quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Um especialista a mais

Essa coisa de especialista pra tudo que existe anda passando dos limites! 

Circula na Internet um anúncio publicitário de um cirurgião dentista oferecendo biodecodificação dental. Trata-se, segundo ele, de uma leitura da mensagem subliminar embutida nos dentes, seja lá o que isso signifique. 


Diz que, através de uma radiografia panorâmica, é possível ter acesso aos conflitos emocionais vividos, às heranças transgeracionais e à compreensão das relações humanas, buscando algo mais nobre do que o simples fato de viver melhor: o equilíbrio interior, o reencontro com a autenticidade, a integridade de ser, e “livrar-se das repetições que prendem”.

 

E quis ser mais objetivo: “o procedimento é uma espécie de chave para compreender e ajustar os relacionamentos, um caminho para libertação da culpa e do julgamento, um aprendizado da verdadeira responsabilidade individual, uma promessa genuína e verdadeira de vida…” 

 

Nem bem me recuperei do susto, corri até o espelho do banheiro para procurar indícios da tal mensagem subliminar em minha arcada dentária amarelo-café. Nada encontrei, juro! 


Resolvi caminhar um pouco para espairecer e dei de cara com outra peça publicitária única, colada num poste: o centro espírita “Prazeres do Além” propõe às viúvas em geral que experimentem momentos de prazer “com seus falecidos maridos”. E recomenda trazer uma cueca do defunto (limpa, presume-se, livre das “marcas de freio de bicicleta”). 

 

Reprodução/Redes Sociais

  

Para quem viaja de avião, ônibus ou trem, ou precisa pernoitar fora de casa, sabe-se que guardar dinheiro e cartões de crédito pode tornar-se um problema sério. Por isso existe o money belt, uma pequena bolsa de tecido com um fecho que se prende à cintura por baixo das calças ou da camisa. 

 

Se for dormir em hotel, óbvio, o viajante poderá guardar os pertences no cofre. Porém um especialista inventou o esconderijo perfeito, unindo as vantagens de um com as virtudes do outro: o brief-safe (cofre-cueca, em tradução livre). 

 

O cofre-cueca é um dispositivo comercializado por uma empresa norte-americana de equipamentos militares para guardar cédulas, documentos e outros valores num compartimento secreto de 10x25 cm, fechado por um velcro. Um detalhe “especial” na parte inferior permite que seja deixado à vista em qualquer lugar sem qualquer risco. Ninguém se atreve a mexer. Custa 10 dólares e vem na cor branca, com uma “marca de freio” na cor castanha. Só falta um borrifador com o odor característico artificial para atingir a plenitude estética e olfativa.  

 

Daqui a pouco vai ter brazuca negociando uma parceria com outra firma estrangeira que oferece um serviço cuja aceitação vem crescendo de forma assustadora: se o seu ente querido foi cremado e você não sabe o que fazer com as cinzas, pode pintar uma tela em preto-e-branco com os restos mortais e pendurá-la na parede. Preço a combinar, caso a caso.

   

Me contaram, aliás, que está sendo criada em São Paulo (com perspectivas de expansão para Brasília e Rio) uma startup bastante promissora. Se a pessoa está errada em determinada situação e pretende pedir desculpas, mas não tem coragem de procurar quem deve perdoar, contrata uma especialista nisso. A ideia é cobrar, via PIX, R$ 200,00 por um pedido de desculpas por telefone (ou mensagem), e R$ 600,00 por um pedido pessoalmente. Agora, sim, esse tipo de desgaste tem custo e preço!

 

E se alguém resolve cair na orgia depois do trabalho, sem deixar pistas de onde esteve (nem com quem), a plataforma disponibilizará um ônibus-leito devidamente equipado para curar enxaqueca, náuseas e queimação de estômago. 


A pessoa será hidratada com isotônicos e sucos variados, com açúcar mascavo ou adoçantes naturais, além de receber medicação intravenosa para acelerar a metabolização do álcool e outras substâncias tóxicas. O maior risco é encontrar lá dentro, se restabelecendo de outro bacanal, a própria cara-metade, que amanhecera com o mesmo propósito.

