quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Ainda bem, Jaguar!

Velho vive repetindo histórias porque ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória. Quando repete, no entanto, nem a história nem ele são os mesmos. Ainda bem.

Jaguar, um dos maiores cartunistas brasileiros, chorava numa sala de cinema em Brasília, cidade onde morava em 2006 com Célia Regina Pierantoni, pós-doutora em saúde coletiva. Tinham acabado de assistir ao documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr., reconstituição da vida e da trajetória artística de Vinicius de Moraes, reunindo imagens e depoimentos de amigos em comum com o Poetinha: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

Vendo-o cabisbaixo, comovido, alguém tentou puxar conversa: "Já lhe disseram que o senhor é a cara do finado Jaguar?" E as lágrimas secaram no mesmo instante, sob uma estridente gargalhada: "Mulher! Eu morri e ninguém me contou nada!"


Quem me contou foi o próprio Jaguar, sete anos mais tarde, numa manhã de domingo, enquanto aguardávamos o transfer que nos levaria ao aeroporto, na recepção de um hotel na Bahia.


Foto: Luciana Whitaker

Menos conhecido como Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, Jaguar foi escriturário do Banco do Brasil por mais de 15 anos. Seu primeiro chefe, Sérgio Porto (1923 – 1968), o Stanislaw Ponte Preta, publicou vários livros, todos ilustrados por ele: Tia Zulmira e Eu; Primo Altamirando e Elas; Rosamundo e os Outros; Garoto Linha Dura; Febeapá – Festival de besteiras que assola o País; Febeapá 2; Na terra do Crioulo Doido; Febeapá 3; A máquina de Fazer Doido e Gol de Padre.

Em 1969, junto com Henfil, Ivan Lessa, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral (pai), Tarso de Castro e Ziraldo, Jaguar fundou O Pasquim, jornal de sátira política que aprendi a admirar ainda adolescente, em 1972.


Conversávamos sobre as tiradas de Sig, o ratinho-mascote do jornal, inspirado em Sigmund Freud, o criador da psicanálise, quando ele me atalhou: “O rato era meu alter-ego, sempre em crise existencial, apaixonado pela atriz Odete Lara...”


Falamos sobre a editora Codecri (acrônimo de Comitê de Defesa do Crioléu), responsável pelo projeto Disco de Bolso: vender em bancas de jornal compactos onde, no lado A, um nome consagrado na MPB lançaria uma nova canção e, no lado B, desconhecidos ganhariam visibilidade na cena artística nacional. 


O primeiro disco revelou o novato João Bosco, com Agnus Sei, dele e de Aldir Blanc, “apadrinhado” por Tom Jobim com uma obra prima inédita: Águas de Março.  


O segundo trouxe Caetano Veloso no lado A (cantando A volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga) e, no lado B, o iniciante Fagner, apresentando Mucuripe, sua e de Belchior. 


Mas parou por aí. Para Jaguar, “o governo via naquilo algo mais político que musical e deu fim ao projeto”. Tem quem diga, no entanto, que o projeto merecia melhor gestão.

  

Conversamos ainda sobre a “gripe" que atingiu a turma de O Pasquim, ironia com que se justificou a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, inclusive sobre o "remédio" aplicado para atenuar os “sintomas”: alguns intelectuais (Antonio Callado, Glauber Rocha, Chico Buarque e outros) se juntaram para, com seus escritos, manter "respirando" o semanário.


Um desses colaboradores foi o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, que fazia questão de levar pessoalmente seus textos à redação do jornal. Para Jaguar, na verdade “o velho estava de olho numa boazuda com quem fui casado por uns 10 anos”. 


Numa tarde, encharcado de uísque, Jaguar cruzou por acaso com Drummond e "soltou os cachorros”, ameaçando-o, caso insistisse em dar em cima de sua mulher. O poeta nunca mais voltaria à redação, mas continuou mandando sua contribuição periódica para O Pasquim, que seguia sendo mutilado pela censura do governo militar com cortes cavalares de textos, cartuns e charges (até hoje ninguém pagou por esse tipo de crime hediondo cometido contra as gerações futuras!).

 

Jaguar despediu-se de mim com mais uma gargalhada, realçando um cinismo ácido, brilhante e escrachado ao mesmo tempo: “Como fui besta! Perdi a chance de entrar para a história sendo corneado pelo maior poeta da língua portuguesa!”


