quarta-feira, 5 de julho de 2023

Basta um copo d'água

Tudo bem, era o delegado de uma cidadezinha do interior, mas, antes de tudo, meu velho amigo havia décadas. Porém foi inflexível naquela tarde:

– De jeito nenhum! Tu entende de banco. Deixa que cuido de meu trabalho.

– Ele vai morrer à míngua, velho!

– Sei o que tô fazendo, não te mete…

 

Enquanto ele conversava ao telefone, eu circulara pela delegacia e dei de cara com um bêbado deitado numa cela, nu cintura acima, cheirando a chuva, suor, cerveja e vômito, a implorar num fiapo de voz: “… Um copo d’água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede!”


Fotografia: Dedé Dwight 

Tive pena. Preso na noite anterior, num comício na praça da Matriz, ameaçara o prefeito com uma peixeira. “Porte de arma branca e tentativa de homicídio”, segundo o boletim da ocorrência.

 

O prefeito defendera no palanque a candidatura de seu vice à sucessão municipal, enaltecendo supostas virtudes: “É pai de família decente, trabalhador, honesto, comprometido com os verdadeiros cidadãos...”

 

Nisso, um pacato cidadão que a tudo assistia da mesa de um boteco (e acabaria preso) interrompeu o discurso falando em voz alta, provocando risos na plateia:

– Dá o rabo pra ele... 

– O quê cê disse, cabra safado!? – reagiu o orador, com fama de garanhão, valente e desbocado – Eu como o seu e o dele, seu filho da puta!

– Safado é você! Desça daí se for homem! – retrucou o outro com uma faca que, em meio segundo, abriu uma clareira amazônica na multidão.

 

O prefeito refugou ou não teve tempo de descer do palanque. Três policiais desarmaram o desafiante, conduziram-no à delegacia, algemado e aos bofetões. 

 

Eu nada sabia quando encontrei o sujeito preso, quase 24 horas depois, numa ressaca industrial, privado de água “para pensar na merda que fez”, segundo um dos policiais.

 

Quis oferecer uma garrafa de água gelada para atenuar o sofrimento, mas percebi que não seria sensato interferir na liturgia em curso sem consulta prévia à autoridade no recinto. Amigos, amigos, algemas e tapas à parte.

 

Nunca fui de reclamar contra a bebida e suas consequências, embora já não beba mais como antes. Já gostei e Deus sabe com que desgosto lamentei os vacilos a que alguns goles de vinho a mais me levaram. 

 

Nas sextas-feiras, batia uma euforia inexplicável que me empurrava às taças e pratos. Aliás, não fosse a ameaça de alterações metabólicas e neurológicas, levando os seres humanos à falência precoce de múltiplos órgãos (fígado, estômago, pâncreas, cérebro etc.), não tenho dúvida de que os próprios médicos nos aconselhariam a beber mais vinho, como forma, inclusive, de tolerar decepções sem enlouquecer.

 

Nem sei se entendia de serviços bancários, como se disse a meu respeito naquela tarde, mas nunca vi ninguém procurar um banco por prazer, como quem vai ao boteco, ao cinema ou ao restaurante. Por isso, nunca neguei a ninguém um copo d’água (ou um cafezinho) antes de iniciar uma conversa. Tinha comigo que desarmava os espíritos.

 

Já em casa, noite alta, pensava no que teria levado aquele sujeito a beber tanto, solitário, mesmo diante de uma multidão. No porquê o elogio ao candidato o fizera desejar ao prefeito uma das mais dolorosas experiências, segundo relatos (óbvio!). No que teria acontecido se os policiais não fossem tão ligeiros.

 

Há pouco mais de três décadas, eu sabia que se instalara no Brasil um certo desencanto com a classe política, a ponto de o próprio irmão do presidente da República ter apresentado provas do envolvimento dele num caso de desvio de dinheiro. Usou-se a campanha eleitoral como caixa 2. Desviaram-se verbas públicas criando-se empresas fantasmas e contas no exterior. Pior: até ali, ninguém havia sido preso, tomado uns sopapos, nem obrigado a passar horas sem um copo d’água sequer.

