quarta-feira, 12 de julho de 2023

Divinas tetas

Numa época em que se recorria muito a falas estereotipadas, o humorista Max Nunes afirmou que “o casamento é como a pessoa que quer tomar um copo de leite e compra uma vaca”. E o cartunista, escritor e dramaturgo Millôr Fernandes completou: “se, de vez em quando, o leite azeda por aí, não tenho nada com isso; a vaca não é minha. Escolham melhor na próxima vez”. 

 

Mais tarde, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor contradisse seus velhos amigos. “Para todos os homens que perguntam ‘por que comprar a vaca se você pode beber o leite de graça?’, aqui está a novidade: hoje em dia, 80% das mulheres são contra o casamento e sabem por quê? Porque perceberam que não vale a pena comprar um porco inteiro só para ter uma linguiça!”. 


Reprodução/Redes Sociais

Sobre vacas, aliás, você sabia que uma startup gaúcha (a CowMed) conseguiu decodificar, com Inteligência Artificial (IA), o que elas falam, pensam, querem ou sentem? Uma coleira tecnológica que interpreta o comportamento bovino foi apresentada ao mercado como uma ferramenta poderosa para ajudar os pecuaristas a se comunicarem melhor com seus rebanhos. 

É uma peça de nylon, com autonomia de cinco anos, capaz de monitorar os animais por 24 horas, em tempo real, enquanto o criador recebe, no celular, notebook ou tablet, uma espécie de tradução. Ajuda-o a descobrir com antecedência as necessidades mais prementes das vacas. O aparelho analisa cada movimento ou som e informa o que pode ser: cansaço, cio, dor, fome, sede etc. Ansiedade, bullying, compulsão por redes sociais ou transtorno obsessivo-compulsivo, ainda não. 

 

Também monitora variáveis como tempo que leva se alimentando, tempo de ruminação, de descanso, de caminhada, qualidade da respiração etc. Com esses dados, utiliza-se a IA para interpretar a “alma” da vaca.

 

Tenho para mim que essa ferramenta terá uso adicional bastante útil noutro tipo de rebanho, mas isso seria assunto para outra crônica.

 

A peça identifica ainda, com até cinco dias de antecedência, se a vaca vai ficar doente. “Existem sinais clínicos imperceptíveis, porque o bovino, por ser uma presa, tem a característica de esconder a doença. Com o sistema, é possível analisar os sinais e fazer um diagnóstico precoce”, pontuou um dos acionistas da CowMed.  

 

Em resumo: após o pagamento da primeira parcela, o produtor recebe o kit de instalação com colares, antenas, material de treinamento, acesso à plataforma web e o aplicativo. Precisa apenas ligar o equipamento na tomada e colocar uma coleira em cada animal. A comunicação se dá por radiofrequência e Wi-Fi. A partir daí, só Deus sabe o que vai rolar na “conversa de pé-de-orelha”.

 

Foi-se o tempo das vacas magras, ainda que os ossos nos ofereçam as melhores sopas. 

 

Essa “humanização” me fez recordar da célebre crônica “Por vários motivos principais”, de Stanislaw Ponte Preta, acerca de um jantar envolvendo a fina flor do high society da capital da República, quando uma provecta senhora declarou que adorava a sua obra. E mais: que estava ansiosa para ler o próximo livro, cujo título, se possível, gostaria muito de saber em primeira mão.

 

“Fiquei meio chateado de revelar o nome... Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse: Vaca, Porém Honesta” – escreveu o genial cronista.

 

Segundo ele, “a madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original”. Vai ver ponderou que por aqui vaca é sinônimo de concubina, devassa, galinha, oferecida, marafona, meretriz, piranha, promíscua, prostituta, puta, quenga, rameira, rapariga, tolerada, vadia, vagabunda, dentre outros. 

 

Quase sempre, o uso desses sinônimos não passa de exagero em relação à vizinha ou à amiga do marido. Se bem que já testemunhei machão brincando que “nunca viu gato de botas, mas já viu vaca de salto alto”. Só depois do divórcio, admitiu outra pesada sentença: “Duro não é suportar o peso dos chifres, é continuar sustentando a vaca”. 

 

Essa visão distorcida sobre a gloriosa fêmea do gado bovino, mãe de leite de quase todos nós, talvez tenha sido ampliada quando Gal Costa, no Rock in Rio, em 1994, subiu ao palco com os seios à mostra para cantar "Brasil", de Cazuza.

