quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Menos, velho!

O velho Jacob é um árabe radicado em Alagoas desde 1967, quando desertou da Guerra dos Seis Dias, no Oriente Médio. Conta ele que sua fuga facilitou a vitória israelense sobre as tropas do Egito, Síria e Jordânia, quando Israel anexou a seu território a Península do Sinai, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Jerusalém e as Colinas de Golã. 

 

Foto: arquivo pessoal

Um faroleiro incorrigível! Já tentou até me convencer de que um de seus filhos foi aplaudido de pé em pleno Maracanã, depois de marcar um golaço contra o Flamengo de Zico. Mais que isso: jura que o moleque recebeu um passe perfeito de ninguém menos que Maradona, depois aplicou o drible da vaca sobre o goleiro adversário e só não entrou com bola e tudo porque não quis tripudiar. 

 

Há três meses, ainda trabalhava como cozinheiro a bordo de um rebocador (um barco que auxilia as manobras de navios na área portuária) que naufragou devido a uma falha mecânica. Só ele, acreditem, sobreviveu. 

 

O naufrágio foi tão rápido que nenhum dos 20 tripulantes conseguiu chegar à superfície. "Eu tinha ido ao banheiro. Fechei a porta e estava sentado no vaso sanitário quando o barco virou, a luz se apagou e ouvi gritos. Saí, mas não vi ninguém. A força da água me empurrou para uma das cabines e lá fiquei preso..."

 

Ele não imaginava é que aquele jorro seria providencial, o empurrando em direção a uma bolha de ar que permitiu algo improvável: sobreviver por 60 horas no fundo do mar até ser resgatado.

 

Nunca colocara os pés em um navio antes de conseguir o emprego a bordo. Havia sido cozinheiro numa pousada na Barra de São Miguel, no litoral Sul alagoano. A primeira experiência no mar, aliás, não foi nada boa. "Embora gostasse de praia, foram dois dias vomitando e rastejando”. 

  

O rebocador havia estabilizado um petroleiro numa das plataformas de petróleo no Nordeste em meio ao mar agitado. De madrugada, o velho Jacob acordou e foi para a cozinha lavar pratos e panelas até que os reflexos intestinais de uma moqueca do dia anterior lhe fizeram procurar o banheiro.

 

"Afundou ligeiro. Fiquei apavorado, ouvia gritos. Eram cinco e pouco da manhã, muita gente ainda dormia. A água borbulhava enquanto invadia os compartimentos. Depois, veio o silêncio". 

 

Quando a embarcação finalmente encalhou no fundo do mar, 30 metros abaixo da superfície, era o único que escapara, apenas de cuecas, preso num espaço pequeno, escuro e frio, sem comida nem bebida, com água pela cintura. 

 

Em terra, as famílias dos tripulantes foram informadas de que não havia sobreviventes, e a empresa proprietária do rebocador contratou especialistas para resgatar os corpos. Detalhe: se os familiares mantivessem a ocorrência sob absoluto sigilo, evitando redes sociais e a consequente investigação pelas autoridades, todos seriam muito bem recompensados.

 

Três mergulhadores, então, desceram até o fundo do mar numa câmara pressurizada, coordenados por um supervisor que acompanhava as ações por meio de uma câmera de um barco na superfície.

 

O velho Jacob disse que conseguia ouvi-los enquanto quebravam as portas para entrar na embarcação. "Quase não havia mais oxigênio na bolha de ar quando vi o reflexo de uma lanterna. Aí mergulhei, segui na direção da luz e, de repente, vi a água borbulhando. Era um mergulhador."

  

Os especialistas trouxeram então um equipamento de mergulho e o conduziram com cuidado até a superfície. "Estava tudo cheio de lama, não se via nada. Quando eu entrei na câmara pressurizada e percebi que era o único que havia escapado, desabei no choro”.

 

Depois de 60 horas de agonia, ainda teve que passar mais três dias numa câmara de descompressão para normalizar os níveis de nitrogênio que se acumularam nos tecidos e poderiam causar um ataque cardíaco. Enquanto isso, sua família (esposa e duas netas) era informada de que ele fora encontrado com vida. "Minha patroa chegou a desmaiar. Foi levada às pressas pro hospital..." – comentou.

 

Quando acordou, o médico enfim descobriu o real motivo do desmaio da esposa: a direção da empresa proprietária do rebocador havia autorizado a concessão de uma polpuda pensão vitalícia, além de plano de saúde e bolsa de estudos até a faculdade, para todos os herdeiros das vítimas fatais da tragédia.

 

“Pois é, doutor, na hora decisiva pro futuro de nossas netas, o inútil do meu marido estava cagando! Pode?!” – queixou-se a quase viúva, em compreensível, indignado e justo desabafo!

  


Reprodução: Placar

Como nada encontrei sobre a suposta tragédia na costa brasileira, tudo indica ser mais uma lorota do velho Jacob que, por ser bastante parecido, anda se passando por pai de Givaldo Santos Vasconcelos, o Jacozinho, ex-atacante do CSA nos anos 1980. Mas, o que é real ou ficção no noticiário em tempos de guerra?


quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O outono da vida

Um dos maiores escritores do século passado, Gabriel Garcia Marquez, Gabo (1927–2014), teve sérios problemas de saúde no outono da vida. Primeiro, enfrentou um câncer linfático. Depois, a demência que lhe roubou dois de seus bens mais preciosos: a memória e a capacidade de contar histórias. 

 

(Foto: Tomas Bravo)

Deu tempo, no entanto, de nos legar em seu livro Cem Anos de Solidão uma das expressões mais incensadas da literatura mundial: “O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão".

 

No primeiro domingo deste mês, passava das 10 da noite quando ela me telefonou e, num fiapo de voz, gemendo, praticamente negava a honradez do pacto a que Gabo se referiu: “Meu filho, me acuda... Acho que vou morrer. Vomitei muito, tô tonta, as pernas fracas...”