 

Hoje, não sei por onde andam ou o que fazem (se é que ainda se mexem) os personagens deste caso, nem gostaria de perguntar a meu amigo, já aposentado, mas me pego aqui especulando sobre possíveis desdobramentos. 

 

Vai ver o cidadão, ao ser liberado, sóbrio, voltava pra casa quando foi vítima de uma emboscada, sendo espancado até desfalecer num monturo qualquer. Capangas ligados ao prefeito circulavam nas proximidades, mas, por falta de provas, deu-se o caso por encerrado em questão de minutos. 

 

Ou teria encontrado o prefeito na feira livre, comprando os ingredientes para um regabofe com seus correligionários. Sentindo-se ultrajado por fatos precedentes, tomou das mãos do açougueiro uma serra e golpeou o pescoço do garanhão (que, segundo boato, vinha dando em cima de sua mulher, uma servidora lotada na cantina da prefeitura).

 

Ou, mais provável, depois de alguns insultos recíprocos e de um copo d’água para cada um, ambos recordaram do troca-troca de figurinhas na hora do recreio no grupo escolar e tudo acabou num abraço apertado. Daqueles com tapas nas costas que beiram o limite entre a cordialidade e a fratura de costela. 

 

Não é por nada, mas continuo convencido de que basta um copo d’água para diluir alguns espíritos inquietos em certas ocasiões. Até a próxima decepção, pelo menos.

 

25 comentários:

  1. Eu normalmente passo um café antes de ler a crônica de quarta-feira. Hoje ainda tive que pegar um copo d'água gelado pra acompanhar a leitura, porque cheguei a sentir a secura do pobre bêbado prisioneiro ressaqueado. Que perversidade, delegado. Negar água é capaz até de constar como crime na Convenção de Genebra. Dedé Dwight

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  2. Bom dia
    Certamente o delegado e seus subordinados não praticavam as leis da misericórdia, pois a segunda (salvo engano) é “daí de beber a quem tem sede”. E pode até ser que o delegado venha me retrucar ao ler sua crônica e os comentários, dizendo que “sede não é só de água, mas de justiça também” e que era dessa sede que ele estaria tratando naquele momento, sabe-se lá!…
    Nelza Martins

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  3. Que abertura de crônica, senhoras e senhores! Uma obra do mais fino artesanato literário!!! Impactante!

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  4. Um retrato do que ainda acontece, tanto no meio político quanto policial. Excelente crônica !

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  5. Fatos -e consequências- corriqueiros das cidades do interior. Mas acho que faltou água antes de o discurso ser interrompido. Valeu, Hayton.
    Gradim.

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  6. Quantas outras opções poderiam ser pensadas como desfecho do caso. Só mesmo uma imaginação fértil poderia dar novas sentenças para os protagonistas da novela. Se pararmos para pensar um pouco, vêm, aos borbotões, outras possibilidades antes do ponto final. Figura aí, exatamente aí, toda a diferença existencial. Caminhos entre a vida e a morte, o sucesso e o fracasso, a guerra e a tranquilidade, o envelhecer e o ficar pelo caminho. São muitas e variadas chances com sorrisos ou choro. Aflição ou paz. Algumas foram habilmente desenhadas. Já bastam.
    Roberto Rodrigues

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  7. Ademar Rafael Ferreira5 de julho de 2023 às 08:14

    Apenas quem sentiu ou sente o quanto um copo d'água ajuda no combate de uma ressaca de "responsa" tem condições de avaliar que na comparação os desvios de conduta da política ou outros desmandos nacionais o copo do precioso líquido ganha no primeiro turno.

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  8. É bem interessante a questão do poder de um cafezinho e um copo d’água em relação ao possível desfecho da narrativa.

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  9. Hoje resolvi inovar. Parei a caminhada diária e li o texto sob referência. O cenário era maravilhoso; cheio de Natureza; um clima muito agradável e ventilação primorosa. Então me deliciei com as peripécias dos personagens da abordagem - um delegado é um biriteiro. Me diverti e tive a ideia de fazer a foto. Fiquei com pena porque não soube inseri-la no texto. Valeu a pena pela intenção. Estou contente

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  10. Como bem musicou o genial Gilberto Gil:
    "Traga-me um copo d'água,
    tenho sede
    E essa sede pode me matar
    Minha garganta pede um pouco d'água
    E os meus olhos pedem teu olhar"
    Nunca uma canção caiu tão bem numa crônica

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  11. Que maldade! Negar um copo d’água para alguém de ressaca! Rssss

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  12. Deixe-me rir, vai? Muito bom. Dayse Lanzac.

