quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Melhor assim

“Tanto tempo depois, que coisa boa ver vocês dois ainda caminhando de mãos dadas!” – disse uma amiga de minha mulher, contemporânea escolar no começo dos anos 1970, ao cruzar conosco no calçadão da praia de Ponta Verde, próximo ao Marco dos Corais, em Maceió. Achando pouco, completou: “É coisa pra mais de 100 anos!”. E a julgar pelo riso enigmático de minha mulher, gostou da forma pela qual somos percebidos.

 



Ah, essas criaturas misteriosas e sensíveis! Tudo em nome do sexto sentido, da emoção! Não sabe a amiga dela que, antes de “coisa boa”, mãos dadas aqui tem a ver com diminuir o risco de uma queda precipitar o desfecho da caminhada, via concussão cerebral, fratura de bacia, cotovelos ou tornozelos de seminovos com as articulações desgastadas pela malvadeza do tempo, "tambor de todos os ritmos", como diz o poeta. Sem falar dos males crônicos, objeto de interesses conflitantes entre o plano de saúde, o fundo de pensão e a indústria farmacêutica.

 

Tudo bem, pode ser ilusório. Digo isso porque não boto tanta fé nos poderes da santa que me segura pela mão, com seus 52 quilos sobre metro e meio da cabeça aos pés, conseguir evitar o tombo do mamute aqui, com mais de seis arrobas há décadas. Isso, mesmo sendo tratado à míngua quanto a bolo “Souza Leão”, caldo de cana, chope, cocada, doce de leite, pão doce, pastel, pirão, pudim, rapadura, tapioca e outras "coisas boas" que é melhor esquecer pra não engolir saliva.

 

Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.

 

Se não infartamos com os sustos provocados por esses miseráveis, nem ainda transferimos aos nossos herdeiros a incumbência de repartir os caraminguás que juntamos em nossa jornada cigana, é provável que já desfrutemos de músculos cardíacos mais robustos por conta do exercício aeróbico diário. Se bem que, a  qualquer hora dessas, entre uma batida e outra do coração, tudo pode mudar.

 

Mas nessa toada, lá se vão mais de três décadas de calçadões. Desde que me vi obrigado a abandonar as peladas – ou elas a mim, nunca sei, quando perdi a esperança de ser convocado pela Seleção Brasileira – e fomos morar no Recife, onde, toda manhã, driblávamos dejetos caninos entre as praias de Boa Viagem e do Pina. 

 

Que fique bem claro, nós nunca encontramos pelo caminho La belle de jour, a moça dos olhos azuis como a tarde de um domingo, decantada por Alceu Valença como a mais linda de toda a cidade, para quem, aliás, escrevera o seu primeiro blues. Talvez porque, insone ou notívaga, sei lá, ela dormia tarde da madrugada e não conseguia acordar cedo. Poetas não mentem; se tanto, aumentam. Muito!


Quando eu era menino – não parece, mas já joguei no time –, ainda em Maceió, trabalhei de office-boy num grande banco, sendo um dos responsáveis pelo intercâmbio de documentos entre setores espalhados por mais de 10 andares. A ansiedade natural dos imberbes e a presunção de que assim agradaria “ao patrão” não me deixavam esperar pelos elevadores, sobretudo se me cobravam celeridade nas entregas. 

 

Na época, andei lendo em Seleções (versão brasileira da revista norte-americana Reader’s Digest) que subir oito lances de escada por dia reduziria em 1/3 o risco de mortalidade precoce. Resultado: subia e descia escadas o dia inteiro, seguro de que, agindo assim, seria visto como Raul Seixas em Ouro de Tolo, isto é, um cidadão respeitável, empregado, ganhando 327 cruzeiros mensais de salários. 

 

Não demorou muito e um colega cascudo, preguiçoso até pra se levantar da cadeira no final do dia, me viu no corre-corre e perguntou, fingindo ter dó de mim: “Você sabia que, em 1853, um americano chamado Elis Otis gastou uma grana preta pra inventar o elevador de passageiros?” E antes que eu confessasse a minha ignorância, disparou: “Deixe de ser besta, rapaz! Você acha inteligente não usar uma coisa boa dessas?” 

 

Tinha razão. Passei a usar também os elevadores. Mas até hoje me lembro daquela figura lerda (que partiu cedo pro chamado descanso eterno) toda vez que, por exemplo, me vejo numa escada rolante sem mover uma pálpebra.

 

Falando em escada, diz minha mulher que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Eu, que não sou besta e disfarço bem minha pouca leitura sobre o que está nas entrelinhas, faço de conta que acredito. 


Melhor assim, a esta altura da caminhada.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Não custa tentar

Meu avô deve pensar que está em baixa na memória afetiva dos netos porque um deles passou o dedo em sua testa e brincou: “Vô, de Uber, dá 10 reais do cocuruto à ponta do seu nariz!”. E outro completou: “Vô é legal, mas mija de hora em hora!”.

 

Foto: Poliedro / Divulgação (Facebook)

Em meio à algazarra, imaginei o troco (com delicadeza, claro!): “Pois é... Tomara que um dia vocês também cheguem lá e escutem isso de seus netinhos...”. Creio que evitou polemizar para não parecer intolerante, agourando os ramos noviços de sua própria árvore genealógica. 

 

Pensei em abraçá-lo e pedir que relevasse os gracejos de meus primos. Chega uma hora em que até a expansão desenfreada do desmatamento capilar, a próstata crescida e a velhice devem ser encaradas como conquistas. Mas me contive: ele nunca gostou dessa coisa de abraços (e beijos) em público, nem com minha avó.