Besta fui eu (hoje me dou conta disso!), Jaguar, que fiquei constrangido em procurá-lo novamente nas vezes em que, mais tarde, fui ao Rio de Janeiro, apesar de ter recebido convite e guardar o seu cartão de visitas. 


Algum tempo depois, li numa entrevista que você estima haver bebido, em mais de 60 anos, "uma piscina olímpica de cervejas, sem falar nos destilados: uísque, cachaça, conhaque, rum, vodca, absinto, bagaceira, grapa, saquê, tequila..." 

 

Isso, aliás, explica a cirrose e o câncer de fígado que quase precipitaram o fim da estrada para o autor da coletânea de crônicas Confesso que Bebi - Memórias de um Amnésico Alcoólico


A última notícia que tive sua foi há sete anos, através do também cartunista Paulo Caruso, a quem conheci em São Paulo, em 2016, e que nos deixou o ano passado. 


Caruso me contou que você seguia "viciado" em livros e jornais de papel, jazz, futebol, biriba e cerveja... Mas sem álcool, é claro. “Jaguar diz que, quando quer ficar tonto, abraça e gira em torno de um poste...”.


Aos 91 anos, o lendário transgressor ainda resiste de pé feito uma vela acesa na escuridão (e no obscurantismo) da cena brasileira, ainda que a chama e o rugido já não sejam os mesmos. Mas a ironia, a irreverência e o traço continuam afiados. Ainda bem, Jaguar!

30 comentários:

  1. É muito difícil imaginá-lo junto com Sérgio Porto apensando um lote de cheques para remessa. Assim como você relata, o Pasquim foi para mim quase que um irmão mais velho, dando formação política e cultural à minha adolescência. Que bom saber que sua luz brilha teimosa. Dedé Dwight

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  2. 91 anos depois de ter bebido uma piscina olímpica... não fosse pela cirrose e o câncer, diria que ter sido curtido no álcool por tanto tempo lhe fez até bem. E eis que a célebre frase que capeia o blog veio à tona... "ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória"... e quantas memórias memoráveis! Sorte a nossa.

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    1. Segundo um amigo de boa memória, a "boazuada" ex-esposa de Jaguar, cobiçada por Drummond, era a poeta Olga Savary. Na conversa, ele não a mencionou, nem eu perguntei.

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  3. Ademar Rafael Ferreira4 de outubro de 2023 às 06:02

    O Pasquim faz muita falta em nossos dias, corria para banca de revistas no dia que chegava. Era um senhor time. Viva, liberdade de imprensa e de pensamento.

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  4. Bons tempos da era Pasquim... Apesar das muitas proibições, o recado, nas entrelinhas, traduzia muito mais do que os editores, do "Jornal Nacional" de hoje, imaginam... Até porque, à época, não éramos bombardeados pelas "tempestades mentais" que muitos dos que se apresentam como comunicadores, nos dias de hoje, tentam produzir em nosso raciocínio.

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  5. Boas e belas memórias. Que felicidade passar dos 90 já tendo tomado todas e ainda tomando algumas. Imagina se o álcool não fizesse mal.

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  6. Admiro sua memória e, da forma como consegue compartilhar suas histórias, ativa nossas próprias lembranças. Parabéns Hayton pelo texto gostoso de ler que nos faz sempre querer mais.
    Marina.

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    1. Por falar em minhas histórias, Marina, já esta disponível na “Amazon” a versão digital de meu novo livro, “Uma estrada e a lua branca”, reunindo o melhor que consegui publicar neste espaço nos últimos 12 meses, com comentários de mais de 70 leitores habituais.

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  7. Que abertura a desta crônica! Uma provocação ao viver e reviver cada momento, sempre enriquecendo a alma!
    E que sorte a nossa vc ter tantos momentos tão ricos e enriquecê-los de forma tão generosa para seus leitores!
    Pensa em usar o cartão de visitas e criar mais memórias com o Jaguar?! Imagino que seria bem rico ☺️

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  8. O Pasquim foi um ponto fora da curva na história escrita de nosso país. E para quem gostaria de reviver ou conhecer os bastidores daquele fenômeno, sugiro a leitura de "Rato de Redação - Sig e a história do Pasquim", de Márcio Pinheiro, que traz os altos e baixos do jornal no tempo da repressão, driblando a censura, com suas grandes sacadas e tantas outras curiosidades.
    A crônica acendeu os holofotes sobre um dos pilares daquele momento histórico, e ele, certamente, continua a sorrir de tudo que foi construído. Ainda bem, Jaguar!

