A grande ameaça
Ouvi de um amigo que o sertão nordestino passa por mudanças tão radicais que até as abelhas andam confusas: só querem saber de caldo de cana e pão doce (até aí, não discordo muito das abelhas). E ilustra o que afirma com o caso de Doidinho, um matuto grosso que só pescoço de carreteiro que, todo ano, dava um jeito de arranjar um jegue e cair na estrada, durante a safra, vendendo cajus.
CLARK HULINGS - Cena de rua - Óleo sobre tela |
Com a produção minguando ano a ano, ele resolveu se desfazer de sua jumenta, vendendo-a por uma ninharia ou simplesmente abandonando-a à própria sorte no olho da rua, com fome e sede, para espanto do compadre com quem tomava uma bicada numa bodega.
– Tu tem coragem de fazer uma coisa dessas com a coitada, que tanto te ajudou? Ficou doido de vez, foi?! – protestou o compadre, balançando a cabeça.
– Oxente! E eu vou dar de comer a vagabunda? Não quer fazer mais nada... Só se deitar na sombra! – justificou-se Doidinho.
A campanha estimula a adoção responsável de animais, resgatados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), que vagueavam pelos acostamentos ou sofriam maus-tratos e teriam como destino o abate para a venda da carne e da pele a países asiáticos.
Reduz mas não elimina o problema. O abate de jericos no Nordeste – os quadrúpedes, bem entendido! –, sobretudo depois da introdução de motocicletas no meio rural, vem diminuindo drasticamente o número de animais, já sob grave risco de extinção.
Há sete anos, o Brasil virou exportador de couro de jumento para a produção do ejiao, uma espécie de gelatina obtida a partir da fervura, usada como ingrediente na medicina milenar chinesa, mesmo sem comprovação científica de eficácia. Vem sendo aplicada no tratamento de vários problemas de saúde, como anemia, impotência sexual, incontinência urinária, insônia, menstruação irregular, tosse seca e vertigem.
E a população de jegues caiu mais de 60% entre 2017 e 2022, por causa do abate sem reposição. A demanda e a lucratividade fizeram com que os asiáticos mirassem o gigante da América do Sul, que dispunha de um rebanho expressivo – em 2013, havia cerca de 900 mil jumentos, 90% no Nordeste, segundo o IBGE.
Esse fiel ajudante do povo nordestino já foi mais considerado entre nós. Lembro de Miltinho, um servidor público que conheci no interior de Alagoas, que nas horas vagas se virava negociando todo tipo de mercadoria, de bicicleta de segunda mão a trancelim banhado a ouro. Até armas de fogo, adquiridas na feira de Caruaru/PE, para revenda a policiais da região, que assim podiam trabalhar despreocupados, evitando o uso do revólver oficialmente sob sua custódia.
Numa manhã de sábado, na sala-de-estar de sua casa, ele me oferecia um relógio quando ouvimos juntos, vindas lá de fora, as queixas de Catita, sua esposa, que varria a calçada enquanto botava em dia a conversa com uma vizinha de porta:
– Não tem quem aguente esse homem! Não vale a bufa de uma muriçoca! Vive comprando, trocando ou vendendo tudo que tem dentro de casa. Nem meu rádio de pilha escapou, foi parar na mão de uma rapariga!
– Deixe de falar mal do próprio marido! – interrompeu Miltinho, rindo do próprio flagrante – Tô já trocando você numa jumenta que vi ali na feira, com a cangalha cheia de mangas. A bichinha trabalha o dia inteiro e não abre a boca pra reclamar de nada!
Bem antes disso, na segunda metade dos anos 1960, o jumento e seu tangedor – aquele que, na seca, retirava água de cacimbas perfuradas nos leitos esturricados dos rios temporários da região e a transportava no lombo do jerico às famílias – fizeram por merecer até um monumento em praça pública, na entrada da cidade de Santana do Ipanema, no sertão alagoano.
Reprodução/Blog Apenso com Grifo (João Neto) |
Construído na gestão do então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, o duplo reconhecimento coincidiu com a chegada, na região, de água encanada do rio São Francisco. O tangedor homenageado com a estátua conduzindo o animal era conhecido como Candinho, tido como o mais prestativo “botador” de água das redondezas.
É bem verdade que a inclusão do jegue na homenagem custou enormes dissabores ao prefeito, que enfrentou até ameaças de impeachment por parte dos vereadores oposicionistas, os quais preferiam um filho da terra no lugar do animal. Esses bravos representantes do povo, mesmo acreditando nas palavras de Luiz Gonzaga, de que "o jumento é nosso irmão", não queriam que alguém da família fosse assim retratado.
Hoje, com tantas mudanças acontecendo no sertão, onde até as abelhas andam confusas, e diante da volúpia com que os asiáticos avançam sobre o couro desses infatigáveis quadrúpedes, realmente o fim da espécie está próximo.