 

Deveria haver um distintivo para compensar os avós contra os infortúnios a que estão sujeitos. Sei lá, uma tatuagem entre as sobrancelhas, como um estigma, que concedesse certos privilégios: garantia de acesso livre a cinemas, museus e teatros; proteção especial das autoridades constituídas; gratuidade nos correios para intercâmbio de livros com os sebos, disponibilidade de um ouvidor geral para acolher e encaminhar queixas junto aos santos, entre outros. Eis aqui uma dica de projeto de lei, com forte apelo popular, a ser submetido à deliberação de órgãos legislativos.

 

Os netos de hoje andam cada vez mais espertos. Outro dia, na praia, ouvi um menino (8 anos, se muito) falando com o pai e fiquei impressionado. Sim, conversava com o pai, mas aposto que seja neto de alguém.  Dizia do susto que tomara com a arrebentação de uma onda que lhe fizera engolir água salgada: “Pai, eu estava no raso, pensando na vida...”  

 

Só faltou filosofar sobre o sal e a doçura de viver; ou convencer seu pai de que, se não existe vida extraterrestre, a vastidão do Universo constitui um grande desperdício de espaço, algo incompatível com a inteligência divina. Mas não chegou a tanto, ainda bem! Foram apenas alguns goles de água salgada.

 

Se visse a cena, é provável que meu avô comentasse com a gente: “Ah, crianças, acreditem, eu só fui pensar seriamente na vida depois dos 30 anos, já casado e pai de três, quando resolvi largar o cigarro e beber menos. Ultimamente, me contento com duas ou três taças de vinho, em momentos cada vez mais raros. E lá se foram 35 anos em que não me dou o desfrute de três baforadas...”. 

 

Talvez acrescentasse, como li numa crônica que ele escreveu: “Até cinco ou seis anos atrás, todas as vezes em que tomava uma sopa em colheradas lentas, acompanhada de um pãozinho francês, batia saudade dos tragos que dei, daquela breve vertigem que me esfriava os dedos, deitado numa rede, a pensar na vida...Que vício desgraçado!”.  

 

Desconfio de que a gozação por parte de meus primos seja reflexo do fato de terem nascido, assim como eu, com livre arbítrio para escolher para qual clube torcer, desde que fosse o Vasco. Nada demais para quem, desde a vida intrauterina, dormia embalado por uma canção de ninar que começava assim: “vamos todos cantar de coração, a cruz de malta é o meu pendão...”. 

 

Ano passado, recebi de meu avô uma mensagem cujo arremate me comoveu: “Assumo minha culpa por nunca ter dito de todo o amor que sinto pelos meus netos, sentimento que não impõe condições nem espera nada em troca, exceto, se não for querer demais, um sorriso e dois dedos de prosa, de vez em quando...”.  

 

E me aconselhava a, por enquanto, deixar de lado o futebol. Dizia que só no YouTube vou saber quem foram Romário, Edmundo, Juninho Pernambucano e Felipe, que fizeram a cabeça de meu pai. Assim como Dinamite, Andrada, Zanata e Geovane fizeram a dele. Ou como Ademir Menezes, Barbosa, Danilo e Ipojucan balançaram o coração de meu bisavô, que nem cheguei a conhecer.

  

Brincalhão – os netos tiveram a quem puxar! –, agora está me sugerindo conversar com meus primos para tentarmos um esporte menos estressante, como o muay thai (boxe tailandês). E fala de seu desgosto quando nos vê cabisbaixos, com celulares nas mãos até na hora do almoço. 


“Tudo, menos celulares na mesa! Notem que já não vemos jogadores de futebol se abraçando após uma partida, como acontece com lutadores, que seguem amigos mesmo após uma sangrenta refrega onde cada um tenta acertar o outro com socos, cotoveladas e pontapés...” – pondera.

 

Não custa tentar. Vou chamar meu avô para jogar xadrez, baralho, dominó ou pega-varetas com a gente. Quem sabe nos ajuda a refletir sobre o sal da vida e a doçura de ainda tê-lo entre nós.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Por isso tô aqui!

Correu o mundo, semana passada, a notícia de que a madre superiora Teresa Agnes Gerlach, encarregada do Mosteiro Carmelita da Santíssima Trindade em Arlington, no Texas, Estados Unidos, foi acusada de enviar mensagens de texto com conteúdo sexual a um sacerdote, identificado como padre Philip Johnson.

 

Embora tenha confessado o envio das mensagens, ela alegou que nunca houve intimidade física entre eles. Demonstrando remorso durante uma audiência na diocese, Teresa disse que o vacilo foi motivado pelo amor que nutre pelo padre. "Eu cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito. Até uma freira pode cair"

 

Por coincidência, isso me fez recordar de outro padre Johnson (deve estar bem velhinho!), um missionário canadense que viveu no Brasil em meados do século passado, que me matou a curiosidade sobre algumas hipóteses para o nome da missa celebrada na véspera de Natal. A mais aceita pela fé católica, segundo ele, diz que um galo teria cantado à meia-noite do dia do nascimento de Jesus, anunciando a chegada do Messias – a única vez que um galo cantou antes do amanhecer. 


Há quem diga que um galo cantou quando o apóstolo Pedro negou três vezes conhecer Jesus. Outros afirmam que o animal simboliza o amanhecer, celebrado pelos pagãos com gratidão ao Deus-Sol. Ou que a missa leva esse nome porque acaba tão tarde que os galos já estão "tecendo a manhã", como no poema escrito por João Cabral de Melo Neto, que levou mais de oito anos e 32 versões para ser concluído.

