quarta-feira, 31 de maio de 2023

Resta aprender

Mal começa 2023 e um campeão olímpico posta em sua conta no Instagram uma foto com uma espingarda nas mãos. E não se trata de atleta de tiro esportivo, modalidade presente nos Jogos Olímpicos desde a primeira edição, em 1896, em Atenas. 

Reprodução/Redes Sociais 

Então Wallace de Souza, 35 anos, “astro” do voleibol do Cruzeiro, de Belo Horizonte-MG, abre uma caixa de perguntas para seus seguidores. Logo, um dos fãs quer saber se ele daria um tiro na cara do presidente da República. O atleta retruca: “Alguém faria isso? Sim ou não?”. A "enquete" viraliza. Só é deletada horas depois, quando alguns prints já circulam nas redes sociais.

 

O fato é alvo de repúdio da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e do Governo Federal, através da Advocacia Geral da União.

 

O jogador é suspenso por 90 dias, período que abrange a data da final da Superliga Masculina de Vôlei, o que o leva junto com seu clube a buscarem a suspensão da pena no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.


O STJD aceita o argumento e concede liminar. A CBV, porém, vê impasse entre a decisão do Conselho de Ética do COB e a liminar emitida. Aciona então o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, órgão privado que é usado para mediar conflitos. Dá-se razão ao STJD.

 

Na final da Superliga Masculina, o "astro" entra em quadra, marcando inclusive o ponto do título de seu clube. Isso desagrada o Conselho de Ética do COB, que contra-ataca com um duro coice: a suspensão pula de 90 dias para cinco anos. Pune-se também a CBV, que é desvinculada do COB e perde as verbas que recebe do Ministério dos Esportes e do Banco do Brasil. 

 

Entre bravatas e coices, escorrem pelo chão da Pátria amada barris de intolerância política. E tudo deságua numa incitação à violência por parte de alguém supostamente esclarecido, ciente, imagina-se, do grau de discernimento de seus seguidores. 

 

Mas o petardo devolvido pelo Comitê de Ética do COB é descomunal. Querem matar beija-flor com tiro de bazuca. Ou acabar com o carrapato matando o gado. Isto é, no caso, quer asfixiar até quem não deu motivo a nada disso: o vôlei, como modalidade esportiva.


Quando o Banco do Brasil passa a patrocinar a CBV, há 32 anos, as conquistas das seleções de quadra e praia (feminina e masculina) fazem delas protagonistas nas principais competições pelo mundo afora. Rapidamente, o vôlei consolida-se como a segunda paixão nacional em termos esportivos, porém bem mais organizada do que a primeira.

 

Hoje, a primeira paixão do brasileiro agoniza com clubes falidos (exceto uma meia dúzia, que não sobrevive a médio prazo sem o fortalecimento dos demais), calendário desumano, baixa qualidade das partidas, estádios ociosos, violência entre torcidas organizadas, denúncias de apostas envolvendo cartões e pênaltis (leia-se, manipulação de resultados) etc.

 

Quanto à segunda paixão, desde 2001 uma incubadora de talentos instalada em Saquarema-RJ espanta e encanta o mundo. É o Centro de Desenvolvimento do Voleibol, espaço de 100 mil m2 com toda a estrutura necessária à formação de atletas, como ginásio, quadras, salas de musculação, alojamentos e até creche, o que, sem dúvida, explica o salto quântico da modalidade nas últimas três décadas. 

 

De lá para cá, se o futebol conquista as Copas do Mundo de 1994 e 2002, além da medalha de ouro nas Olimpíadas de 2016 e 2021, o vôlei, com bem menos recursos investidos, alcança nove títulos da Liga das Nações. E nos Jogos Olímpicos, três medalhas de ouro (Barcelona, Atenas e Rio de Janeiro).

 

Ainda bem que toda pena desproporcional tende a ser revista, pelo menos em nações minimamente civilizadas. Afinal, como aprendi quando era criança, "cavalo só dá coice porque não sabe conversar". 

 

E uma conversa aqui, outra ali, chega-se a um acordo. Prego batido, ponta virada! O vôlei, mais uma vez, se revela maior do que as pessoas e as instituições nele envolvidas:

– O responsável pela "enquete" já cumpre novo período de suspensão por 90 dias e está impedido, por 360 dias, de integrar a seleção brasileira (fora, portanto, daquela que poderia ser a sua última Olimpíada, ano que vem, em Paris).

 – O COB não reconhece a validade do resultado da final da Superliga Masculina de Vôlei.

– A CBV, que mantém as suas fontes oficiais de patrocínio, obriga-se a custear programa de valorização da postura ética de atletas nas redes sociais, sob a coordenação do COB. 


Em termos tácitos, porém, o acordo refresca que:

– Cada "astro" é, sim, responsável pelo impacto que a divulgação de sua opinião causa no universo em que atua. 

– Liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto. Nem o direito à vida é (prova: o direito à legítima defesa).

– Acima de todas as diferenças, é preciso garantir a convivência pacífica e educada entre elas. 