Os chineses não são burros. O grande perigo é que ficarão no Brasil apenas os jumentos que, de fato, nos ameaçam: os bípedes.
Miltinho não lembra nem de longe um certo coronel ajudante de ordens, que ganhou, ultimamente, as manchetes nos jornais. Ele só vendia o que garimpava nas feiras.
ResponderExcluirSe era doente, não faço ideia de qual seria o seu CID.
O Mao Branca, um quadrúpede nascido e criado em Atalaia-AL, era diferenciado, não havia fêmea nas redondezas que escapasse de sua libido, era insaciável. Certa vez, contou um amigo (Jaja) o bicho avançou sobre uma jumenta mocinha e nem o fueiro(porrete de 4 quinas usado em carroça e carro de boi) foi capaz de abortar o ato na frente de todos. Bolero de Batalha AL era outro, numa oportunidade subiu sobre uma mocinha debaixo de chicotadas, o sangue escorrendo pelas orelhas só largou o osso após destruir a farmácia de seu Agenor e garantir a perpetuação da espécie. Farão falta até pela raça com que encaram todo tipo de trabalho.
ResponderExcluirO “anônimo” acima chama-se Vicente Correia
ExcluirO jumento lá no sertão servia até pra dar a hora certa e com certeza ainda não recebeu a homenagem que merece por tudo que permitiu ao sertanejo. Assim como o Egito foi uma dádiva do Nilo, o Nordeste é do jumento. Dedé Dwight
ResponderExcluirA tendência é mesmo que só restem mesmo os jumentos bípedes que assolam este país, e que também estamos exportando. Incrivelmente há quem os apoie e goste deles também. Nesta terra uma “presidenta” homenageou a mandioca, então nada demais é homenagear o jumento.
ResponderExcluirDar visibilidade para importância desse rústico rende muitas histórias. No entanto julgo que cabe uma informação extraída de experiência própria: É menos dolorida a queda de um coqueiro ou de uma mangueira do que de um jumento, a física nunca decifrou para este matuto. Parabéns pela homenagem ao trator, carro pipa... do Nordeste.
ResponderExcluirExiste uma possível explicação filosófica pro processo doloroso a que você se referiu: é que em quase tudo nesta vida, depois da queda tem sempre um coice, procedente de um bípede.
ExcluirEntão seria daí a origem do ditado: “além de queda, coice”.lkkkNelza
ExcluirBom dia Caríssimo!!!
ResponderExcluirExcelente. Fotografia perfeita e sem retoques.
Quando menino, em viagem da Bahia para São Paulo, fiquei impressionado no momento em que passamos por Itaobim (MG) e meu velho mostrou um abatedouro de jumentos às margens da BR 116. A mente da criança de 10 anos ficou martelando aquilo por muito tempo.
ResponderExcluirPois é, e jumentos bípedes perigosos descobrimos há pouco que são muitos...
ResponderExcluirRealmente o jumento está em extinção no Nordeste. Antes um animal valorizado e grande companheiro de trabalho do povo nordestino, hoje está a entrar em extinção graças a exportação de sua carne para o exterior e a sua troca por motocicletas. É o mundo dando suas voltas. Essa crônica me fez lembrar de Caxias (MA), principalmente a foto. Parabéns pelos seus escritos.
ResponderExcluirLembrando o Rock do Jegue, de Genival Lacerda, esse bichinho ainda vai nos morder.
ResponderExcluirPor enquanto, só está mostrando os dentes. Os jegues bípedes, é claro...
Luiz Andreola
Lembrei-me daquele jumento dócil que levou Maria e José a procura de um lugar para o nascimento daquele menino chamado de "Jesus". Bendito jegue. Dayse lanzac
ResponderExcluirHistórias, estórias, causos muito bons. Que nos fazem relembrar de certos asnos, sejam quadrúpedes ou bípedes.
ResponderExcluirA meritória campanha de adoção da Ufal, além de ajudar a preservar a família Equidae, talvez sirva, também, para elevar e melhorar o nível de algumas cabeças pensantes que por lá zurram.
Em meu tempo de criança, em União dos Palmares era famoso o Jegue do Nelito. Ai de quem se aproximasse do seu harém asinino. As mordidas e os coices comiam no centro. Os meninos mais afoitos, com feromônios à flor da pele, comiam o pão que o diabo amassou, correndo atrás das jumentinhas donzelas.
Para quem se destinava a Santana do Ipanema, lembro da recomendação para não se vestir de verde, sob pena de ser "comido" por algum afoito jegue faminto, inclusive o da estátua.
Realmente, o grande perigo atual, e que teima em nos atazanar, são os jumentos bípedes.