 

De fato, padre Johnson era bastante curioso, interessado nos mais variados assuntos, uma verdadeira “enciclopédia Barsa”. E lidava na paróquia com muitos adolescentes cheios de cravos, dúvidas e espinhas, a quem oferecia sábios conselhos, merecendo, por isso mesmo, o respeito das famílias do bairro. 

 

Tanto respeito, inclusive, o levava a benzer casas recém-construídas. Nada cobrava para si nem para a Igreja, mas exigia três coisas: uma barra de enxofre, um prato de sal grosso e uma lata de carvão vegetal. Só então tinham início as orações e o enaltecimento da imagem de Nossa Senhora. Depois, partiam para o quintal onde estava a cisterna ou o poço, onde ele despejava os materiais requisitados. E a casa estava abençoada.

 

Anos mais tarde, depois que retornou para a América do Norte, descobriu-se a lógica “espiritual” do benzimento: o sal grosso é fonte de minerais e de iodo, elementos importantes para a nutrição e a saúde; o enxofre fortalece a imunidade e participa da produção de colágeno; e o carvão, que além de eliminar cheiros e sabores desagradáveis da água, é grande aliado no tratamento de gases gastrointestinais, combate o inchaço e dores abdominais.

 

Curioso como poucos, numa época em que nem se cogitavam avanços científicos do porte de um chatbot online de inteligência artificial, padre Johnson sabia da vida de todos os moradores do bairro. Era estuário e cofre das confissões e segredos comunitários, dos pecadilhos veniais aos mais encardidos.

 

Fotografia: Dedé Dwigth


Certo dia, Teresa (outra coincidência, acreditem!), uma loirinha que morava no bairro, curtia cinema, teatro e dançar solta, livre e leve, ao ritmo  de Os Embalos de Sábado à Noite, procurou o padre Johnson bem cedo, indo ao ponto:

– Padre, eu sei que pequei, mas tô arrependida. Cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito.

– Como foi isso, minha filha?

– Nem faço ideia. Me pegou desprevenida, juro! 

– Sei… E daí? 

– Daí que ele me perguntou se podia botar pra fora. 

– E você?

– Quase infarto. Tinha tão pouco tempo que a gente… 

– Quanto?

– Três semanas.

– Só?! Já tinha acontecido algo mais sério entre vocês?

– Nada demais… Só uns abraços apertados, dançando "Je t'aime... Moi Non Plus"Something... E um selinho na boca, vai! 

– Pois é… E ele?

– Ele o quê, padre?

– Botou pra fora?

– Nem me fale…

– Botou ou não botou?

– Não me deixe mais acanhada…

– Veja, filha, foi você que veio me procurar. Só posso ajudar se souber o que ocorreu – pondera o confessor, no auge da excitação de todo curioso quando prestes a descobrir um segredo felpudo.

– Não sei se vou ter coragem de contar.

– Por que não? O pior já passou, imagino…

– Sei não… Era enorme, padre…

– Eu devia ter desconfiado desde domingo... Você aqui na missa ao lado dele, toda animada... Tinha uma coisa esquisita no ar…

– Na hora, o susto foi grande, fiquei muda. Fechei os olhos e rezei baixinho…

– Seja mais clara, filha, me conte tudo o que houve.

– Assim que ele desabotoou, aquele troço deu um pulo…

– Você chegou a apalpar?

– Como?

– Filha, das passagens bíblicas que tratam do pecado da luxúria, uma das mais incisivas é a que está em Gálatas 5:19: “Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem”. E em Colossenses 3:5-6, tem outra referência: “Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês: imoralidade sexual, impureza, paixão, desejos maus... É por causa dessas coisas que vem a ira de Deus sobre os que vivem na desobediência”. Mas, me diga uma coisa: o que você tá chamando de “troço”?

– Padre, tô falando da hérnia no umbigo dele… Parece uma bola de ping-pong de couro! – explicou, com um sorriso ambíguo.

– Eu, hein?! Pensei que…

– Também pensei, padre… Por isso tô aqui!




quarta-feira, 12 de julho de 2023

Divinas tetas

Numa época em que se recorria muito a falas estereotipadas, o humorista Max Nunes afirmou que “o casamento é como a pessoa que quer tomar um copo de leite e compra uma vaca”. E o cartunista, escritor e dramaturgo Millôr Fernandes completou: “se, de vez em quando, o leite azeda por aí, não tenho nada com isso; a vaca não é minha. Escolham melhor na próxima vez”. 

 

Mais tarde, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor contradisse seus velhos amigos. “Para todos os homens que perguntam ‘por que comprar a vaca se você pode beber o leite de graça?’, aqui está a novidade: hoje em dia, 80% das mulheres são contra o casamento e sabem por quê? Porque perceberam que não vale a pena comprar um porco inteiro só para ter uma linguiça!”. 


Reprodução/Redes Sociais

Sobre vacas, aliás, você sabia que uma startup gaúcha (a CowMed) conseguiu decodificar, com Inteligência Artificial (IA), o que elas falam, pensam, querem ou sentem? Uma coleira tecnológica que interpreta o comportamento bovino foi apresentada ao mercado como uma ferramenta poderosa para ajudar os pecuaristas a se comunicarem melhor com seus rebanhos. 

É uma peça de nylon, com autonomia de cinco anos, capaz de monitorar os animais por 24 horas, em tempo real, enquanto o criador recebe, no celular, notebook ou tablet, uma espécie de tradução. Ajuda-o a descobrir com antecedência as necessidades mais prementes das vacas. O aparelho analisa cada movimento ou som e informa o que pode ser: cansaço, cio, dor, fome, sede etc. Ansiedade, bullying, compulsão por redes sociais ou transtorno obsessivo-compulsivo, ainda não. 