 

“(...) Brasil, mostra a tua cara.

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim!

Brasil, qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim! (...)”

 

Aos mugidos, a plateia delirava, por certo desejando ouvi-la (em vão, registre-se!) cantando "Vaca Profana", que Caetano Veloso escrevera para ela 10 anos antes:

 

“(...) Dona das divinas tetas,

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas! (...)

 

Com a criação da CowMed, nossas vacas nunca foram tão bem tratadas e se distanciam do indesejável caminho do brejo. Se vamos descobrir que são mentirosas, só o futuro dirá. 

 

Quem sabe os caretas pendurados nas tetas orçamentárias da Pátria-mãe se animam a fazer algo parecido pela massa que passa fome, nutrindo-se da esperança de levar, pelo menos, uma vida de gado. 

42 comentários:

  1. Que revolução essa tecnologia da Cowmed. Daqui a pouco as vacas reivindicarão direitos à vida digna, existência pacífica, sustentável, e principalmente que não aceitam virar churrasco. E o uso dessa coleira será estendido para felinos, caninos, equinos, suínos, ovinos, caprinos, periquitos, papagaios , etc. e tal e depois para o ser humano. Aguardem . Excelente crônica meu amigo, parabéns !

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    1. Você nos remete aos 7 mandamentos do Animalismo, da obra de George Orwell (“A Revolução dos Bichos):
      * Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
      * O que anda sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
      * Nenhum animal usará roupa.
      * Nenhum animal dormirá em cama.
      * Nenhum animal beberá álcool.
      * Nenhum animal matará outro animal.
      * Todos os animais são iguais.

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    2. Vixi!...Ninguem vai poder mais "barranquear"!!!....rsrsrs

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    3. Mas na música, já demonstrando mais simpatia pelas vacas, eu fico com os gaúchos. O baiano Xangai na música "De Santana" fala assim:
      [E no final da feira
      Aquela suadeira
      E a negrada cheirando ( Bis)
      A xixi de vaca.]
      Já o gaúcho Baitaca na música "Cheirando Esterco de Vaca" fala deste pro jeito:
      [Deitado escuto
      Num velho catre de couro
      Ao longe um berro de touro
      E um relincho da manada

      Sou um índio grosso
      Que nem um fino falqueja
      Espanto a mágoa e a inveja
      A cantiga do Baitaca

      Muito zoiudo
      Vão tem que engoli este peão
      E este canto de galpão
      Cheirando esterco de vaca]

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  2. Excelente! Espetacular!

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  3. Parodio e acrescento uma dúvida atual: "Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata. Mas com gente, é diferente"?

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  4. Eu jurava que Vaca Profana tinha sido escrito para a Regina Casé, mas se foi pra Gal tá bem escrito também, apesar de Caetano ter confessado, sem ninguém ter-lhe perguntado, que nunca comera a Gal. Eu também não e nunca fui dar entrevista sobre isso. Porém a Casé sim. Ele, não eu. Aparentemente ele fê-lo (a música) após vê-la (a Casé) com as tetas de fora no espetáculo Trate-me Leão do Asdrúbal Trouxe o Trombone, que eu também vi, sem, no entanto, ter criado uma bela música a partir disso. Não porque as tetas não a merecessem, mas porque naquela época a gente homenageava as vacas de outro jeito. Dedé Dwight

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    1. Gargalhei aqui, Dedé! Muito bom!

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    2. Epa! Ainda bem que zoofilia agora é passível de enquadramento no artigo 32 da Lei 9605/98, a chamada Lei de Crimes Ambientais.
      Se bem que quase nunca é punido porque não há testemunhas além do agressor e da vítima, que não pode falar. Por enquanto!

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    3. Para cantar com a melodia de ültimo pau de arara: "vou ficando por aqui / aqui que eu quero morar / enquanto eu tiver jumenta / o diabo é quem quer casar"

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  5. Num to dizendo que o omi ta afiado!!! Rsrs
    Que crônica pra lá de porreta, meu amigo!!!
    Desnuda o machismo que há em todos nós (em doses maiores ou menores), bota os meninos traquinos da escolinha da vida de castigo no cantinho do pensamento, provoca reflexão sobre como lidamos com os que chamamos de animais irracionais (será que são eles?), não deixa nunca de passear pela literatura e pela música e ainda espeta os maus políticos!
    Divinas tetas mesmo!!!