 

Logo ela, saudável e vaidosa, que não vai nem à portaria do prédio ou ao mercadinho da esquina sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos no espelho do elevador. Logo ela, que adora boleros e pagodes e não abre mão, pelo menos, de dois bailinhos por mês. 

 

Nos 15 minutos em que troquei de roupas e corri até o apartamento dela, pensei no que leva uma matriarca com 85 outubros, viúva por quatro vezes, mãe de 10 filhos, avó de mais de 20 netos e bisavó de quase 25 bisnetos a pôr em xeque o segredo da velhice agradável de que Gabo falava. 

 

A porta estava entreaberta. Recostada no sofá da sala, rosto pálido, olhos fundos, lábios ressequidos, quis especular sobre o que estava acontecendo: “Quase desmaio sentada no vaso… Acho que minha pressão subiu...”


De cara, pensei em carência de afetos, desatenção de filhos e netos que chuparam a taboca de roletes de cana e agora desprezam o bagaço. Mas não quis chateá-la com metáforas nada doces.  

 

Faz tempo que ela não quer mais dividir sua intimidade com ninguém. Mora só, cuida do próprio alimento, assiste TV, reza e circula nas redes sociais. “Amor pra valer eu só vivi o primeiro, com o pai de meus filhos. Se dependesse de mim, era ele quem eu queria para envelhecer do meu lado...”

 

Nunca foi de ler nem de escrever, um dos grandes regalos da solidão. E já não faz caminhadas à beira-mar, ao entardecer, como até bem pouco tempo. “Não dá mais! Eu caminhava com uma tabica pra espantar maloqueiros, mas morria de medo deles!” – contou outro dia.

 

Reclama que não se alimenta bem porque não sente mais prazer em nada que prepara para si mesma. “Quem gosta são os porteiros, com almoço e janta de graça” – pontua vez por outra. Cansa com facilidade, a esta altura, mas não aceita ajuda (exceto da faxineira, uma vez por semana), desde cozinhar, lavar panelas e pratos, até limpar banheiro. 

 

Parece que foi ontem. Aos sábados, nos anos 1980, os filhos (com noras e genros) se juntavam na casa da matriarca para beber e comer, chorar derrotas e cantar vitórias, e ouvir de novo o seu grito chamando à mesa posta com um panelão de guisado, mesmo depois de casados e dos primeiros filhotes de uma nova geração. 

 

Quando da morte de um de seus filhos, em 1991, vítima da ruptura de um aneurisma cerebral, pensou-se que ela tombaria junto. Claro, difícil entender como uma mãe suporta enterrar um pedaço de si sem enlouquecer de dor.

 

Deve ter aprendido ali que a morte não chega com a velhice. O que chega é a chatice de ver que, em silêncio, o fim se aproxima. De que é preciso segurar a ansiedade e viver semana a semana, sem fazer planos para o mês que vem ou para o próximo Natal.

 

No primeiro domingo deste mês, ela acusou o golpe, claramente chocada com a notícia de que outro de seus filhos (após meio século de cigarros e uma cirurgia de laringe) aguardava o resultado de uma biópsia. E lá fomos nós pelas ruas desertas, a caminho do hospital. 

 

Apesar da letargia da recepção e da triagem, foi rápido o atendimento: “a pressão tá dentro do esperado, mas ela tá muito desidratada. Vou fazer soro e pedir alguns exames de sangue, urina, tomografia..." – disse a plantonista.

 

Às 4:30 da madrugada de segunda-feira, de posse do resultado dos exames, a doutora concluiu: “Tá com anemia moderada. Já foi hidratada, precisa agora tomar esses medicamentos (um protetor estomacal e um remédio para náusea) e procurar especialistas para tratar da anemia e da tontura".

 

Na terça-feira, procurei saber dela, depois da notícia de que o quadro de seu filho não é tão grave quanto parecia de início. “Tá melhor... Já brincou até de esconde-esconde com os bisnetos...” – disse uma de suas netas.

 

Longe de mim questionar a construção literária de Gabo, mas o segredo de uma velhice agradável não pode ser apenas a assinatura de um pacto com a solidão. 


Parte do segredo é saber como regar a conta-gotas o jardim de contatos (inclusive virtuais) com quem sente prazer de nos contar novidades e de ouvir o que ainda temos a dizer. 

 

E que não morram antes de nós quem amamos. Impossível? O que seria do querer se não pudermos sonhar fora da bolha? Desejar apenas o possível é optar pela mediocridade. Tanto mais no outono da vida.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Ainda bem, Jaguar!

Velho vive repetindo histórias porque ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória. Quando repete, no entanto, nem a história nem ele são os mesmos. Ainda bem.

Jaguar, um dos maiores cartunistas brasileiros, chorava numa sala de cinema em Brasília, cidade onde morava em 2006 com Célia Regina Pierantoni, pós-doutora em saúde coletiva. Tinham acabado de assistir ao documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr., reconstituição da vida e da trajetória artística de Vinicius de Moraes, reunindo imagens e depoimentos de amigos em comum com o Poetinha: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

Vendo-o cabisbaixo, comovido, alguém tentou puxar conversa: "Já lhe disseram que o senhor é a cara do finado Jaguar?" E as lágrimas secaram no mesmo instante, sob uma estridente gargalhada: "Mulher! Eu morri e ninguém me contou nada!"


Quem me contou foi o próprio Jaguar, sete anos mais tarde, numa manhã de domingo, enquanto aguardávamos o transfer que nos levaria ao aeroporto, na recepção de um hotel na Bahia.


Foto: Luciana Whitaker

Menos conhecido como Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, Jaguar foi escriturário do Banco do Brasil por mais de 15 anos. Seu primeiro chefe, Sérgio Porto (1923 – 1968), o Stanislaw Ponte Preta, publicou vários livros, todos ilustrados por ele: Tia Zulmira e Eu; Primo Altamirando e Elas; Rosamundo e os Outros; Garoto Linha Dura; Febeapá – Festival de besteiras que assola o País; Febeapá 2; Na terra do Crioulo Doido; Febeapá 3; A máquina de Fazer Doido e Gol de Padre.