 

Como bem canta Beto Guedes em Sol de Primavera, “a lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. E chega de tentar aparar arestas de opinião na base da espingarda. Ou de coices!

21 comentários:

  1. Gosto muito dos seus textos porque sempre me levam a muitas reflexões.
    Sou daquelas pessoas que geralmente gostam mais de filmes e peças teatrais com as quais o prazer maior vem depois. Não gosto de ler, antecipadamente, sinopses e nem críticas desses, mas de ser surpreendida pela minha percepção. Já me ocorreu de assistir a um filme e, só muito depois, me dar conta de tantas mensagens que não percebi no momento. Gosto de ruminar as ideias e fazer associações.
    Esse texto, em especial, aborda um tema muito pujante e de extrema importância - até que ponto vai a nossa liberdade? O que vai além da liberdade de expressão.
    Nos obrigaram a usar cinto de segurança, nos proibiram de dirigir sob efeito de álcool, de tocar música alta em nossas casas até altas horas, de limpar a nossa honra com as próprias mãos, de espalhar fofocas, difamar, sermos racistas, cometer abusos sexuais, de sermos homofóbicos e, por aí vai...
    Será que passamos a viver num mundo de mi-mi-mi ou será que estamos no caminho da civilidade, na qual o nosso direito acaba quando esbarra no direito do outro?
    Eu gostaria muito de viver num mundo em que não fosse necessário ter leis para nos proteger, onde o respeito e consciência fossem moderadores de um convivência baseada no respeito ao outro. Mas nem todos têm o superego maior que o ego e se colocam como o centro do mundo, eu tudo posso.
    Uma sociedade em que cada um faz e diz o que quer, inclusive dando vazão e liberdade até aos instintos mais primitivos (violência e sexo) alimentaria a barbárie que nos levaria ao caos. Precisamos de limites e são as leis que nos colocam no patamar de sociedade civilizada.
    A liberdade de expressão não pode transgredir a lei. Incitação ao ódio é algo muito perigoso e quando parte de figura pública o alcance pode ser bombástico. Cartão vermelho bem aplicado!!!

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    1. Parabéns pelo comentário. E obrigado por descrever com muita lucidez o mundo em que estamos inseridos.

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    2. Punição política

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    3. Parabéns pela análise.
      O que o atleta fez foi grave e poderia ter desencadeado cometimento de crimes, inclusive contra a vida.
      A lei precisa evoluir para tipificar de forma mais precisa atos dessa espécie.
      Ficou "barato" para o atleta que deveria ter sido punido de forma mais contundente.

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  2. Uma crônica que "obrigatoriamente" nos põe a refletir sobre "será que as penas impostas no caso realmente foram em excesso? Após ler seu artigo, chego a conclusão que foram. Mas aí vem o comentário acima, um show de visão, em minha visão, e me faz voltar a refletir sobre essas situações... Confesso que vou, ainda, refletir e muito sobre o caso.

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  3. Hayton, você não tem medo de tocar nos assuntos mais complexos e reveladores da índole humana. E o faz com maestria, com posição, com coragem. O tema de hoje oferece mil comentários e não se esgota. Ficam muitas perguntas o que leva pessoas a certas atitudes - reprováveis no caso, como incitar o ódio, agredir, tomar telefones, falar o que não deve ou simplesmente divulgar notícias falsas? E qual a medida da punição que merecem? É mais relevante reparar a ofensa ou preservar a ordem social?

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  4. Ademar Rafael Ferreira31 de maio de 2023 às 07:45

    Somos a terra do "ou OITO ou OITENTA", o equilíbrio e o bom senso não artigos inexistentes.Temos muitos para "julgar" e poucos para "ensinar". Muitos conselhos e poucos exemplos.

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  5. Eu não li sobre esse caso em sua extensão e desdobramentos. Mas, realmente, punir o clube e a torcida (por extensão) por um ato individual, não faz sentido, a menos que tenha hábito algum contexto que não tomamos conhecimento.
    Mas o saldo me parece positivo, uma vez que se propõem a “dar aulas” sobre procedimentos adequados a pessoas que estão expostas aos holofotes da mídia e da sociedade.

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  6. Por tudo descrito, com detalhes ricamente narrados, temos muito a lamentar a situação insustentável que vivemos. Os ânimos ficaram alterados e não querem mais voltar ao normal. Que hoje é uma peleja constante entre lados opostos a mirar um no outro sua artilharia mais pesada. Como resultado, temos uma paralisia provocada por ações e reações contundentes e urdidas a ferro e fogo. Onde foi parar o bom senso? A razoabilidade onde está? Os objetivos maiores, que são o compromisso com o povo e a nação ficam esquecidos, jogados às traças do radicalismo insano. E, mais uma vez, o país atravessa um daqueles apagões. Onde o nada é o resultado gerado. Quantas vidas deverão ser ceifadas até que cesse essa estupidez institucionalizada? O povo brasileiro chora, mais uma vez, por não ter direitos preservados ou garantidos. Por ser manipulado por forças tão descompromissadas, omissas e ignorantes e arrogantes. Rezemos somente para que este imenso desvario que grassa em terras tupiniquins cesse. E venham tempos de maior clareza daquilo que carecemos: paz, justiça e desenvolvimento em todas as suas formas.
    Roberto Rodrigues