 

Também monitora variáveis como tempo que leva se alimentando, tempo de ruminação, de descanso, de caminhada, qualidade da respiração etc. Com esses dados, utiliza-se a IA para interpretar a “alma” da vaca.

 

Tenho para mim que essa ferramenta terá uso adicional bastante útil noutro tipo de rebanho, mas isso seria assunto para outra crônica.

 

A peça identifica ainda, com até cinco dias de antecedência, se a vaca vai ficar doente. “Existem sinais clínicos imperceptíveis, porque o bovino, por ser uma presa, tem a característica de esconder a doença. Com o sistema, é possível analisar os sinais e fazer um diagnóstico precoce”, pontuou um dos acionistas da CowMed.  

 

Em resumo: após o pagamento da primeira parcela, o produtor recebe o kit de instalação com colares, antenas, material de treinamento, acesso à plataforma web e o aplicativo. Precisa apenas ligar o equipamento na tomada e colocar uma coleira em cada animal. A comunicação se dá por radiofrequência e Wi-Fi. A partir daí, só Deus sabe o que vai rolar na “conversa de pé-de-orelha”.

 

Foi-se o tempo das vacas magras, ainda que os ossos nos ofereçam as melhores sopas. 

 

Essa “humanização” me fez recordar da célebre crônica “Por vários motivos principais”, de Stanislaw Ponte Preta, acerca de um jantar envolvendo a fina flor do high society da capital da República, quando uma provecta senhora declarou que adorava a sua obra. E mais: que estava ansiosa para ler o próximo livro, cujo título, se possível, gostaria muito de saber em primeira mão.

 

“Fiquei meio chateado de revelar o nome... Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse: Vaca, Porém Honesta” – escreveu o genial cronista.

 

Segundo ele, “a madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original”. Vai ver ponderou que por aqui vaca é sinônimo de concubina, devassa, galinha, oferecida, marafona, meretriz, piranha, promíscua, prostituta, puta, quenga, rameira, rapariga, tolerada, vadia, vagabunda, dentre outros. 

 

Quase sempre, o uso desses sinônimos não passa de exagero em relação à vizinha ou à amiga do marido. Se bem que já testemunhei machão brincando que “nunca viu gato de botas, mas já viu vaca de salto alto”. Só depois do divórcio, admitiu outra pesada sentença: “Duro não é suportar o peso dos chifres, é continuar sustentando a vaca”. 

 

Essa visão distorcida sobre a gloriosa fêmea do gado bovino, mãe de leite de quase todos nós, talvez tenha sido ampliada quando Gal Costa, no Rock in Rio, em 1994, subiu ao palco com os seios à mostra para cantar "Brasil", de Cazuza.

 

“(...) Brasil, mostra a tua cara.

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim!

Brasil, qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim! (...)”

 

Aos mugidos, a plateia delirava, por certo desejando ouvi-la (em vão, registre-se!) cantando "Vaca Profana", que Caetano Veloso escrevera para ela 10 anos antes:

 

“(...) Dona das divinas tetas,

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas! (...)

 

Com a criação da CowMed, nossas vacas nunca foram tão bem tratadas e se distanciam do indesejável caminho do brejo. Se vamos descobrir que são mentirosas, só o futuro dirá. 

 

Quem sabe os caretas pendurados nas tetas orçamentárias da Pátria-mãe se animam a fazer algo parecido pela massa que passa fome, nutrindo-se da esperança de levar, pelo menos, uma vida de gado. 

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Basta um copo d'água

Tudo bem, era o delegado de uma cidadezinha do interior, mas, antes de tudo, meu velho amigo havia décadas. Porém foi inflexível naquela tarde:

– De jeito nenhum! Tu entende de banco. Deixa que cuido de meu trabalho.

– Ele vai morrer à míngua, velho!

– Sei o que tô fazendo, não te mete…

 

Enquanto ele conversava ao telefone, eu circulara pela delegacia e dei de cara com um bêbado deitado numa cela, nu cintura acima, cheirando a chuva, suor, cerveja e vômito, a implorar num fiapo de voz: “… Um copo d’água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede!”


Fotografia: Dedé Dwight 

Tive pena. Preso na noite anterior, num comício na praça da Matriz, ameaçara o prefeito com uma peixeira. “Porte de arma branca e tentativa de homicídio”, segundo o boletim da ocorrência.

 

O prefeito defendera no palanque a candidatura de seu vice à sucessão municipal, enaltecendo supostas virtudes: “É pai de família decente, trabalhador, honesto, comprometido com os verdadeiros cidadãos...”

 

Nisso, um pacato cidadão que a tudo assistia da mesa de um boteco (e acabaria preso) interrompeu o discurso falando em voz alta, provocando risos na plateia:

– Dá o rabo pra ele... 

– O quê cê disse, cabra safado!? – reagiu o orador, com fama de garanhão, valente e desbocado – Eu como o seu e o dele, seu filho da puta!

– Safado é você! Desça daí se for homem! – retrucou o outro com uma faca que, em meio segundo, abriu uma clareira amazônica na multidão.

 

O prefeito refugou ou não teve tempo de descer do palanque. Três policiais desarmaram o desafiante, conduziram-no à delegacia, algemado e aos bofetões. 

 

Eu nada sabia quando encontrei o sujeito preso, quase 24 horas depois, numa ressaca industrial, privado de água “para pensar na merda que fez”, segundo um dos policiais.