Em 1969, junto com Henfil, Ivan Lessa, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral (pai), Tarso de Castro e Ziraldo, Jaguar fundou O Pasquim, jornal de sátira política que aprendi a admirar ainda adolescente, em 1972.


Conversávamos sobre as tiradas de Sig, o ratinho-mascote do jornal, inspirado em Sigmund Freud, o criador da psicanálise, quando ele me atalhou: “O rato era meu alter-ego, sempre em crise existencial, apaixonado pela atriz Odete Lara...”


Falamos sobre a editora Codecri (acrônimo de Comitê de Defesa do Crioléu), responsável pelo projeto Disco de Bolso: vender em bancas de jornal compactos onde, no lado A, um nome consagrado na MPB lançaria uma nova canção e, no lado B, desconhecidos ganhariam visibilidade na cena artística nacional. 


O primeiro disco revelou o novato João Bosco, com Agnus Sei, dele e de Aldir Blanc, “apadrinhado” por Tom Jobim com uma obra prima inédita: Águas de Março.  


O segundo trouxe Caetano Veloso no lado A (cantando A volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga) e, no lado B, o iniciante Fagner, apresentando Mucuripe, sua e de Belchior. 


Mas parou por aí. Para Jaguar, “o governo via naquilo algo mais político que musical e deu fim ao projeto”. Tem quem diga, no entanto, que o projeto merecia melhor gestão.

  

Conversamos ainda sobre a “gripe" que atingiu a turma de O Pasquim, ironia com que se justificou a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, inclusive sobre o "remédio" aplicado para atenuar os “sintomas”: alguns intelectuais (Antonio Callado, Glauber Rocha, Chico Buarque e outros) se juntaram para, com seus escritos, manter "respirando" o semanário.


Um desses colaboradores foi o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, que fazia questão de levar pessoalmente seus textos à redação do jornal. Para Jaguar, na verdade “o velho estava de olho numa boazuda com quem fui casado por uns 10 anos”. 


Numa tarde, encharcado de uísque, Jaguar cruzou por acaso com Drummond e "soltou os cachorros”, ameaçando-o, caso insistisse em dar em cima de sua mulher. O poeta nunca mais voltaria à redação, mas continuou mandando sua contribuição periódica para O Pasquim, que seguia sendo mutilado pela censura do governo militar com cortes cavalares de textos, cartuns e charges (até hoje ninguém pagou por esse tipo de crime hediondo cometido contra as gerações futuras!).

 

Jaguar despediu-se de mim com mais uma gargalhada, realçando um cinismo ácido, brilhante e escrachado ao mesmo tempo: “Como fui besta! Perdi a chance de entrar para a história sendo corneado pelo maior poeta da língua portuguesa!”


Besta fui eu (hoje me dou conta disso!), Jaguar, que fiquei constrangido em procurá-lo novamente nas vezes em que, mais tarde, fui ao Rio de Janeiro, apesar de ter recebido convite e guardar o seu cartão de visitas. 


Algum tempo depois, li numa entrevista que você estima haver bebido, em mais de 60 anos, "uma piscina olímpica de cervejas, sem falar nos destilados: uísque, cachaça, conhaque, rum, vodca, absinto, bagaceira, grapa, saquê, tequila..." 

 

Isso, aliás, explica a cirrose e o câncer de fígado que quase precipitaram o fim da estrada para o autor da coletânea de crônicas Confesso que Bebi - Memórias de um Amnésico Alcoólico


A última notícia que tive sua foi há sete anos, através do também cartunista Paulo Caruso, a quem conheci em São Paulo, em 2016, e que nos deixou o ano passado. 


Caruso me contou que você seguia "viciado" em livros e jornais de papel, jazz, futebol, biriba e cerveja... Mas sem álcool, é claro. “Jaguar diz que, quando quer ficar tonto, abraça e gira em torno de um poste...”.


Aos 91 anos, o lendário transgressor ainda resiste de pé feito uma vela acesa na escuridão (e no obscurantismo) da cena brasileira, ainda que a chama e o rugido já não sejam os mesmos. Mas a ironia, a irreverência e o traço continuam afiados. Ainda bem, Jaguar!

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Data venia, gente!

Desde menino, queria fazer o que meu pai fazia: receber pessoas numa sala com mesa, cadeira, lixeira e ventilador; atender quem buscava tomar emprestado ou guardar dinheiro; escrever à máquina e caneta tinteiro, carimbar e rubricar documentos.

 

Não me arrependi, mas teria sido interessante trilhar outros caminhos, quem sabe como profissional do Direito. Afinal, quase todo mundo desenvolve desde cedo um senso de justiça, aquele sentimento que faz com que se tomeas dores de um desconhecido mesmo sem levar nenhuma vantagem nisso. Reconheço, uma visão romantizada pelos gibis e seus super-heróis, de Batman a Zorro.

 

Talvez conseguisse escapar do “juridiquês”, o cipoal de termos utilizados pelos profissionais da área, classificados como exagero de jargões, de gírias ou mesmo uma forma rebuscada de se distinguir socialmente. A rigor, penduricalhos cosméticos para pretensamente embelezar expressões arcaicas, algumas numa língua morta (o latim). 

 

Ilustração: Umor

Para um advogado, por exemplo, tão importante quanto saber de leis é conhecer uma língua viva (sua maior "ferramenta" de trabalho), pois advogar, antes de tudo, é falar por alguém. Acho esquisito ver expressões latinas numa petição onde se requer apenas uma declaração de inexigibilidade de multa por atraso de pagamento de uma fatura qualquer. 