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  6. Hahahahahaha
    Muito boa!
    Mas, revolucionário, mesmo, vai ser o dia da criação de um sistema para que as vacas possam decifrar os pensamentos humanos.
    Será um festival de chifradas!

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  7. Após ler sua crônica, fiquei a pensar qual será o próximo passo evolucionário da humanidade? Se é que conseguiremos alcançar!

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  8. Ademar Rafael Ferreira12 de julho de 2023 às 08:25

    Nessa toada breve vamos ter tecnologia capaz de fazer vacas produzirem leite sem lactose. Pena que o mesmo tratamento não está sendo dado aos fornecedores de linguiças, isto é discriminação.

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  9. Quando estivermos comendo uma picanha vinda do RS, pode pintar um pensamento do tipo: qual terá sido o "último desejo" que esse animal enviou para o seu dono?

    Admirável mundo novo?

    Sei lá...

    Luiz Andreola

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  10. Suas cronicas estão cada vez melhores, de craque. Parabéns!

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  11. Crônica interessantíssima! A tecnologia a nos assombra cada vez mais!
    Ainda não consegui deixar de comer carne de animal que, embora consideremos "irracionais" expressam muito sentimento.
    Assina: Belaniza

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  12. Para a ganância do homem não há limites. Quer tudo do bom, do melhor, do mais rentável, mais saboroso, do mais fácil. Doa a quem doer ou a quem ofender, explorar, maltratar, invadir. Já chegou aos pensamentos das vaquinhas. Agora, o céu nem é o seu limite.
    Marina.

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  13. Excelente crônica! Aborda temas como o persistente machismo da nossa sociedade e os avanços da IA com seus inquietantes limites! Merece destaque o seu final c um apelo " esperançoso " aos caretas para que lutem (



    ??

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  14. Finalzando o comentário : para que atentem e lutem(?) por aqueles que nem vida têm desse gado " humanizado " .

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  15. Hayton, Max Nunes escreveu isso?! Sei não, se fosse hoje estaria encalacrado com um processo de misogenia. Na época, admitia-se o humor inteligente que você cita se
    m se comprometer. Isso também é inteligência artificial? Ou é emocional? O craque não fica na mesmice, inova. Parabéns!





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  16. Daqui a pouco a IA irá decifrar a alma da vaca kkkkkk

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  17. Nem sei se cabem em um mesmo comentário Millôr, Max Nunes e o Macaco Simão.
    .
    Os dois primeiros estão em um nível que não dá para comparar com o último. Mas, o Macaco Simão tem uma boa definição para casamento:
    .
    "Casamento é igual a Avenida Paulista: começa no Paraíso e termina na Consolação."
    .
    Acrescento à máxima do Macaco Simão: Se não tiverem muita pressa de chegar, uma parada na Estação Brigadeiro também faz parte do roteiro.
    .
    Boa viagem. Até porque o trem de chegada é o mesmo trem de partida.

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  18. Hayton, sem entrar na intrincada e rebuscada análise que você faz sobre a vaca, essa criatura que tantos benefícios alimentares trouxe para a humanidade, eu gostaria de me ater ao primeiro parágrafo de sua crônica (o casamento).
    Esse tema - casamento - ainda é mais complicado do que as nuances da vaca, mas é coisa boa, complicada e essencial - formal ou informal - embora todo homem fale mal desse instituto, embora não viva sem ele, uma, duas vezes ou mais.
    De qualquer forma, acho que nunca vamos entender bem esse assunto, né?

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    1. Faz sentido, Alípio. Dizia Chico Anysio: “Quem é casado há quarenta anos com dona Maria, não entende de casamento, entende de dona Maria. De casamento, entendo eu, que tive seis”. 😆

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  19. Crônica muito bem bolada, a exemplo da invenção da CowMed.
    A IA ainda falta inventar alguma coisa?
    Que equipamento mais porreta! Devassa a vida da vaca: movimento, som e ainda informa o que pode ser? cansaço, cio, dor, fome, sede e por aí vai?.
    Será que diz quando a vaca vai pro brejo?
    Quem não deve estar nada satisfeito com essa criação são os rufiões bovinos, pois além da esterilização, a coleira lhes tira até o último desejo do prazer do cheiro. Não vão mais nem sentir o cheirinho.
    Nem que a vaca tussa, não devem estar batendo palmas são os eco xiitas, ultimamente deveras empoderados, caso isso não for conversa pra boi dormir e a invenção não medir e monitorar os puns e arrotos de gás metano das vacas, intensificando o efeito estufa e o aquecimento global.