 

E enquanto se recupera dos estragos de ordem geral, um especialista cuidará de remover de suas roupas eventuais manchas de secreções, delineador, lápis de olho e rímel, com água, álcool e glicerina. Acetona e detergente, só no caso de batom. 


Como se vê, surgem especialistas pra tudo o que se imagina. E uma de minhas maiores frustrações confessáveis é não ser especialista em merda nenhuma. Até cogitei trabalhar como técnico de um laboratório de análises clínicas, mas desisti. Nunca levei o menor jeito pra coisa.

 

Hoje, metido a farejador de notícias do cotidiano, ando pensando em me aprofundar no que classifico de "jornalismo relativo". Se aconteceu, pode ser fato; se for mentira, mais ainda. Tudo depende da troca ou do troco, da verba ou do verbo. 


Quem sabe, viro especialista. Querendo, posso vender bem o que for publicar e, melhor ainda, aquilo que resolver não publicar. Afinal, um contador de histórias não deve se preocupar com a verdade. As versões por aqui costumam ser mais verdadeiras que a verdade. 


28 comentários:

  1. O velho ditado dizia que todo dia sai de casa um otário e um esperto, e às vezes eles se encontram. Nos tempos atuais, só tem se multiplicado a quantidade desses dois e, por conseguinte, as possibilidades desses encontros. Se colar..... Dedé Dwight

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pra cada malandro há mais de um otário. E eles, de fato, estão sempre se encontrando todos os dias.

      Excluir
  2. Amigo, mais uma vez, brilhante texto com intrigante reflexão! Quase sempre, tem gente para comprar essas bobagens dos especialistas. Essa da empresa que presta serviços de desculpas só pode ser uma piada.
    Você é um especialista em nos deleitar com suas crônicas.
    Forte abraço!
    Sandro Santos

    ResponderExcluir
  3. Diz o ditado,quem encontra uma besta,não compra cavalo

    ResponderExcluir
  4. O mundo está maluco, despido de seriedade, é o que acontece. Outro dia deparei-me , também, com a notícia de que um cidadão inventara uma cortina para se pendurar no nariz de modo a cobrir a boca, para poder comer de boca aberta ! Parabéns pela primorosa crônica Hayton.

    ResponderExcluir
  5. Nesse negócio de especialização a que mais preocupa é na medicina cada um tratando do seu pedacinho do paciente. Aí passa uma medicação para o seu pedacinho sem levar em conta o todo, como se o comprimido entendesse que direção tomar lá dentro do sujeito. E foi assim que tomei um corticoide que elevou a pressão ocular e quase me dei mal e fui tratar com outra especialista.
    Nelza Martins

    ResponderExcluir
  6. De uns tempos pra cá viraram moda os especialistas em criar notícias falsas. E junto vieram os especialistas e disseminar notícias falsas. Nesse caso, o estrago na sociedade tem sido estrondoso.
    Não teve jeito, foi preciso criar os especialistas em averiguar a veracidade das notícias. E eles não dão conta de tanta demanda.

    ResponderExcluir
  7. Eu lendo e tentando imaginar onde ia desaguar a criatividade; como ia juntar as pontas dessas especialidades. Kkk
    Mas vc finalizou muito melhor do que eu poderia imaginar.
    Para nosso deleite vc se tornou especialista em crônicas.
    Nelza Martins

    ResponderExcluir
  8. Cada veículo de comunicação tem o seu “poço” de especialistas de estimação, de onde eles catam a opinião que mais lhe interessa e mais lhe convém sobre assuntos que estão na ordem do dia.
    Sobre economia, os “especialistas” são capazes de “provar” que um índice qualquer muito ruim (inflação, PIB, etc) pode indicar que as coisas estão no rumo certo. Ou que um índice muito bom é a antessala do caos.
    Esses dias eles se superaram: com a queda do preço da carne, especialmente o filé mignon, o Estadão “achou” um especialista que “provou” que isso é muito ruim pros pobres, pois faz com que eles gastem dinheiro demais com um bem supérfluo e deixem de poupar para coisas fundamentais! Só acredito lendo!

    ResponderExcluir
  9. Ademar Rafael Ferreira20 de setembro de 2023 às 08:20

    Para aprofundar o debate tem o livro "Por que os GENERALISTAS vencem em um mundo de ESPECIALISTAS, de David Spstein. As informações trazidas no texto nus leva a ratificar que "o remédio de um doido é outro na porta. Valeu.