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  7. Parabéns por mais um texto publicado. Digno de nota o comentário feito por Déborah Almeida. Entendi que poderia se transformar numa nova colunista, seguindo as suas pegadas. Note-se também que ela se dedicou à missão cedinho, às 5 e pouco da manhã. É algo admirável.
    Voltando ao eixo, o tema da sua abordagem é muito sensível e a motivação muito subjetiva. Não me parece que o autor do “insulto “ tenha tido intenção de ofender ninguém e sim dar a sua contribuição para o bem-estar geral. Como consequência, os desdobramentos vieram e o prejuízo avassalador veio a reboque. É uma pena.
    Parabéns por mais uma meta cumprida. Até a próxima semana.

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  8. Concordo que a educação é essencial para que mudanças aconteçam nesse faroeste de coices, chicotadas e espingardas. No entanto, sabemos que muitos “cavalos” não querem aprender a conversar. Acham que já sabem tudo. Para esses casos, quem sabe a gente descubra algum tipo de spray (não o de pimenta) que ative o desconfiômetro, o simancol e o bom senso civilizatório.

    Luiz Andreola

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  9. Na minha humilde opinião ele fez uma ameaça ao representante máximo da nação. Queiramos ou não, Lula é o presidente deste país. Em qualquer outro país provavelmente seria preso por isso. No entanto aqui as pessoas andam confundindo falta de respeito com liberdade de expressão, e ou sinceridade. Há uma total falta total de bom senso reinando aqui.
    Que a nossa existência seja a mais linda expressão de liberdade. Ser livre não implica necessariamente em fazer o que der na telha na hora que quiser, isso é coisa de criança mimada. Ser livre é um estado de espírito que transcende todas as tentativas de condicionamento.
    Um ser livre enxerga além dos rótulos, dos gêneros, das castas. Não se prende a necessidade de afirmação de nenhuma natureza, não sente nenhuma necessidade de ser maior; sabe que isso é ilusão.
    Liberdade é escolher por onde caminhará, mesmo que os cenários não sejam os ideais. É saber que há dias mais difíceis do que outros, há curvas, há tropeços, mas em tudo oportunidade de significado, de ser em liberdade.
    Estamos precisando de uma educação em que se trabalhe mais o respeito e o Bom Senso e que estão em extinção no nosso (des) País!

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  10. Cada crônica traz reflexões necessárias ao nosso cotidiano, em todos os sentidos, quando se perde razão.......não dá para ter paz, nem tampouco consenso......

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  11. Excelente, Hayton. O esporte não pode ser punido pelo infeliz comentário do atleta. Seu texto foi brilhante, esclarecedor e resgatou a história do sucesso do Vôlei no Brasil.

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  12. Você aborda, com o brilhantismo costumeiro, um tema nevrálgico nos dias de hoje em nossa (?) PINDORAMA.
    E ao fazê-lo, até defende uma tese de que não se pode discordar, se analisada com lucidez.
    De se destacar também o brilhante, incontestável e irrefutável comentário postado por DEBORATH ALMEIDA, a quem não tenho o prazer de conhecer, mas já admiro daqui de longe.
    Até fica difícil acrescentar mais qualquer coisa aqui, já é um privilégio aprender as lições.

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  13. Sou cruzeirense, mas o Wallace errou feio. Quem deixou ele jogar a final da Superliga, errou mais feio ainda. E quem deu uma suspensão de 5 anos transformou Wallace em vítima.

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  14. Hayton
    Belíssimo texto. Provocativo, toca na discussão que pra mim nem tem conflito ético. Talvez uma discussão para dosimetria da pena. Por que? Raiva e inveja são sentimentos feios que a gente tem dificuldade em admitir. Eu admito que sinto muita raiva de Bolsonaro pq o considero um dos responsáveis pela morte de 3 amigos queridos e de muita gente que poderia estar aqui se as vacinas tivessem sido compradas qd foram ofertadas. Ele não quis! Nem por isso algum dia pensei em.matar ou sugerir a morte dele ou de qq outro político. Assim, o vôlei n deve ser penalizado e sim quem cometeu crime. Isso é simples: bota o Wallace na cadeia por incitação ao crime e encerra o assunto, tira das quadras uns 5 anos. O resto é apenas consequência do que ele fez. Não importa quantos títulos ele ajudou o Brasil a ganhar, se joga pelo Cruzeiro, pelo Flamengo ou pelo meu time. Mas no Brasil o mais fácil em termos de justiça é complicar. Um dia está p....ainda muda.

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  15. Na verdade o que não for do agrado do poder atual é feito estardalhaço e a punição tem que ser exemplar na sua linguagem. Quando uma atleta de vôlei de praia foi agressiva com o presidente anterior o banco do Brasil não retirou o apoio nem ela sofreu punição. São dois pesos e duas medidas

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