 

Sei que o ordenamento jurídico brasileiro originou-se no Direito Romano, que se escorou no latim. Mas para ser compreendido na transmissão de uma mensagem qualquer, melhor abrir mão do “juridiquês" e se ajoelhar aos pés da santíssima trindade da comunicação: a clareza, a concisão e a objetividade.

 

A terminologia adotada por advogados, procuradores, promotores, juízes, desembargadores etc., às vezes é incompreensível até pelos mais letrados. Já li em algum lugar, aliás, que alguém já escreveu "o indigitado se evadiu do ergástulo público" onde bastaria "o réu fugiu da cadeia"?

 

Pelo menos uma vez por ano, faria bem reler Graciliano Ramos, para quem: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam... Somente depois de feito tudo isso é que elas penduram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”

 

Espanariam o mofo e a poeira de certas expressões, que poderiam ser reescritas desta maneira: 

Chamamento à lide processual – O “santo” aí também deve!

Coautoria e litisconsórcio passivo – Sabiá que voa com joão-de-barro vira ajudante de pedreiro.

Data venia – Dá licença, doutor?!

Embargos de declaração – Explique isso melhor, doutor!

Execução de alimentos – Farinha pouca, primeiro meu pirão.

In dubio pro reo – Na dúvida, deixa quieto!

Mutatis mutandis – Mudando o que tem que mudar.

Nomeação à autoria – Dedurando o resto dos “santos”!

Pacta sunt servanda – Obrigações devem ser cumpridas (ou: perdeu, mané! Vai ter de pagar!).

Periculum in mora – Relógio que atrasa, não adianta.

Princípio da iniciativa das partes – Faça o seu que faço o meu.

Princípio do contraditório – Agora é minha vez! (ou: enquanto um burro fala, o outro abaixa as orelhas e escuta).

Recurso adesivo – Pegando o vácuo.

Reincidência – De novo, mané?!

Trânsito em julgado – Prego batido, ponta virada.

 

Tem menos de 10 anos que, no TRT da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, um juiz demonstrou como uma decisão pode (e deve) ser tomada sem expressões dispensáveis. O processo envolvia um pedreiro, que pedia o reconhecimento de vínculo empregatício e indenização por danos morais, depois de sofrer um acidente enquanto trabalhava numa obra.

 

A história, resumida sem enfeites: "Três meses depois de iniciada a obra, o pedreiro caiu da sacada, um pouco por falta de sorte, outro pouco por falta de cuidado, porque ele não tinha e não usava equipamento de proteção. Ele, ... [o dono da propriedade], ficou com pena e acabou pagando até o serviço que o operário ainda não tinha terminado".

 

A conclusão, também: "Essa indenização ameniza um pouco o sofrimento de... [o pedreiro], mas também serve para... [o dono da propriedade] lembrar que tem obrigação de cuidar da segurança daqueles que trabalham na sua casa, mesmo quando não são empregados. Por sua vez,... [o pedreiro], não pode pretender ficar rico com a tragédia; mas também o dinheiro tem que fazer alguma diferença na sua vida. Pensando nisso tudo, considerando a metade de culpa que cada um tem e das condições financeiras dos dois, além das circunstâncias do acidente, fixo a indenização em...".

 

Simples, não? Compreensível até pelos analfabetos funcionais, cerca de 40 milhões de brasileiros que até reconhecem letras e números, mas não conseguem explicar o que leram.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Um especialista a mais

Essa coisa de especialista pra tudo que existe anda passando dos limites! 

Circula na Internet um anúncio publicitário de um cirurgião dentista oferecendo biodecodificação dental. Trata-se, segundo ele, de uma leitura da mensagem subliminar embutida nos dentes, seja lá o que isso signifique. 


Diz que, através de uma radiografia panorâmica, é possível ter acesso aos conflitos emocionais vividos, às heranças transgeracionais e à compreensão das relações humanas, buscando algo mais nobre do que o simples fato de viver melhor: o equilíbrio interior, o reencontro com a autenticidade, a integridade de ser, e “livrar-se das repetições que prendem”.

 

E quis ser mais objetivo: “o procedimento é uma espécie de chave para compreender e ajustar os relacionamentos, um caminho para libertação da culpa e do julgamento, um aprendizado da verdadeira responsabilidade individual, uma promessa genuína e verdadeira de vida…” 

 

Nem bem me recuperei do susto, corri até o espelho do banheiro para procurar indícios da tal mensagem subliminar em minha arcada dentária amarelo-café. Nada encontrei, juro! 


Resolvi caminhar um pouco para espairecer e dei de cara com outra peça publicitária única, colada num poste: o centro espírita “Prazeres do Além” propõe às viúvas em geral que experimentem momentos de prazer “com seus falecidos maridos”. E recomenda trazer uma cueca do defunto (limpa, presume-se, livre das “marcas de freio de bicicleta”). 

 

Reprodução/Redes Sociais

  

Para quem viaja de avião, ônibus ou trem, ou precisa pernoitar fora de casa, sabe-se que guardar dinheiro e cartões de crédito pode tornar-se um problema sério. Por isso existe o money belt, uma pequena bolsa de tecido com um fecho que se prende à cintura por baixo das calças ou da camisa. 

 

Se for dormir em hotel, óbvio, o viajante poderá guardar os pertences no cofre. Porém um especialista inventou o esconderijo perfeito, unindo as vantagens de um com as virtudes do outro: o brief-safe (cofre-cueca, em tradução livre). 

 

O cofre-cueca é um dispositivo comercializado por uma empresa norte-americana de equipamentos militares para guardar cédulas, documentos e outros valores num compartimento secreto de 10x25 cm, fechado por um velcro. Um detalhe “especial” na parte inferior permite que seja deixado à vista em qualquer lugar sem qualquer risco. Ninguém se atreve a mexer. Custa 10 dólares e vem na cor branca, com uma “marca de freio” na cor castanha. Só falta um borrifador com o odor característico artificial para atingir a plenitude estética e olfativa.  