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  20. Muito boa essa crônica!!! O que me arrebatou foi:
    “Tenho para mim que essa ferramenta terá uso adicional bastante útil noutro tipo de rebanho, mas isso seria assunto para outra crônica.” Não contive o riso…
    Beto Barretto

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  21. Surpreendente a abordagem do dia. Pela foto do objeto mostrado, fiquei a pensar que se tratava de alguma coisa inusitada. Eis que aparece a utilização do novíssimo sistema de Inteligência Artificial. Pior, sobre vaca e seus artifícios. Pensei: por se tratar de algo que não domino, não vou gostar. Fiquei curioso e me surpreendi com o resultado. O sucesso foi tão grande que os leitores estabeleceram uma espécie de concorrência para ver quem ia ser mais bem-sucedido, o autor ou os leitores. Ficou comprovado que o autor surpreende até numa abordagem desse tipo. A quantidade de leitores surpreendeu o autor, acho. Prova evidente de que o autor está bem casado com o estilo de escrever. Parabéns e que permaneça nesse crescendo e expanda para a escrita de uma obra de porte maior tipo romance recheado com passagens autobiográficas para satisfação de seu imenso público leitor. Vamos aguardar.
    PS: Só agora tive tempo de ler a crônica do dia.

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  22. Maria de Jesus Almeida12 de julho de 2023 às 22:56

    Excelente crônica!
    Cada dia, a tecnologia nos surpreende ainda mais...
    Sorria, você está sendo filmado!!!

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  23. Excelente crônica! Leve, crítica e engraçada.

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  24. Excelente! Muito interessante como você vai costurando o tema em diversas perspectivas. A gente se informa, reflete e ainda dá umas boas risadas!

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  25. Como o início fala de casamento, tomara que essa tecnologia possa ser usada também em humanos... conseguiríamos entender as mulheres? Para as vacas já está resolvido.

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  26. Agostinho Torres da Rocha Filho13 de julho de 2023 às 16:10

    A crônica é um gênero discursivo que mescla a tipologia narrativa com trechos reflexivos e, em alguns casos, argumentativos. No entanto, a linguagem da crônica costuma ser leve, marcada por coloquialidade e, não raro, cada cronista tem seu estilo próprio no uso das palavras. Os bons cronistas são aqueles que conseguem perceber, no dia a dia de suas vidas, impressões, ideias ou visões da realidade que não foram percebidas por todos. Quando o autor induz o leitor a mergulhar no texto, assumindo o papel de coprodutor, a crônica alcança proporções inimagináveis, transformando-se em verdadeira obra de arte literária. É o que tenho testemunhado ultimamente, nas primeiras horas da manhã de toda quarta-feira. Assim, fica cada vez mais difícil selecionar os textos do próximo livro. Parabéns ao produtor e aos fiéis leitores/comentaristas/coprodutores.

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  27. O escritor conseguiu superar nossa expectativa brilhantemente. Seria realmente bom se essa tecnologia fosse usada para o outro tipo de gado.

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  28. "IA não é inteligência e sim marketing para explorar trabalho humano". Com estas palavras, o aclamado neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis desvelou, em artigo de 08/07/2023, para a Folha de São Paulo, a "face oculta da lua" das "maravilhas" da inteligência artificial. Na busca desarrazoada e insana por eficiência, estamos deixando preciosidades etéreas pelo caminho. Eu, que já superei os 10 lustros de existência, não me sinto tão afetado porque consigo ativar DNA de uma época difícil, mas rica em aprendizado, diletantismo, luta pelo conhecimento e pelas artes. Quem cresceu sob a batuta do avanço exponencial da tecnologia, talvez tenha que lidar com perdas irreparáveis em áreas do cérebro fundamentais para o equilíbrio emocional e para sustentar algum sentido da vida. Se Nicolelis ler sua publicação, entremeada com seu bom humor característico, bem possível que mude o final da frase que principia este comentário para "[...] trabalho humano e animal".

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  29. O dia que inventarem uma coleira dessas para bebês, o criador vai ficar bilionário.

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  30. Excelente crônica, regada de boas risadas no momento suíno. 😂

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