 

Quis oferecer uma garrafa de água gelada para atenuar o sofrimento, mas percebi que não seria sensato interferir na liturgia em curso sem consulta prévia à autoridade no recinto. Amigos, amigos, algemas e tapas à parte.

 

Nunca fui de reclamar contra a bebida e suas consequências, embora já não beba mais como antes. Já gostei e Deus sabe com que desgosto lamentei os vacilos a que alguns goles de vinho a mais me levaram. 

 

Nas sextas-feiras, batia uma euforia inexplicável que me empurrava às taças e pratos. Aliás, não fosse a ameaça de alterações metabólicas e neurológicas, levando os seres humanos à falência precoce de múltiplos órgãos (fígado, estômago, pâncreas, cérebro etc.), não tenho dúvida de que os próprios médicos nos aconselhariam a beber mais vinho, como forma, inclusive, de tolerar decepções sem enlouquecer.

 

Nem sei se entendia de serviços bancários, como se disse a meu respeito naquela tarde, mas nunca vi ninguém procurar um banco por prazer, como quem vai ao boteco, ao cinema ou ao restaurante. Por isso, nunca neguei a ninguém um copo d’água (ou um cafezinho) antes de iniciar uma conversa. Tinha comigo que desarmava os espíritos.

 

Já em casa, noite alta, pensava no que teria levado aquele sujeito a beber tanto, solitário, mesmo diante de uma multidão. No porquê o elogio ao candidato o fizera desejar ao prefeito uma das mais dolorosas experiências, segundo relatos (óbvio!). No que teria acontecido se os policiais não fossem tão ligeiros.

 

Há pouco mais de três décadas, eu sabia que se instalara no Brasil um certo desencanto com a classe política, a ponto de o próprio irmão do presidente da República ter apresentado provas do envolvimento dele num caso de desvio de dinheiro. Usou-se a campanha eleitoral como caixa 2. Desviaram-se verbas públicas criando-se empresas fantasmas e contas no exterior. Pior: até ali, ninguém havia sido preso, tomado uns sopapos, nem obrigado a passar horas sem um copo d’água sequer.

 

Hoje, não sei por onde andam ou o que fazem (se é que ainda se mexem) os personagens deste caso, nem gostaria de perguntar a meu amigo, já aposentado, mas me pego aqui especulando sobre possíveis desdobramentos. 

 

Vai ver o cidadão, ao ser liberado, sóbrio, voltava pra casa quando foi vítima de uma emboscada, sendo espancado até desfalecer num monturo qualquer. Capangas ligados ao prefeito circulavam nas proximidades, mas, por falta de provas, deu-se o caso por encerrado em questão de minutos. 

 

Ou teria encontrado o prefeito na feira livre, comprando os ingredientes para um regabofe com seus correligionários. Sentindo-se ultrajado por fatos precedentes, tomou das mãos do açougueiro uma serra e golpeou o pescoço do garanhão (que, segundo boato, vinha dando em cima de sua mulher, uma servidora lotada na cantina da prefeitura).

 

Ou, mais provável, depois de alguns insultos recíprocos e de um copo d’água para cada um, ambos recordaram do troca-troca de figurinhas na hora do recreio no grupo escolar e tudo acabou num abraço apertado. Daqueles com tapas nas costas que beiram o limite entre a cordialidade e a fratura de costela. 

 

Não é por nada, mas continuo convencido de que basta um copo d’água para diluir alguns espíritos inquietos em certas ocasiões. Até a próxima decepção, pelo menos.

 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Casa de farinha

Famintos e com sede, chegávamos à zona rural de Colinas, no oeste maranhense, logo depois do São João de 1967. Ali moravam meus avós paternos, Mãe Sussu e Pai "Simente", alcunha poética para um agricultor de subsistência ou simplificação de "Nascimento", sobrenome português de origem religiosa emprestado a cristãos nascidos em 25 de dezembro.  

 

Mais de meio século adiante, é difícil imaginar como uma família (pais e sete filhos) viajou numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1.300 km de estradas esburacadas, na lama ou na poeira, a partir do sertão paraibano. Jornada, inclusive, com desfecho épico: a légua final, escorregadia e enladeirada, se deu sobre uma tropa de jumentos.



 

Como esquecer do fim de tarde em que Pai Simente, sentado na porta de casa, ao lado de uma escarradeira, quase infarta por minha causa? Tio Marcelino, que preparava fogos de artifício, deixara próximo da janela algumas tabocas (gomos de bambu cheios de pólvora), enfileiradas como pirulitos num tabuleiro. Buliçoso, encostei uma brasa no estopim de uma delas para ver o que aconteceria.

 

Foguetões subiram assobiando e iluminaram o céu, ofuscando as primeiras estrelas. Meus pais, que raspavam pratos de “Maria Isabel” – arroz puxado no alho com carne de sol picada –, correram da cozinha até a sala onde me encontraram com a cara de sonso, sem atinar para o que poderia ter ocorrido à cobertura de palha de babaçu de todas as casas do povoado.


 

Como não recordar do abraço quente e apertado de Mãe Sussu e do olhar tolerante de Pai Simente, livrando-me de uma surra? Neto é neto no coração dos avós, com ou sem a anuência dos pais.


 

Na manhã seguinte, Bento, meu primo, admirou-se da balinheira (estilingue) que eu trouxera. Ele também usava uma arma poderosa: o bodoque caiçara, arco com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Além do parentesco, em comum entre nós havia apenas o propósito de extinguir as rolinhas “fogo-apagou”.