 

Daqui a pouco vai ter brazuca negociando uma parceria com outra firma estrangeira que oferece um serviço cuja aceitação vem crescendo de forma assustadora: se o seu ente querido foi cremado e você não sabe o que fazer com as cinzas, pode pintar uma tela em preto-e-branco com os restos mortais e pendurá-la na parede. Preço a combinar, caso a caso.

   

Me contaram, aliás, que está sendo criada em São Paulo (com perspectivas de expansão para Brasília e Rio) uma startup bastante promissora. Se a pessoa está errada em determinada situação e pretende pedir desculpas, mas não tem coragem de procurar quem deve perdoar, contrata uma especialista nisso. A ideia é cobrar, via PIX, R$ 200,00 por um pedido de desculpas por telefone (ou mensagem), e R$ 600,00 por um pedido pessoalmente. Agora, sim, esse tipo de desgaste tem custo e preço!

 

E se alguém resolve cair na orgia depois do trabalho, sem deixar pistas de onde esteve (nem com quem), a plataforma disponibilizará um ônibus-leito devidamente equipado para curar enxaqueca, náuseas e queimação de estômago. 


A pessoa será hidratada com isotônicos e sucos variados, com açúcar mascavo ou adoçantes naturais, além de receber medicação intravenosa para acelerar a metabolização do álcool e outras substâncias tóxicas. O maior risco é encontrar lá dentro, se restabelecendo de outro bacanal, a própria cara-metade, que amanhecera com o mesmo propósito.

 

E enquanto se recupera dos estragos de ordem geral, um especialista cuidará de remover de suas roupas eventuais manchas de secreções, delineador, lápis de olho e rímel, com água, álcool e glicerina. Acetona e detergente, só no caso de batom. 


Como se vê, surgem especialistas pra tudo o que se imagina. E uma de minhas maiores frustrações confessáveis é não ser especialista em merda nenhuma. Até cogitei trabalhar como técnico de um laboratório de análises clínicas, mas desisti. Nunca levei o menor jeito pra coisa.

 

Hoje, metido a farejador de notícias do cotidiano, ando pensando em me aprofundar no que classifico de "jornalismo relativo". Se aconteceu, pode ser fato; se for mentira, mais ainda. Tudo depende da troca ou do troco, da verba ou do verbo. 


Quem sabe, viro especialista. Querendo, posso vender bem o que for publicar e, melhor ainda, aquilo que resolver não publicar. Afinal, um contador de histórias não deve se preocupar com a verdade. As versões por aqui costumam ser mais verdadeiras que a verdade. 


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Ler e namorar, é só querer e começar

A Bienal Internacional do Livro de 2023, que terminou domingo passado, no Rio, contou com mais de 600 mil visitantes e 5,5 milhões de livros vendidos durante os 10 dias do evento (média de nove livros por pessoa), segundo seus organizadores. 

São sinais alentadores numa nação tão carente de tudo. Livro é a semente geradora dos mais diversos tipos de mídia (filmes, games, músicas, seriados etc.) que contam histórias, provocam reflexão e desenvolvem senso crítico.

Justamente quando volta a circular nas redes sociais uma velha notícia dando conta de que um grupo de lixeiros de Ancara, capital da Turquia, ao longo de anos recuperou livros que ia encontrando abandonados entre os desperdícios da população. Em 2017, reuniu-se quantidade suficiente para inaugurar uma biblioteca pública composta de obras destinadas aos aterros sanitários.

Foto: Nation
 

No começo, os livros serviam apenas aos familiares dos garis. Mas a coleção cresceu e o interesse espalhou-se por toda a comunidade. Hoje, a biblioteca dispõe de mais de 6.000 títulos, que vão desde a literatura de autoajuda até artigos científicos. E inclui ainda obras em inglês e francês para visitantes bilíngues.

 

O acervo é tão grande que os escritos vêm sendo requisitados por escolas de várias regiões do país, programas educativos e até penitenciárias. E uma antiga fábrica de tijolos, com fachada simples e longos corredores, transformou-se em centro de educação e cultura.

 

Logo abaixo da boa notícia turca, aparece um novo rabicho de comentários. Um reclama: “Não entendo como alguém tem coragem de jogar livro no lixo; é só doar...” Outro não perdoa: “Essas iniciativas do povo pelo povo me dão esperança de que um dia se perceba que não se precisa de nenhum político para resolver seus problemas...” E outro, mais enfático, puxa o cordão dos pessimistas: “Não daria certo aqui, porque o povo odeia leitura...” 

 

A Turquia não é nenhum expoente econômico, como os Estados Unidos ou a China. Nem figura entre os melhores países para se viver, como Dinamarca, Suécia ou Brasil (na minha estatística pessoal, óbvio!). Com 85 milhões de habitantes e situada entre a Europa e a Ásia (ou, melhor, situada na Europa e na Ásia), tornou-se após a 2ª Guerra importante centro regional de negócios, com destaque para o grande parque industrial e a oferta de serviços turísticos.

 

A 5ª edição do estudo “Retratos da leitura no Brasil” (dados de 2019) revela que apenas metade dos brasileiros dedica-se à leitura, sendo a Bíblia e os jornais os veículos mais lidos. Parece positivo, mas não é, quando comparado com outras nações. Os franceses leem em média 21 livros por ano, cinco vezes mais que nós. O canadense lê 12. Aqui, 44% da população nem lê e 30% nunca comprou um livro na vida.

 

Há 10 ou 11 anos, participei de uma reunião com alguns executivos do maior grupo editorial da América Latina, líder em vários segmentos editoriais (arquitetura, beleza, bem-estar, decoração, economia, moda, política etc.), destinatário de boa parte da verba publicitária da empresa onde eu trabalhava. Neófito no ramo, quis saber deles se não lhes preocupava o fato de sua principal revista ser dona de uma das maiores tiragens mundiais (dois milhões de exemplares por semana), mas lida apenas por 1% da população brasileira. 