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  9. Imagina O Pasquim hoje, nas mídias digitais, seria imbatível! Obrigado pelo texto e pelas boas lembranças que vieram junto. Abração, Gradim.

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  10. Amiga Hayton, suas crônicas, trazem para a nossa leitura a história de uma forma envolvente, relembrando de bons momentos, como se estivéssemos Nele. Mais uma vez, Parabéns.

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  11. Que texto maravilhoso! Chega dá gosto lê-lo. Através dele revivi bons momentos que não voltam mais. Obrigado pelo presente.
    Espero ler novos textos sobre o tema ao longo do tempo, sem perder a esperança de ler um livro seu com temática romântica ou autobiográfica. Grande abraço.

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  12. Eta! Com essa crônica fiz uma viagem retroativa à minha adolescência! Como eu gostava das charges e desenhos do Jaguar! Sempre muito boas. Inimaginável tentar imagina-lo sentado atrás de uma mesa no BB batendo carimbo em duplicadas! E, como sempre, a cor inicia perfeita de hoje, na qual ressalto no primeiro parágrafo as palavras “ninguém sabe o valor de um momento” que nos deixa o recado subliminar: aproveitemos todos, porque alguns irão se tornar memórias.

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  13. Mais uma crônica espetacular.
    Um banco que teve em seus quadros gente do quilate de Stanislaw Ponte Preta e Jaguar não daria errado nunca.

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  14. Relato e comentários deliciosos,inteligência resiste a qualquer época.

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  15. Bravo. Bravo. Bravíssimo… Digo mais… SENSACIONAL 🤝

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  16. Rapaz você me arremessou 50 anos atrás. Estou aqui relembrando. Que saudades daquele tempo.. Dayse lanzac

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  17. Muito obrigado por mais esse texto, caro Hayton.
    Abraço.

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  18. O Pasquim também foi meu beabá na construção de uma visão ou pouco mais crítica do mundo. Com muito bom humor, obviamente!
    Do Jaguar, lembro um frase antológica. Perguntaram a ele porque bebia tanto. Ele:
    - Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia!

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    1. Não tenho dúvida de que a mesóclise empregada escondia uma fina ironia a um dos mais célebres amantes de uísque de seu tempo: Jânio Quadros.

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    2. Você é amparo nesses encontros com ilustres nos aeroportos. O mais incrível é sua memória que mantém vivos esses inúmeros momentos. Você é o cara!

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  19. Quis dizer “você é campeão”

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  20. Quanta lembrança boa! Eu lia o Pasquim com avidez, às vezes refletindo e em outras gargalhando. Você relatou muito bem, via Jaguar, situações saborosas de uma época que não volta mais.
    Alcione Teixeira

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  21. Uma grande façanha, Hayton, compartilhar tempo e histórias com figuras tão relevantes para a nossa cultura. Agora a sua produção é um caldo bem bolado com pitadas de grandes mestres. O discípulo tem sua importância. É capaz de perpetuar as notas e rimas, com as quais fomos brindados um dia. Contaminado por todas estas cores vemos, então, um novo às. Daqueles que sobrevoam sobre uma quantidade enorme de saberes. Melhor para nós.
    Roberto Rodrigues

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  22. Já havia comentado em uma outra oportunidade que algumas pessoas deveriam ser eternas. Mais um, não é?

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    1. Você tem razão! Veja a pérola: “Gastei uma fortuna e no final não tinha nada. Podia ter gasto esse dinheiro em aperitivos.” —  Jaguar (cartunista), após se submeter a um check-up. Fonte: Revista ISTO É, Edição 1911.

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  23. Como já foi dito, o Pasquim faz muita falta. Mais uma excelente crônica para alegrar nossa semana. Já adquiri meu e-book na Amazon, e como esperado , está maravilhoso. Ao final da leitura classifiquei com as merecidas 5 estrelas.

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  24. A presente crônica é uma maravilha. Voltei à minha adolescência, quando comprava o Pasquim acho que semanalmente, acho, um tablóide maravilhoso escrito por grandes intelectuais da época. Ainda hoje tenho o compacto com a música "Coqueiro Verde" e papo com a diva Leila Diniz. Ótimas lembranças. Parabéns, Hayton!

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