 

O encanto pelo brinquedo alheio nos levou a trocar as armas, e o que se viu foram polegares e indicadores duramente castigados durante a aprendizagem. Esfolamos os dedos e não acertamos as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Os deuses das matas nos pouparam desse remorso.  


O mundo mudaria quando vi pela primeira vez uma casa de farinha. Depois da arranca da mandioca, adultos a descascavam e ralavam até virar massa. Em seguida, extraíam a água numa prensa, antes de peneirar a massa para retirar impurezas. O que sobrava, seguia para ser mexido numa chapa enorme, no fogo a lenha, até virar farinha.



 

Não me deixaram raspar a mandioca no caititu (cilindro com serrilhas metálicas), nem mexer a farinha na chapa quente. Pensei que tinha jeito pra coisa, como achava que usar o moedor de carnes era a coisa mais besta deste mundo, apesar dos nove anos de idade. Soube que a casa de farinha não existe mais. Praga de menino? Minha, juro que não foi. 

 


Triglicerídeos à parte, ali descobri do que uma boa farinha era capaz de provocar quando misturada à água em que cozida a carne ou o peixe: o bendito pirão que me leva, até hoje e sem culpa alguma, a reincidir no pecado capital da gula. 





E como não lembrar dos beijus de tapioca e dos bolinhos de farinha de arroz, servidos com café coado? E das redes espalhadas pela casa na hora de dormir, onde o "dono" de cada uma, depois que as lamparinas eram apagadas, só poderia ser identificado pelo par de chinelas?


Havia nas proximidades do sítio um olho d'água onde algumas mulheres, fiéis à etnia de seus antepassados Timbiras, após lavarem e enxaguarem trouxas e mais trouxas de roupas, tomavam banho nuas em pelo. Pena que alguns adultos, por motivos que desconheço, não me deixaram matar a minha curiosidade, digamos, antropológica. 

 

 

No dia da volta, chorei bastante. Obrigaram-me a deixar o bodoque caiçara, por falta de espaço no bagageiro da Rural Willys. Ainda faríamos escala em Caxias, já próxima da fronteira com o Piauí, onde meu pai havia morado antes de migrar para a Paraíba. 

 


Ardia de febre quando chegamos. Era o sarampo. Assim como já acontecera em anos anteriores, nas temporadas de catapora (varicela), caxumba (papeira) e coqueluche (tosse-comprida), a doença derrubaria também meus irmãos. Ser o primeiro a contrair teve seu lado positivo: poder tomar guaraná, leite em pó e comer maçã, além de desfrutar do cuidado prioritário de uma mãe de muitos.




O mundo deu muitas voltas de lá pra cá. Tia Cristina, que desapareceria nos primeiros dias da peste que virou o planeta de ponta cabeça meio século depois, antes de partir me contou que o sítio em que viveram Mãe Sussu e Pai Simente já dispõe de energia elétrica e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas com TV a cabo. 



 

Sei que paredes e medos mudam de lugar, que a gente embrutece e até desaprende a chorar nossas perdas. Mas nada neste mundo apaga as coisas e cores guardadas que a saudade, volta e meia, nos pede pra remexer. 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Fora de controle

O dramaturgo e romancista Ariano Suassuna dizia ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente. “Eu acho uma falta de educação muito grande, não é? Falar mal pela frente constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas…” Dizia mais: “Eu minto! Vejam bem, não me levem a mal. Não gosto de quem mente para prejudicar os outros. Gosto de quem mente por amor à arte. O mentiroso lírico…” 

 

Bem, o nome aqui não vem ao caso, mesmo porque um cidadão com quem trabalhei nos anos 1980 ainda é vivo e pode achar que estou distorcendo os fatos. Vou chamá-lo de Xaréu (peixe da cabeça grande, olhudo, de águas oceânicas) por causa do par de faróis de jipe que ele carrega sobre um bigode de para-choque.

 

Nascido em berço de prata, tinha em torno de 35 a 40 anos de idade quando o conheci. Nas horas vagas de bancário, praticava pesca submarina no litoral alagoano. Jactava-se de ter descoberto uma técnica para "hipnotizar" tubarões. Dizia até que tirou fotos acariciando um tubarão azul de mais de três metros.

 

Um dia, Xaréu resolveu revelar como colocava tubarões em "transe" para serem apreciados por turistas, sem o estresse da captura. O primeiro passo para imobilizar o bichão era atraí-lo chacoalhando a água e usando sardinhas (a isca ficava numa caixa que permitia sentir o cheiro e até ver a comida, embora não pudesse mordê-la).


Reprodução: bastidores de "Jaws", de Steven Spielberg

Quando o predador se aproximava, ele o induzia a um profundo relaxamento. Colocava as mãos numa certa posição, fazendo com que o animal pensasse que seus dedos eram pequenos peixes. “Provoco o bicho para me morder. Essa é a parte mais perigosa, porque se eu for muito rápido, ele vai embora, e se eu for devagar, ele abocanha...".  

 

Contou que mergulhava protegido por uma roupa feita de um aço especial. Caso fosse mordido, os dentes não perfurariam o traje. “Houve até um caso em que um tubarão mais afoito ficou banguela”, pontuou. 


Antes de morder, o animal abria o bocão, deixando a água entrar para obter oxigênio por meio das guelras. Em seguida, fechava as mandíbulas. “De boca fechada, eu conseguia imobilizar o bicho. Como não estava respirando, era fácil colocar a mão no nariz dele e fazer massagem...".

