quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Melhor assim

“Tanto tempo depois, que coisa boa ver vocês dois ainda caminhando de mãos dadas!” – disse uma amiga de minha mulher, contemporânea escolar no começo dos anos 1970, ao cruzar conosco no calçadão da praia de Ponta Verde, próximo ao Marco dos Corais, em Maceió. Achando pouco, completou: “É coisa pra mais de 100 anos!”. E a julgar pelo riso enigmático de minha mulher, gostou da forma pela qual somos percebidos.

 



Ah, essas criaturas misteriosas e sensíveis! Tudo em nome do sexto sentido, da emoção! Não sabe a amiga dela que, antes de “coisa boa”, mãos dadas aqui tem a ver com diminuir o risco de uma queda precipitar o desfecho da caminhada, via concussão cerebral, fratura de bacia, cotovelos ou tornozelos de seminovos com as articulações desgastadas pela malvadeza do tempo, "tambor de todos os ritmos", como diz o poeta. Sem falar dos males crônicos, objeto de interesses conflitantes entre o plano de saúde, o fundo de pensão e a indústria farmacêutica.

 

Tudo bem, pode ser ilusório. Digo isso porque não boto tanta fé nos poderes da santa que me segura pela mão, com seus 52 quilos sobre metro e meio da cabeça aos pés, conseguir evitar o tombo do mamute aqui, com mais de seis arrobas há décadas. Isso, mesmo sendo tratado à míngua quanto a bolo “Souza Leão”, caldo de cana, chope, cocada, doce de leite, pão doce, pastel, pirão, pudim, rapadura, tapioca e outras "coisas boas" que é melhor esquecer pra não engolir saliva.

 

Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.

 

Se não infartamos com os sustos provocados por esses miseráveis, nem ainda transferimos aos nossos herdeiros a incumbência de repartir os caraminguás que juntamos em nossa jornada cigana, é provável que já desfrutemos de músculos cardíacos mais robustos por conta do exercício aeróbico diário. Se bem que, a  qualquer hora dessas, entre uma batida e outra do coração, tudo pode mudar.

 

Mas nessa toada, lá se vão mais de três décadas de calçadões. Desde que me vi obrigado a abandonar as peladas – ou elas a mim, nunca sei, quando perdi a esperança de ser convocado pela Seleção Brasileira – e fomos morar no Recife, onde, toda manhã, driblávamos dejetos caninos entre as praias de Boa Viagem e do Pina. 

 

Que fique bem claro, nós nunca encontramos pelo caminho La belle de jour, a moça dos olhos azuis como a tarde de um domingo, decantada por Alceu Valença como a mais linda de toda a cidade, para quem, aliás, escrevera o seu primeiro blues. Talvez porque, insone ou notívaga, sei lá, ela dormia tarde da madrugada e não conseguia acordar cedo. Poetas não mentem; se tanto, aumentam. Muito!


Quando eu era menino – não parece, mas já joguei no time –, ainda em Maceió, trabalhei de office-boy num grande banco, sendo um dos responsáveis pelo intercâmbio de documentos entre setores espalhados por mais de 10 andares. A ansiedade natural dos imberbes e a presunção de que assim agradaria “ao patrão” não me deixavam esperar pelos elevadores, sobretudo se me cobravam celeridade nas entregas. 

 

Na época, andei lendo em Seleções (versão brasileira da revista norte-americana Reader’s Digest) que subir oito lances de escada por dia reduziria em 1/3 o risco de mortalidade precoce. Resultado: subia e descia escadas o dia inteiro, seguro de que, agindo assim, seria visto como Raul Seixas em Ouro de Tolo, isto é, um cidadão respeitável, empregado, ganhando 327 cruzeiros mensais de salários. 

 

Não demorou muito e um colega cascudo, preguiçoso até pra se levantar da cadeira no final do dia, me viu no corre-corre e perguntou, fingindo ter dó de mim: “Você sabia que, em 1853, um americano chamado Elis Otis gastou uma grana preta pra inventar o elevador de passageiros?” E antes que eu confessasse a minha ignorância, disparou: “Deixe de ser besta, rapaz! Você acha inteligente não usar uma coisa boa dessas?” 

 

Tinha razão. Passei a usar também os elevadores. Mas até hoje me lembro daquela figura lerda (que partiu cedo pro chamado descanso eterno) toda vez que, por exemplo, me vejo numa escada rolante sem mover uma pálpebra.

 

Falando em escada, diz minha mulher que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Eu, que não sou besta e disfarço bem minha pouca leitura sobre o que está nas entrelinhas, faço de conta que acredito. 