    ResponderExcluir
  10. Pensando cá com “meus botões” : será esse cofre cueca invenção daquele político brasileiro, que guardava, não que era dele, mas o do povo brasileiro?

    ResponderExcluir
  11. É cada uma!
    Cada dia uma surpresa, com tanto besteirol que tentam empurrar na gente e levar, mole mole, o nosso suado dinheirinho.
    Os números iniciais do telefone, para o contato com as viúvas, são sugestivos para jogar no bicho: veado, dobrado.
    As saudosas, antes do prazer, poderão até indagar ao "de cujus" se levou alguma frustração para o além ou se deve, depois do desmaio cuecal, procurar uma banca.
    No frigir dos ovos, como diz amigo meu: tudo isso é isso mesmo e quanto mais principalmente. Entendeu? Não! Deixa para lá, então.
    Também estou aprimorando a minha especialidade, em PN.

    ResponderExcluir
  12. Sempre uma diversão suas crônicas, meu tio. Kkkkkkkkkk. Bom dia. Com carinho, Feijãozinho

    ResponderExcluir
  13. "Sou especialista em generalidades", dizia Jô Soares.

    Será que ele disse mesmo.

    Eu ouvi dizer e acredito.
    Então, é verdade...

    Será?
    Sei lá...

    Luiz Andreola

    ResponderExcluir
  14. Senti um alívio quando o Centro Espírita pede que se leve apenas a cueca do falecido.
    Pior seria se tivesse que levar o próprio “falo” do defunto.
    Aí todos nós correríamos o sério risco de, a exemplo do marido de Perpétua, na novela Tieta, ter o nosso órgão amputado para futuras necessidades da viúva.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Lembro dessa novela. Salvo engano, o nome do marido de Perpétua era Aguilar!

      Excluir
  15. Inquietações muito legítimas. Afinal, como bem elencado no texto, as situações são, no mínimo, estranhas. Causam grande perplexidade na maioria. Que não tem muito o que fazer ou contra-argumentar. Ainda bem que a constância de tantas novidades traz o costume. Até que haja novo enfrentamento, de uma nova especialidade criada ou inventada. Mais uma vez, o olhar crítico do autor percebe, debruça-se, e consegue esquadrinhar algumas visões bem elaboradas -- porque fundamentadas.
    Roberto Rodrigues

    ResponderExcluir
  16. As invenções, em geral, se propõem a melhor a vida das pessoas, o crescimento das corporações, o desenvolvimento das comunidades e muitas outras coisas que valem a pena conhecer e utilizar. Então, vamos inventar, ou melhor, descobrir novas soluções, já que "na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Ocorre que Lavoisier se viraria no túmulo se soubesse no que se transformou a criatividade de alguns "gênios".

    ResponderExcluir
  17. Hahahahahahaha
    É muita especialidade!
    Todas me causam inveja, pois também não consegui me especializar em nada (nem em nihilismo!).

    ResponderExcluir
  18. Muito bom, Hayton! Como diz Jessier Quirino, “ nesse mundo tem gente pra tudo! e ainda sobra um pra tocar gaita”.

    ResponderExcluir
  19. Viver em nosso mundo, de fato, tornou-se uma "especialidade". Com tantos especialistas que oferecem seus serviços por aí, nossa vida é "produto especial" e especializado... Talvez, até, uma "reserva especial", como se fosse um bom vinho, produzido por "especialistas"...

    ResponderExcluir
  20. Especialista em crônicas você já é. Quanto aos demais, como diz um caipira, depois que inventaram a debulhadeira de milho eu não duvido de mais nada. Já o dentista, esse está só procurando mais uma boquinha.

    ResponderExcluir
  21. Pense num cronista com uma diversidade de assuntos e uma criatividade inigualável! Parabéns amigo.

    ResponderExcluir
  22. Especialistas, especialistas, isso só lembra a Globo quando quer criticar algo ou alguém importante. Já dizia a vovó Filó: “O problema com especialistas é que eles não sabem o que não sabem.”

    ResponderExcluir
  23. Relato perfeito dos especialistas em coisa nenhuma.E parabéns pela criatividade, amigo!

    ResponderExcluir