 

Depois de deixar o bichão “chapado de prazer”, retirava parasitas da pele. “Ele até ameaçava ir embora, mas percebia que havia carinho e respeito; por isso, ficava. Não tem quem não goste de um cafuné, né mesmo?”

 

Como o tubarão não pode permanecer muito tempo parado e precisa estar constantemente em movimento para respirar, Xaréu disse que o conduzia à superfície e exibia para os turistas, de quem recebia polpudas gorjetas, inclusive em dólares.

 

Pois muito bem, diria Suassuna. Ao me ver meio cabreiro, desconfiado, Xaréu admitiu que não era possível aplicar a técnica em todos os predadores. Garantiu porém que nunca sofrera um acidente grave. “Às vezes, me vejo no meio de 20 tubarões e procuro descobrir quais são os mais confiantes. Quando acho, atraio um deles...".

 

É fato que “Tubarão”, do cineasta Steven Spielberg, fizera um tremendo sucesso no Cine São Luiz, em Maceió, no final dos anos 1970. No filme, um inesperado ataque sinaliza que a praia de uma pequena cidade americana teria virado o refeitório de um monstro que se alimenta de turistas. O prefeito ainda tenta esconder da mídia, mas o xerife local busca a ajuda de um pescador veterano para eliminar a besta-fera. A tarefa acaba sendo bem mais difícil do que se esperava.

 

Clarinete, chefe do setor em que trabalhávamos, não apostava um cruzeiro nas aventuras de Xaréu, mas, com o semblante sério, perguntou se aquela coragem toda vinha de criança. Ele nem pestanejou. Disse que desde os tempos de escoteiro, sempre que se via diante de animais furiosos, encarava-os com destemor para ter o controle absoluto da situação, “o que deixava os bichos desconfortáveis, por se sentirem desafiados ou ameaçados… E a maioria acabava fugindo”.

 

Se era verdade ou não, difícil saber, a esta altura. Sei que Xaréu, na época, ficou chateado porque a turma fez uma algazarra danada quando Clarinete, em seguida, começou a cantarolar uma canção que fazia muito sucesso no rádio: “olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais...” 


Soube que Xaréu, depois que se aposentou, andou oferecendo seus préstimos à prefeitura do Recife para resolver “um probleminha” no trecho que vai da praia do Pina, na Zona Sul, até a praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana. Mas as negociações não evoluíram. "É por isso que a coisa anda fora de controle por lá", ele teria dito. Liricamente, imagino.

 


quarta-feira, 14 de junho de 2023

Vem aí um novo passaporte?

Descobri que o passaporte se tornou obrigatório nas viagens internacionais apenas no começo do século passado, após a Primeira Guerra. O termo vem do francês arcaico ("passeport"): o papel que autorizava o viajante a passar pelo porto e sair do país.  

Havia certa liberdade editorial em sua confecção, um século atrás. Era uma folha de papel dobrada em oito partes, capa de papelão, trazendo dados básicos (nome completo, data de nascimento, nacionalidade etc.), além de breve descrição física do titular, como olhos claros, nariz adunco e cabelos ruivos; e sinais particulares, como lábio leporino, cicatrizes etc.

 

Ainda bem que a descrição do viajante se limitava aos traços do rosto. Dou por visto o que registrariam a meu respeito na época: cabeçudo, míope, gengivas de macaco, orelhas curtas e sobrancelhas de taturana. As partes íntimas estariam preservadas do escárnio público.

 

E se a coisa tivesse evoluído para inclusão de traços psicológicos? Seria possível agora extrair dos arquivos descrições interessantes, por exemplo, sobre figuras ligadas ao futebol.

 


Dá pra imaginar os responsáveis pela coleta de dados, no final do dia, tomando uma cerveja no boteco e cometendo deslizes ético-etílicos:

– Viu só o Edmundo? É atormentado, encrenqueiro, prestes a explodir... Pior que Almir Pernambuquinho. 

– E o Sávio, aquele que joga no Real Madrid. Triste, depressivo, cai no choro a qualquer instante. É moleque criado com a avó em apartamento, nunca brincou num quintal.

– Pô... E Dodô? Vive rindo não se sabe de quê. Parece que nunca ouviu Frejat cantar que “rir é bom, mas rir de tudo é desespero”.

– Tá escorrendo rabugice nos cantos da boca de Dunga, percebeu?

– Sim! E o olhar gelado de Romário... Típico do sujeito que enfia um estilete até o cabo e não escorre uma gota de sangue da vítima…

 

Volto no tempo. Dizem que depois que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, um funcionário da repartição de passaportes teria caprichado na descrição de Maria Capitulina de Pádua Santiago, mais conhecida como Capitu: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Um tanto leviana e fútil. Desde pequena só pensa em vestidos e penteados, tem ambições de grandeza e luxo, e outros predicados que evito citar para não cair em tentação”. 

 

O chefe, no entanto, ávido por predicados e sujeitos mais picantes (bota picância nisso!), cobra: “Esqueceu daquela história de olhos oblíquos e dissimulados de cigana, do triângulo amoroso relatado no livro pelo próprio Bentinho, o maridão desconfiado?” 

 

“Há controvérsia, chefe!” – pondera o funcionário, com o dedo indicador em riste! – “Não encontrei vestígios de que Capitu e Escobar chegaram às vias de fato. Nem na cortina nem no carpete. Isso é coisa da cabeça do Bruxo do Cosme Velho, instigando os leitores...”.

 

“Vai me dizer que eles não...”