Melhor assim, a esta altura da caminhada.

34 comentários:

  1. Acho que o mais lindo dessa caminhada, que com certeza emocionou a amiga transeunte, é mostrar que é possível caminhar a dois por uma vida.
    Não que ninguém tenha que ser ou fazer igual, pois cada um tem o seu jeito todo próprio de amar e de se defender, mas é lindo de ver. Dedé Dwight

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  2. ... enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas *(filhos de mães solteiras e pais incertos)* fingem não perceber...

    Taí, gostei! Uma nova forma de chamar alguém de FDP!

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  3. Andar de mãos dadas, é respeito, carinho, e cuidar um do outro. Parabéns!

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  4. É bonito de se ver e mais ainda de viver, andar de mãos dadas por tanto tempo supera todos os percalços do caminho. Parabéns!

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  5. Gostei muito! Seus textos são pérolas, meu caro amigo.

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  6. O significado de caminhar de mãos dadas se adequa ao longa da jornada. No início gera até excitação. Com o decorrer do tempo cumplicidade, dependência. Mas o amor está presente em todos os momentos. Linda reflexão mestre Hayton

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  7. Realmente, andar de mãos dadas nas nossas idades dá uma sensação psicológica interrogativa dúbia: não temos certeza se estamos protegendo ou sendo protegidos. E como não chegamos a um veredicto, a menos que um tombo nos ponha a prova, seguimos dando a impressão que a amiga de sua esposa verbalizou, porque é muito mais bonito de se ver.

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  8. Ao caminhar de mãos dadas, um segura o outro em sua existência

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  9. Ademar Rafael Ferreira2 de agosto de 2023 às 07:26

    Um texto didático sobre convivência e escolhas que preservam a saúde e a convivência harmoniosa. Show.

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  10. Que espetáculo!
    Poetas não inventam; colorem.

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  11. Belíssima narrativa. Parabéns

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  12. Muito legal!
    Parabéns por essas caminhadas, reais ou metafóricas!

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    1. Na realidade, depois de um tempo, toda caminhada de mãos dadas é cheia de metáforas…

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  13. Me encontrei nesse texto olhando os meus 44 anos de caminhada, segurando e sendo segurada pela mão do meu companheiro. Alguns tropeções, esbarrões e momentos tensos com o trânsito, mas sempre juntos, cúmplices. Sem falar que o calçadão de JAMPA não perde, em nada, para o de Maceió.kkk. Marina

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  14. “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.
    Em tempos de colagens e cópias desavergonhadas, a frase acima é atribuída ao poeta espanhol Antonio Machado.
    Talvez por isso usemos a expressão “caminhada” pra descrever uma trajetória, uma jornada e até mesmo uma vida. É algo muito emblemático.
    Por isso, caminhar de mãos dadas com alguém ou com alguns valores, é tão definidor do próprio “caminho” que escolhemos, decisão após decisão. Especialmente as pequenas e aparentemente desimportantes.
    Talvez seja em cada pequena e inofensiva escolha que a gente defina a trajetória completa que trilharemos.
    Pra muitos de nós, talvez só em momentos reflexivos pós-caminhadas, chega a constatação de que “La Belle de Jour” não era uma miragem ou uma “ausência que preenche uma lacuna”, mas alguém que esteve sempre conosco. Só não foi reconhecida tanto como deveria!

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  15. O melhor deste blog é que além do cronista inspirado e inspirador, com seus exemplos de vida temos leitores tão bons, que superam e quase escrevem outra crônica em seus comentários. Excelente reflexão a sua, Sérgio Riede!

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  16. Publicação motivacional (!), via "Resposta ao tempo" à Aldir Blanc, da mais alta envergadura, movida pelo "realismo esperançoso" de Ariano Suassuna, temperada ao molho Cazuza, já que "O Tempo não para"! E, tal qual Marisa Monte (que verei em breve!), digo "ainda bem" que existem algumas sobremesas, com "guardanapos de papel" (no magistério interpretativo de Milton Nascimento e autoral de Carlos Sandroni) que ajudam a limpar um pouco a face e alimentar o coração!

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  17. Como escreve bem! Transportei-me para o ambiente descrito e me senti lá, uma vez que diariamente faço caminhada idêntica. A menção a Alceu Valença é muito feliz pois, de fato, não passa de força de expressão, igual a uma fotografia, que apresenta uma diferença considerável. Parabéns por mais um belo texto.

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  18. Se caminhar faz bem, imagina de mãos dadas! Uma benção!