 

Se tinham respostas, guardaram para si. Talvez a consulta não tenha sido oportuna numa visita de cortesia. Fiquei sabendo mais tarde, pelos jornais, que em agosto de 2018 o grupo teve acolhido o seu pedido de recuperação judicial. Coincidência? 

 

Meses antes daquela visita, como um dos selecionadores, havia participado de um processo seletivo interno para executivos de um dos gigantes do setor financeiro. Quis saber de cada candidato qual o livro mais marcante tinha lido no último ano e como aquilo eventualmente mexeu com a sua forma de lidar com pessoas no trabalho ou fora dele. Quase todos optaram pelo surrado “não gosto de histórias, prefiro livros técnicos”. 

 

Volta e meia ainda encontro gente que garante que foi alfabetizada, mas não lê. Sabe até juntar duas ou três sílabas e distingue poliglota de troglodita (já houve por aqui quem achasse que eram palavras sinônimas), mas foge de livro como gato de pepino por questões atávicas. Não consegue parar para ler porque “dá sono” ou porque prefere vídeos ou textos curtos em Facebook, Instagram, TikTok, WhatsApp, YouTube etc. 

 

A obsessão por celulares e mídias sociais explica o baixo interesse na leitura. É mais “enfadonho” concentrar-se numa crônica (para não falar de biografias, contos e romances) do que “refletir sobre obras primas” nas plataformas digitais. 

 

Para mim, é como dizer que não vê graça alguma em namorar, que é preferível assistir aos outros se pegando debaixo de edredons naqueles programas de TV onde um grupo fica confinado por semanas numa casa cenográfica, sem receber informações do mundo exterior, quase tudo vigiado por câmeras 24 horas por dia. 

 

“Quem gosta de ler não morre só”, advertia Ariano Suassuna. "É preciso ler para crer", disse outro dia meu amigo Francicarlos Diniz, outro que sempre sabe o que diz.


Ler amplia a imaginação, estimula o raciocínio, exercita a inteligência, permite viajar sem tirar os pés do chão e ainda previne doenças degenerativas. Namorar pra valer, também.  

 

Ninguém é obrigado a ler o que não tem vontade, nem a namorar quem não quer. Mas em qualquer lugar, tanto uma coisa como a outra pede bem-querer, carinho, dedicação, paciência e um lugar sagrado para recostar. Da Turquia à Bahia.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A grande ameaça

Ouvi de um amigo que o sertão nordestino passa por  mudanças tão radicais que até as abelhas andam confusas: só querem saber de caldo de cana e pão doce (até aí, não discordo muito das abelhas). E ilustra o que afirma com o caso de Doidinho, um matuto grosso que só pescoço de carreteiro que, todo ano, dava um jeito de arranjar um jegue e cair na estrada, durante a safra, vendendo cajus.

 

CLARK HULINGS - Cena de rua - Óleo sobre tela 

Com a produção minguando ano a ano, ele resolveu se desfazer de sua jumenta, vendendo-a por uma ninharia ou simplesmente abandonando-a à própria sorte no olho da rua, com fome e sede, para espanto do compadre com quem tomava uma bicada numa bodega.

 

– Tu tem coragem de fazer uma coisa dessas com a coitada, que tanto te ajudou? Ficou doido de vez, foi?! – protestou o compadre, balançando a cabeça.

– Oxente! E eu vou dar de comer a vagabunda? Não quer fazer mais nada... Só se deitar na sombra! – justificou-se Doidinho. 



“Adote um jumento” foi o apelo feito outro dia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), numa parceria entre o Grupo de Pesquisa e Extensão em Equídeos e Saúde Integrativa com o Canal de Adoção (Programa de Apoio aos Animais). 

 

A campanha estimula a adoção responsável de animais, resgatados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), que vagueavam pelos acostamentos ou sofriam maus-tratos e teriam como destino o abate para a venda da carne e da pele a países asiáticos. 

 

Reduz mas não elimina o problema. O abate de jericos no Nordeste – os quadrúpedes, bem entendido! –, sobretudo depois da introdução de motocicletas no meio rural, vem diminuindo drasticamente o número de animais, já sob grave risco de extinção. 

 

Há sete anos, o Brasil virou exportador de couro de jumento para a produção do ejiao, uma espécie de gelatina obtida a partir da fervura, usada como ingrediente na medicina milenar chinesa, mesmo sem comprovação científica de eficácia. Vem sendo aplicada no tratamento de vários problemas de saúde, como anemia, impotência sexual, incontinência urinária, insônia, menstruação irregular, tosse seca e vertigem. 

 

E a população de jegues caiu mais de 60% entre 2017 e 2022, por causa do abate sem reposição. A demanda e a lucratividade fizeram com que os asiáticos mirassem o gigante da América do Sul, que dispunha de um rebanho expressivo – em 2013, havia cerca de 900 mil jumentos, 90% no Nordeste, segundo o IBGE. 

  

Esse fiel ajudante do povo nordestino já foi mais considerado entre nós. Lembro de Miltinho, um servidor público que conheci no interior de Alagoas, que nas horas vagas se virava negociando todo tipo de mercadoria, de bicicleta de segunda mão a trancelim banhado a ouro. Até armas de fogo, adquiridas na feira de Caruaru/PE, para revenda a policiais da região, que assim podiam trabalhar despreocupados, evitando o uso do revólver oficialmente sob sua custódia. 

 

Numa manhã de sábado, na sala-de-estar de sua casa, ele me oferecia um relógio quando ouvimos juntos, vindas lá de fora, as queixas de Catita, sua esposa, que varria a calçada enquanto botava em dia a conversa com uma vizinha de porta:

– Não tem quem aguente esse homem! Não vale a bufa de uma muriçoca! Vive comprando, trocando ou vendendo tudo que tem dentro de casa. Nem meu rádio de pilha escapou, foi parar na mão de uma rapariga!