E bom demais tudo que você escreve e a conclusão não pode ser melhor concordo plenamente
ResponderExcluirExcelente narrativa sobre o jumento. Aliás, sobre os jumentos: bípedes e quadrúpedes. Faz-se leve e hilária a argumentação. Só senti falta da honrosa citação à cidade de Panelas, no agreste pernambucano. Onde servi nas trincheiras do BB. O local tem fama internacional, quiçá intergaláctica, pelo fato de ostentar uma estátua de um jerico bem na sua entrada. Além de produzir famosa festa no dia primeiro de maio, cujo mote principal é a corrida de jericos. Estive presente em algumas. Como na presente crônica, as corridas são muito divertidas. Com direito a animal empacado, quedas, acelerações de fórmula um, com arreios destacados. Pena que o animal esteja sendo relegado a segundo plano. E morto, sistematicamente. Merecia mais por tudo que fez para a civilização nordestina.
ResponderExcluirSem entrar no mérito dos dizeres da ciência, os asininos e muares já prestaram muitos e bons serviços à humanidade. Difícil é conter a ambição de alguns "matadores de jegues" para satisfazer as crendices de chineses que, aos poucos, não só estão levando nossos jegues como se tornando donos de grandes empresas brasileiras, sem falar do domínio de vários setores da logística...
ResponderExcluirNão bastasse todo esse cenário que explica o extermínio de nosso quadrúpede , ainda existe a história do matuto que resolveu “treinar” o seu jumento para sobreviver sem se alimentar. Indagado se a experiência tinha dado certo, respondeu: “não. Quando ele tava já se acostumando, morreu”.
ResponderExcluirDebaixo do queixo carrego uma cicatriz que é a marca registrada das minhas poucas habilidades em montar um jumento.
ResponderExcluir"Contínuo", assim como todo jumento, era arredio com quem não o sabia montar. Comigo não foi diferente. Jogou-me ao chão sem dó nem piedade e me deixou marcado para sempre.
Não tenho mágoas nem ressentimentos dele. Pelo contrário. Além das múltiplas tarefas que realizava no Sítio Mutamba, foi eficiente meio de transporte estudantil, para mim e outra penca de irmãos.
Minha burrice hoje é menor, em parte pelos relevantes serviços prestados por Contínuo.
Sou grato a ele.
Em que pese o brilhantismo da escrita, acho que você comete um erro na classificação sutil e até generosa que faz com os conhecidos bípedes de nossa(?) - infeliz - sociedade.
ResponderExcluirOutrossim, é uma injustiça compará-los com os quadrupedes , já que estes de nenhuma maldade são capazes, além de não saberem, sequer perceberem o que é corrupção, desonestidade e "otras cositas más", procedimentos tão costumazes principalmente por nossos políticos e autoridades.
Enfim, vale o prazer e a leveza de de sua descrição.
Acabei de ler seu interessante texto com ênfase no jumento.
ResponderExcluirFico surpreso com tanta habilidade no trato de tudo quanto é tema abordado. Como recompensa, vê-se que o seu público leitor é muito fiel, pois além de prestigiar o autor com a leitura de seus textos, toda semana eles fazem os seus comentários cheios de carinho e criatividade. Isto, por certo, representa a melhor demonstração de afeto e consideração, resultando em incentivo e motivação ao autor, para semanalmente executar o seu compromisso perante os seus leitores. Imagino a sensação de bem-estar que o autor não deve ter ao comprovar tamanha demonstração de apoio ao belo entretenimento. Parabéns e votos de voos sempre mais altos.
Com a introdução das motos, pilotadas por jumentos sem habilitação e muito menos sem capacete, trocou-se a tradição pela pressa e insegurança. Aí sobrou pro pobre do jumento, verdadeiro ícone do nordeste. Uma pena, mas ainda irá sobrar para as abelhas. Já existe mel falso...
ResponderExcluirPor falar do mel “alternativo”, está difícil encontrar algo sem uma versão mais barata, piorada, com efeitos colaterais imprevisíveis. Só tapando o nariz pra engolir sem vomitar.
ExcluirO jumento é um animal dócil, inteligente e dotado de grande senso de sobrevivência. Pena que não existam mais tutores - para utilizar uma linguagem bem moderna - de jumentos como antigamente, a exemplo de Nezinho do jegue, pacato habitante da pequena cidade de Sucupira, litoral da Bahia. A iniciativa da UFAL é louvável, porém carece de maior engajamento da sociedade. O texto já representa um sinal de alerta. Parabéns!!!
ResponderExcluirE eis que da crônica se concretizou uma profecia!!!
ResponderExcluirParabéns, pela crônica!
ResponderExcluirBela homenagem ao jumento. Pena que estão em extinção, junto com as abelhas.
ResponderExcluirA crônica me remete ao final da década de 1970 quando cheguei, de mudança, a Santana do Ipanema e me deparei com a aludida homenagem ao quadrúpede e seu bícepe tangedor, estrategicamente instalados em uma das praças da entrada da cidade. A história reconhece a relevância do jumento para o desenvolvimento do sertão alagoano. Mais um show de narrativa, Hayton. Parabéns!!!
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