Ótima reflexão de um período que distanciou famílias, amizades, mas que, felizmente, ficou pra lá.
    Será?
    Luiz Andreola

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  17. Beleza de texto. Obrigado, Hayton.

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  18. Para mim a crônica que melhor expressa aqueles dias tão difíceis. Não tenho como ler só de uma vez. Em cada parágrafo, um mar de vivências e sentidos me vem à mente, conduzidos por ti. Que teu dom de poetizar a realidade, e que tua generosidade em conosco compartilhar, nunca cessem!

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  19. Maravilhoso texto e bela reflexão! Foram dois anos de sofrimento, que nos levou pessoas queridas à morte. Eu, continuo acordando às 04:30 horas fazendo minha caminhada solitária, ouvindo belas músicas ou programa espírita! Obrigada Haylton. - Belaniza Maciel

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  20. Esse tempo ficou marcado na minha vida como mais o triste de todos. Perdi três irmãs em quinze dias e, depois, uma prima. Também fiquei com muito medo de sair de casa. Ficava incrédulo de ouvir tanta grosseria e ignorância de quem devia liderar uma cruzada para salvar as pessoas e amenizar as dores. E o pior, essas aberrações eram legitimadas por muita gente. Bela reflexão de um período que, queira Deus, não vivamos nunca mais. Haroldo Vieira

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  21. O período da pandemia do coronavírus não poderá ser esquecido nunca e deverá inspirar muitos textos, reflexões, julgamentos, condenações, indenizações, como as grandes guerras o fazem até hoje. Espero que não seja deixado, ao longo do tempo, ao sabor da consciência tardia de alguns e de nenhuma de outros, como a escravidão negra, no Brasil, em especial.
    Marina.

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  22. Agostinho Torres da Rocha Filho7 de junho de 2023 às 14:39

    Quando o texto extrapola os limites do senso comum, os comentários também são muito qualificados e complementam a obra de arte literária. Nesta quarta, parabenizo, além do autor, todos os leitores que se dispuseram a dividir conosco suas reflexões sobre período tão atribulado de nossas vidas. Parabéns!!!

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  23. Que coisa linda, Hayton! Você diz que “precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. Veja só o que nos trouxe: uma aula de leveza, de poesia, encantamento, mesmo tratando daqueles dias tão dolorosos. Parabéns a você. Parabéns a Magdala pela linda fotografia.

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  24. Sem dúvida, foi uma clausura que nos fez refletir sobre muitas coisas. Ainda não podemos dizer se as "doses" foram para aniquilar o vírus ou, como alguns acadêmicos afirmam, para tornar ainda mais milionários alguns "agentes" econômicos e políticos.
    O lado triste foram os mortes, mas, em compensação, muitos mais se salvaram...
    Sua crônica, caro Hayton, mostrou, em linhas desenhadas qual uma partitura, ora a incerteza, irá a certeza da vitória. PARABÉNS.

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  25. Mais uma poesia em prosa, brilhante como sempre, você brinca literalmente com as palavras.
    O mais singular, intrigante até, é sua capacidade de aproveitar versos consagrados em composições musicais unanimemente reverenciadas, colocando-os em descrições inusitadas e com uma proficiência que certamente deixaria boquiabertos em admiração, os autores das peças.
    Não posso deixar de registrar também, o jogo que você faz com o uso de expressões inimagináveis por "nosotros", que compomos o universo de seus admiradores. Só uma pequena referência, -"caminhar solitário no silêncio de meus barulhos", é algo que merece ser eternizado como pérola da literatura de Pindorama.
    Por fim, inspirar-se em uma pandemia trágica acontecida no Planeta que nos hospeda, pra produzir uma pérola como essa sob comentário, é algo que emociona até os mais resistentes a tal sentimento.
    Eu, sentimental por natureza, confesso que realmente marejei aqui. E tive dificuldade pra me manifestar, haja navegação...

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  26. Um pouco de cada um de nós, “E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso. “ a gente vai se encontrando em cada parágrafo, e reflete, essa foi a melhor crônica, mas pelo que o autor tem oferecido , outras melhores virão, parabéns!

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  27. Que coisa bonita amigo Hayton. Sua sensibilidade aguçada não se distraiu e nem se constrangeu com o confinamento compulsório. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
    Beto Barretto

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  28. Excelente crônica! Capturou todo o contexto, sentimentos e angústias da ocasião. De fato, quem nos navega é mar... resta-nos surfar as ondas ou nadar contra elas, conforme os valores que elas embalam...

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  29. Até hoje me pego pensando sobre aquele pesadelo universal. Me lembro da minha passagem pelo pequeno cárcere, já com risco bem controlado.
    Quando vêm as lembranças mais dramáticas e dolorosas, confesso que fujo o pensamento.
    E o grande Hayton encontra poesia pra relembrar. E nos permite viajar por essa história sem sofrer tanto.
    Abraço, meu prezado Amigo!

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  30. Só agora li essa tão bela cônica de tão tristes dias vividos e sobrevividos. Fui lendo e escrevendo este poema:

    Viver sem ter vido
    Saber sem ter sabido
    Ter sem ter tido

    Esperar pela guerra que não deveria ter existido
    E quando chega já nos encontra combatidos
    Oprimidos nos nossos próprios asilos

    É na minha própria prisão
    Que busco libertar meu coração
    E finalmente colocar os pés no chão

    Água do mar tão perto
    E eu, eu...
    Só olhar


    Stoney Palmeira Melo
    Maceió, 14 de junho de 2023

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  31. Divagações maravilhosas... é bom refletirmos sobre a vida vez em quando...

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