– Deixe de falar mal do próprio marido! – interrompeu Miltinho, rindo do próprio flagrante – Tô já trocando você numa jumenta que vi ali na feira, com a cangalha cheia de mangas. A bichinha trabalha o dia inteiro e não abre a boca pra reclamar de nada! 

 

Bem antes disso, na segunda metade dos anos 1960, o jumento e seu tangedor – aquele que, na seca, retirava água de cacimbas perfuradas nos leitos esturricados dos rios temporários da região e a transportava no lombo do jerico às famílias – fizeram por merecer até um monumento em praça pública, na entrada da cidade de Santana do Ipanema, no sertão alagoano.

   

Reprodução/Blog Apenso com Grifo (João Neto)


Construído na gestão do então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, o duplo reconhecimento coincidiu com a chegada, na região, de água encanada do rio São Francisco. O tangedor homenageado com a estátua conduzindo o animal era conhecido como Candinho, tido como o mais prestativo “botador” de água das redondezas.


É bem verdade que a inclusão do jegue na homenagem custou enormes dissabores ao prefeito, que enfrentou até ameaças de impeachment por parte dos vereadores oposicionistas, os quais preferiam um filho da terra no lugar do animal. Esses bravos representantes do povo, mesmo acreditando nas palavras de Luiz Gonzaga, de que "o jumento é nosso irmão", não queriam que alguém da família fosse assim retratado. 


Hoje, com tantas mudanças acontecendo no sertão, onde até as abelhas andam confusas, e diante da volúpia com que os asiáticos avançam sobre o couro desses infatigáveis quadrúpedes, realmente o fim da espécie está próximo. 


Os chineses não são burros. O grande perigo é que ficarão no Brasil apenas os jumentos que, de fato, nos ameaçam: os bípedes. 



quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Narizes

Seja arrebitado, de batata ou feito gancho, o nariz é o epicentro do rosto humano. Seu formato depende da genética, mas, a rigor, trata-se de uma adaptação aos odores e ao clima das diferentes regiões do Planeta, segundo um estudo recente, publicado por uma revista científica vinculada à Biblioteca Pública de Ciência dos Estados Unidos (a PLOS Genetics).

 

Pesquisadores se debruçaram sobre uma gama de tamanhos, analisando a largura das narinas, a distância entre elas, a altura, o comprimento etc., e concluíram que as diferenças entre os formatos poderiam ter sido acumuladas ao longo do tempo, além da seleção natural (os mais aptos sobrevivem, reproduzem-se e repassam suas características aos descendentes).

 

“Nariz, ai, meu nariz/ Como falam mal deste nasal, que é tão normal...”, cantava o inesquecível Juca Chaves, que sabia como ninguém se aproveitar de seu “bandeirante” – o primeiro a chegar nos cantos, segundo ele. Aliás, o de Juca precedeu a fama de outros célebres, como os de PC Caju, Fagner, Zé Ramalho e Luciano Huck. 

 


Li na Folha de São Paulo, recentemente, um artigo assinado pela jornalista Dália Ventura, afirmando que a crinolina teria sido uma das roupas mais perigosas já inventadas, mas também uma das mais amadas da história.

 

Para quem desconhece (eu não sabia, confesso! Até pensei ser um parente próximo da creolina), a crinolina é uma armação metálica usada sob as saias para lhes conferir volume, dispensando várias anáguas. A peça marcou o surgimento da moda propriamente dita porque trouxe um avanço: enquanto a estrutura da anágua era feita de osso de baleia, crina de cavalo, vime, madeira ou borracha inflável, a das crinolinas era feita de metal. 

 

O artigo citado revela que, na noite de 31 de outubro de 1871 (Dia das Bruxas, segundo a crença dos colonizadores dos Estados Unidos), as irlandesas Emily e Mary, meias-irmãs do escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde, foram a um baile. Perto do final, Emily dançava com um de seus admiradores e, num de seus giros perto da lareira, o vestido pegou fogo. Mary tentou socorrê-la, mas também ateou fogo em sua própria roupa. E as irmãs não resistiram às queimaduras, tal como milhares de outras vítimas fatais, ao longo da História, envolvendo uma das roupas mais desejadas de todos os tempos.

 


Desejadas, sim, porque, apesar de várias tragédias 
– apurei que a pior delas ocorreu em 1863, quando milhares de pessoas não conseguiram escapar de um incêndio numa igreja da Companhia de Jesus em Santiago do Chile , a crinolina oferecia melhor mobilidade, ventilação e espaço, conferindo mais autonomia para evitar contatos indesejados e permitindo às mulheres decidirem sobre o que exibir ou esconder. Podiam, inclusive, guardar segredos inconfessáveis, desde amantes baixinhos, contrabando, gravidez, até pernas peludas e tortas.

 

Para desagrado da elite no Reino Unido, a crinolina passou a ser usada por todas as classes sociais, até mesmo por escravas libertas, que evidenciavam com seus dotes físicos força e poder para encarar de forma mais equânime a luta por igualdade social.

 

Fiquei numa dúvida terrível. Para mim, havia outro motivo bem mais razoável para o uso daqueles saiões de filmes e novelas de época. Seria capaz de jurar que, por baixo, nem calcinhas havia. Como não existiam cuecas, bidês nem duchas higiênicas.

 

Além disso, o primeiro papel higiênico do mundo só foi produzido em massa na segunda metade do século XIX, na tentativa de poupar certas partes dos danos causados por jornais, papéis de bodega, sabugos de milho e outros itens improvisados (folhas, gramas, peles de animais etc.) ao longo da aventura humana sobre a Terra.  

 

Penso que, naquela época, a etiqueta de convívio devia exigir um distanciamento social protocolar para não ferir narinas mais sensíveis, sobretudo no inverno europeu em que não se tinha o menor estímulo para o banho semanal.