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  19. Deixando de lado a cacofonia do verso da bela canção de outro mestre, pode-se dizer:
    .
    "... o amor é como um grão
    morre e nasce trigo
    vive e nasce pão."
    .
    assim,
    .
    "Quem poderá fazer
    Aquele amor morrer
    Nossa caminhadura?"
    .
    Segura na mão de Deus, e da santa, e vai.
    .
    A caminha e a caminhadura serão mais leves.

    .


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  20. Excelente texto! bacana ver e sentir o carinho que os dois sente pelo outro até num caminhar. Exemplo para todos!

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  21. Agostinho Torres da Rocha Filho2 de agosto de 2023 às 15:56

    O amor verdadeiro é aquele que te mantém de mãos dadas, e não atadas. Quem conhece a trajetória do casal, desde a adolescência até a melhor idade, sabe que Magdala está correta quando diz que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Acredito que o autor também concorda, mas prefere deixar tudo por conta da imaginação dos fiéis leitores. Belo texto! Parabéns!

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  22. Delicia de ver e de viver. Sigam nesse caminho de mãos dadas e cheio de boas realidades e metáforas.

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  23. Andar de mãos dadas é uniao material em sua essencia, pois transmite segurança, e amorosa devoção de cumplicidade. Bela crônica.
    Alcione Teixeira

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  24. Ah, caro Hayton, que maravilha é caminhar despreocupadamente num calçadão à beira da praia. E de mãos dadas, fica melhor ainda. A cumplicidade de um casal se mede pelos esforços que cada um faz para agradar sua cara-metade. Percebo, genericamente, que é difícil encontrar parceiros dados a esforços físicos conjugados. É mais comum um ter gosto pelo e o outro menos. Vocês, então, são exceção à regra. E comungam até do momento de exercitar o corpo. Talvez tenha sido esta a impressão que vocês causaram àquela amiga que os viu caminhando. Dá uma ponta de inveja, claro. Gostaria de ouví-lo mais acerca do que pensa acerca dos casais mais afinados, que têm mais pontos em comum que divergentes. Por certo reside neste ponto, o fato de caminharem juntos, inclusive de mãos e corações dados apertadinho.
    Roberto Rodrigues

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  25. A imagem selecionada traduz como vocês são por nós percebidos. Imagens que falam por si.

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  26. Prezado Hayton

    A escrita literária tem duas dimensões estéticas, simplificadamente denominadas de “conteúdo” e “forma”.

    A um texto literário não basta ter um bom conteúdo (história-trama- enredo). Essa história-trama-enredo precisa ser apresentada em uma boa forma (estrutura lógica, organização sintática, escolhas semânticas). O equilíbrio entre essas duas dimensões - conteúdo e forma – vai outorgar a esse texto o estatuto de literatura.

    Nesta sua crônica, me chamou a atenção especialmente esta frase:

    “Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.”

    Quanto ao conteúdo, destaco esta criativa construção, “sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres...,” mas quero me referir à forma.

    Vc é hábil em utilizar frases curtas e suficientes, pois elas são mais fáceis de serem lidas e garantem uma boa dinâmica rítmica na leitura (organização sintática).

    Esse parágrafo acima, porém, tem em torno de seis linhas e apenas um período. E aqui está a beleza da forma literária escolhida por você: a leitura dessa frase longa faz o leitor se sentir na situação descrita, como um pedestre ao lado do casal, preocupado em conseguir atravessar a avenida sem ser atropelado e irritado com “os filhos de mães solteiras e pais incertos”.

    É claro que você nem pensou nisso quando escreveu. Mas um texto pertence também ao leitor...

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  27. Um amigo meu diz usar uma bengala toda vez que precisa andar e atravessar a rua. Segundo ele, motoqueiros tem medo da bengala ser inserida nas rodas da moto... sei lá, não uso...rs então não posso dizer se é verdade. Quanto andar de mãos dadas, como diz o poeta, não é a mão que a gente segura, mas o coração...

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  28. Não sei porque também me vi nesse texto.
    E olha que já são 48 anos de jornada com a minha cara metade.
    Abração, caro Hayton.

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  29. Andar de mãos dadas, eu e minha esposa fizemos até uma tatuagem com este símbolo no nosso corpo! Não há nada mais simbólico para um casal unido do que andar de mãos dadas!

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  30. Ademar Rafael Ferreira9 de agosto de 2023 às 18:04

    Vida de cão é coisa de pobre, os ricos dão aos cães uma vida de granfinagem.

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  31. Amigo Hayton.
    Também ando de mãos dadas, desconfio das faixas de pedestres, manero nos doces, faço exercícios para manter a saúde, para retardar a viuvez da esposa.
    Abraço

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