 

“Tá no regulamento, chefe: para fins de emissão de passaporte, pouco importa se Capitu capitulou ou não, como desconfia Bentinho. Aliás, Escobar pode ser carreirista, mas não é paraguaio ou colombiano... Se bem que ninguém precisa cruzar fronteiras para pular a cerca”.

 

Mais adiante, Escobar morre afogado e as lágrimas de Capitu pelo morto deixaram Bentinho transtornado. Tanto que acabou despachando a esposa para a Europa, onde ela viveria seus últimos dias. Com um passaporte, óbvio! 

  

Com o passar dos anos, a fotografia virou mais um elemento de identificação, embora em nada se pareça com a padronização do documento nos dias de hoje.

 

Sem regras claras, as pessoas providenciavam uma foto qualquer. Posavam de chapéu, de véu, tocando piano, chupando picolé ou tricotando. Reaproveitavam até fotografias antigas, recortando o próprio rosto, ou arrancando a imagem de outro documento. 

 

Mas contexto é importante. Um chapéu sobre a cabeça de um matuto, por exemplo, não passa de um simples utilitário de proteção contra o sol. Sobre a cabeça de uma primeira-dama, apenas um adorno numa cerimônia. Na fronte de um cardeal, um símbolo de poder. Na mão estendida de um esmoler, a vergonha (ou o vício) de pedir e a esperança de viver numa nação mais solidária.   

 

Hoje, para confecção do passaporte, deve-se manter uma  expressão neutra e a boca fechada na foto. Foi assim, aliás, que nasceu uma fábrica de monstros. Reveja a sua imagem no seu documento e diga se não tenho razão. 

 

Tudo isso me fez recordar da figura de um baixinho de fraque puído, bigode de broxa, chapéu-coco e bengala, que nunca precisou de passaporte para atravessar fronteiras e ser reconhecido em qualquer lugar. Sem dizer uma palavra, virou cidadão do mundo. 

 

Se ainda estivesse entre nós, Chaplin, em nome dos ambientalistas, diria em gestos, coberto de razão: “Já passou da hora das nações criarem um novo passaporte. Em papel não dá mais!” 


Concordo. Talvez um microchip no dedo mindinho do pé ou na omoplata (finalmente, um deles teria utilidade prática!), com os dados de identidade, biométricos e vistos do viajante, simplifique as coisas neste mundão cada vez mais complicado e dividido. 

 

Fica a dica. O que você acha?

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não sou eu…

Três anos depois de tantos abraços reprimidos, de tanta angústia e de cinco doses de vacina, uma variante sorrateira do inominável bateu à porta e, sem pedir licença, se instalou sobre duas almas rendidas pelo pânico.

 

Passado o susto inicial (nem nos deu tempo de colocar detrás da porta um pouco de sal grosso), eu e minha mulher já estamos bem. Assumimos como inevitável o que aconteceu quando resolvemos deixar o cárcere voluntário.

 

Lembro-me de um livro (“O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati) que ganhei de presente, em 1982, de meu querido amigo João Batista de Almeida. Reli trechos durante o confinamento. Difícil engolir que nunca mais verei João flanando nas livrarias. Nem nos despedimos. 

 

O livro conta de um jovem que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente numa fronteira desabitada. Tinha a esperança de fazer algo de nobre pelo seu país, que poderia ser atacado pelos Tártaros, a qualquer momento. 

 

Trinta anos depois, velho e doente, após esperar por uma guerra que não veio, o tenente reflete sobre quantos deixam a vida passar esperando um conflito que talvez não venha e, se vier, pode encontrá-los já derrotados. E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso.    

 

Em minha guerra particular, parecia fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, tropeçando nas quinas que se metiam no caminho entre a cozinha e a varanda onde os primeiros sinais de luz diziam que a agonia passaria depressa. 

 

Parecia normal trocar o noticiário mórbido da TV pelas canções de ontem, admitindo uma certa alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Diminuía a ansiedade ouvir Simone propor que pegasse aquele feijão preto, colocasse meia dúzia de latas pra gelar e mudasse a roupa de cama que já, já, a vida estaria de volta.

 

Parecia simples preparar a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão, depois de limpar a última ruga da folha de alface ou rúcula, como se ali cochilasse o monstro capaz de acabar com tudo em duas ou três semanas.

 

Fotografia: Magdala Veras

Parecia fácil ver a mulher na varanda, resignada, sem botar os pés na areia havia meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, longe das franjas de espuma que escorriam na praia, querendo pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar. 

 

Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher o cárcere de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante de uma cena qualquer do seriado da vez.

  

Parecia normal ver tantas crianças longe da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabiam como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias críticas como amar e perdoar. 

 

Ou – em meio a tanta mentira, tanta força bruta escorrendo nas redes sociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao boteco, ao supermercado ou ao restaurante, onde incautos se infectavam e, não raro, sumiam. De vez.

 

Parecia fácil, normal, simples. É... Parecia.

 

Toda noite, me deitava mais cedo, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.  

 

Mesmo isolado do mundo (que já cheirava, de novo, a fumaça de óleo diesel), me inspirava nesses marujos para rascunhar meia dúzia de linhas e tirar a paciência daqueles que ainda prestavam atenção naquilo que eu tinha a contar.

  

“Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”, dizia Chico, outro marujo calejado. Mas enquanto não chegava o habeas corpus que me libertaria do cárcere, precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. 

 

Ainda não descobri, mas uma hora chego lá. 

 

Hoje, mais do que ontem (e menos do que amanhã), quanto mais remo, mais rezo. E me contento ouvindo Paulinho, outro velho lobo-do-mar, extrair da viola uma certeza em forma de oração: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.