 

Dizem, aliás, que a ausência de redes encanadas e esgotos era suprida com a utilização de copos e bacias que raramente permitiam o banho de hoje. As pessoas se sentavam numa cadeira enquanto despejavam pequenas porções de água nas áreas a serem asseadas.

 

Fala-se também que, mais remotamente, na falta de sabão, os babilônios misturavam gordura animal e cinzas vegetais para diminuir o cheirume. Entre os egípcios, a receita era até um pouco mais elaborada: levava também argila e bicarbonato de sódio. 


O cheiro característico das partes íntimas, afinal, remonta ao dia do despejo do Paraíso de Adão e Eva. O casal, imagina-se, não teria levado nem uma mísera sacola de bugigangas (cotonetes, creme e fio dental, desodorante, escovas, lenços umedecidos, protetores íntimos, sabonetes, essas coisas). 


De modo que minha dúvida persiste, mas estou seguro de que a crinolina, apesar de seu trágico histórico, prestou inestimável serviço às referências olfativas e ao formato atual das fossas nasais humanas, livrando de certos odores que deixaram de ser inalados. Ou não. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O olhar de Marieta

Um olhar nunca é só um olhar. Possui mistérios e sutilezas que apenas outro olhar (até de um inocente curioso como eu; mais curioso do que inocente, alguém diria!) pode ver. Existem flagrantes que dispensam legendas. Falam por si sós.

 

Foto: Reprodução 

Este olhar, não tenho dúvida, traduz na justa medida a admiração, o amor, o carinho, a cumplicidade e o cuidado na escolha de alguém com quem partilhar planos, prantos e pratos.

 

O dramaturgo Aderbal Freire-Filho, que fez por merecê-lo de Marieta Severo, deixou este plano na última quarta-feira, aos 82 anos. 


Ela desabafou sobre como reagiu após vê-lo sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico, em 2020. “Foi mais do que sofrido, foi inacreditável”, disse em entrevista a um site de notícias.

 

“É uma consciência da precariedade da vida que tomou conta da minha. Por mais que a gente saiba dela na teoria, quando ela se apresenta, muda tudo. Estávamos em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com as minhas netas, por causa da pandemia. Ele ia para o Rio resolver uma questão do imposto de renda e voltaria no dia seguinte. Nos falamos três vezes depois que ele saiu”, arrematou.

 

O interessante da relação entre eles é que não dividiam o mesmo teto. Marieta explicava que, como se casou pela primeira vez muito nova (com Carlos Vergara, em 1964), nunca teve um espaço para chamar de seu. 

 

Ela, portanto, nunca precisou sacudi-lo às seis da manhã, sorrir um sorriso pontual nem dizer pra ele se cuidar. Nem lhe fazer com açúcar e com afeto o seu doce predileto. Viviam muito bem, cada qual sob seu teto. 

 

Ela, que começou a se relacionar com ele depois dos 50 anos, disse certa vez que a história desse amor era bastante madura, porque cada um já vivera experiências antes de se encontrarem (após dois anos com Carlos Vergara, foi casada com Chico Buarque durante 33 anos).

 

Na época, não vou negar, fiquei triste com o fim do casamento de Marieta e Chico, depois de amargarem um exílio juntos (quando estiveram na alça de mira da ditadura militar) e de trazerem ao mundo três lindas filhas. Certos casais a gente sempre acha que são “para sempre”.

 

Queridos do público, bem-sucedidos, para muitos eles personificavam o “para sempre”. A notícia da separação intrigou os fãs, que teimam em não aceitar que a rotina cotidiana de astros, assim na Terra como no Céu, também se desgasta. 

 

Ainda bem que da união com Chico, além de Silvia, Helena e Luiza, brotaram lindas frutas como a amizade, o respeito e a admiração mútua. Sem contar as parcerias no teatro.

 

Em 2004, cinco anos após o divórcio, Marieta fez revelações interessantes numa entrevista. “Vejo casais que se separam e não se falam mais e fico chocada…  O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil”. 

 

E disse mais sobre a vida a dois: “Não tinha glamour nenhum. Era dor de dente, briga com as crianças que deixaram tudo fora do lugar, com quem não fez a lição... Eu saía de casa para ir trabalhar, deixava as crianças com a babá e tinha culpa, sim. Como qualquer outra mulher. Ah, o glamour! A gente na banheira, com rosas em volta... Que banheira?! Não dava tempo nem de tomar banho direito!”. 

 

Naquele mesmo ano, Aderbal chegou até Marieta como quem chega do nada, não lhe trouxe nada, também nada perguntou. Vai ver pegou em sua mão e antes que ela dissesse “não”, instalou-se feito um posseiro dentro de seu coração. Bem feito pros dois!

 

Dezesseis anos mais tarde, ele sofreria o acidente. Aderbal ficou mais de dois meses internado. Ao deixar o hospital, os dois passaram a compartilhar a mesma casa pela primeira vez. Mas ele nunca mais se recuperou das sequelas do derrame.

 

O velório aconteceu no teatro Poeiras, repleto de amigos e tomado pela emoção, principalmente quando as netas de Marieta cantaram em homenagem a Aderbal. O corpo foi cremado quinta-feira passada, em cerimônia íntima, no Memorial do Carmo, no Caju, Rio de Janeiro, com a presença apenas da viúva e de algumas pessoas que trabalham no teatro.

 

Marieta contou que, assim que a equipe médica lhe disse que o quadro era irreversível, conversou com a amiga Andrea Beltrão (uma das responsáveis pela criação do teatro Poeiras, ao lado do casal) sobre a possibilidade de enterrar no teatro as cinzas do marido. 

 

Uma placa será colocada com o nome de Aderbal no muro do canteiro, espaço em que foi enterrada a urna com suas cinzas. E uma árvore será plantada no local, marcando assim a presença, para sempre, daquele que um dia fez por merecer o olhar de Marieta.