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  13. Agostinho Torres da Rocha Filho5 de julho de 2023 às 16:44

    Uma verdadeira obra de arte literária, escrita sob forma linguagem simples e criativa, com os ingredientes de uma uma pequena cidade do interior nordestino: o prefeito, o delegado, o funcionário do Banco do Brasil e... o eleitor, que afronta a autoridade executiva municipal, embalado por alguns goles de cachaça. Pena que o padre não tenha sido citado. Mas não faltou a água para representá-lo. Parabéns!

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  14. Um copo d'água ou um cafezinho fazem, de fato, muita diferença, não só para amenizar os efeitos de uma ressaca "ideológica" ou, talvez, do "eco" de um discurso político ou, ainda, a ira que uma má gestão pública pode provocar no cidadão de bem, a ponto de se embriagar e de se exaltar... Bem, os motivos não vêm ao caso, mas são situações que podem ser observadas em vários ambientes, inclusive nos encontros de pessoas ditas civilizadas.

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  15. Excelente! Adorei! Diniz.

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  16. Muito boa! Esse delegado desconhece os ensinamentos bíblicos: “ daí de beber a quem tem sede”.

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  17. Tá ficando difícil comentar suas pérolas, afinal é preciso até criatividade pra falar delas.
    Agora tem um delegado seu amigo que vira um personagem inesquecível e, como todos que se prezam, naquele momento enquadrou você.
    Soubesse em que você se transformaria, certamente diria, irmão faço aqui o que sua sensibilidade determinar. Talvez até procurasse o prefeito e dissesse - olha seu prefeito, a dar o que é seu, fica por sua conta, a decisão é do senhor", ou coisa assim. É sempre temerário não desconfiar da veia satírica do escritor.
    Enfim, haja historias!!!

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  18. De ressacas brabas e de dores de cabeças endiabradas, por conta de algum excesso, não sou suficientemente experiente para opinar. Infelizmente, nunca as tive. Talvez uma dose a mais aqui e ali não tivesse sido tão ruim assim. Não teria levado tantas coisas tão a sério.
    .
    De bancos e de banqueiros, a despeito de ter trabalhado em um deles por mais de três décadas, também não.

    "Um banqueiro é um sujeito que empresta seu guarda-chuva quando o sol está brilhando, mas o quer de volta assim que começa a chover.", disse certa vez Mark Twain.

    Oferecer um copo d'água para alguém necessitado, mas não com o ímpeto suficiente de fazê-lo para não contrariar a autoridade constituída, nada mais banqueiro do que isso.
    .
    Aceita uma água?
    .
    Um cafezinho? sim?.

    Faz bem.
    .


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  19. Maria de Jesus Almeida6 de julho de 2023 às 23:08

    Negar um copo d'água!
    O bêbado de ressaca, implorando num fiapo de voz...
    " Um copo d'água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede"
    Não sensibilizou o Delegado!
    A falta de água pode causar dor de cabeça 🗣️ fadiga, tontura 😵‍💫 e, se for muito demorada levar a morte.

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  20. Hayton, eu também gostaria de saber do desfecho. Ao menos se o bêbado recebeu o copo d’água, coitado.

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  21. Se for pra levar tudo ao pé da letra, penso que o delegado e os executores dessa crueldade poderiam ser enquadrados pelo crime de tortura.
    Negar um copo d’água a quem quer que seja é crime e desumanidade, tudo junto.

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  22. Sem água na ressaca a morte é o próximo passo kkkk

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  23. Desconfio que os que vão ao banco sacar gordos prêmios de loteria o fazem com prazer.

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  24. Beleza de crônica. Agora, entre um cafezinho e uma água numa visita qualquer, prefiro a primeira opção, acho mais cordial.

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  25. Muito bom. Adoro suas crônicas amigo Hayton. Abraço.

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