quarta-feira, 17 de julho de 2019

Cabeça de mãe


Faltava energia às 10 horas da noite de terça-feira, 26 de fevereiro de 1958, quando ele nasceu na maternidade do Hospital São Vicente de Paulo, em Itabaiana, na Paraíba, berço de grandes artistas como Zé da Luz, Sivuca e onde vive, atualmente, o grande Jessier Quirino. 

Era uma criança tão feia que assim que a energia voltou o médico foi conferir se por acaso não teria jogado no lixo o pimpolho e deixado a placenta nos braços da mãe que, aos 19 anos, exausta, recuperava-se do esforço sobre-humano feito para expulsar aquela respeitável caixa craniana. 

Nas 48 horas seguintes, aguardou-se para ver se não brotava algum apêndice caudal na figurinha cabeluda de pouco mais de 4 kg, chorona e de olhos tristes, que começava a bisbilhotar o universo em sua volta, sem entender de onde vinha nem para onde estava indo.

Era humano! Uma santa teria soprado aos seus ouvidos: “Calma! Só dói assim na descida e na subida; aproveite o vôo e boa viagem.”

A mãe jura que exageram quando tocam nesse assunto. Cabeça de mãe é tudo igual. Ela mesmo contou outro dia que, ao receber o filhote para amamentá-la pela primeira vez, indagou da freira responsável pelo berçário se não teria ocorrido alguma troca de bebês quando a luz apagou. O correr do tempo, o mingau de amido de milho, a tapioca, o cuscuz, o futebol e as braçadas em açudes e rios, melhoraram bastante a proporção entre cabeça, tronco e membros daquela criatura. 

É claro que a mãe até hoje é grata ao filho porque sem querer facilitou a chegada suave dos sete irmãos seguintes. Interessante notar que não havia nada hereditário que justificasse o cabeção da criança. Nem mesmo uma possível ascendência cearense, região pra lá de distante do Oeste maranhense e do Agreste paraibano onde viveram seus ancestrais paternos e maternos. 

Passados os dois primeiros dias, o pai foi ao Cartório Santiago Bandeira fazer o registro do nascimento tendo em mãos um documento fornecido pela maternidade onde escrito que se tratava de uma criança de cútis morena. Anos depois, um cunhado seu, pouquinho mais moreno, achou de perturbar o juízo da sogra exibindo o próprio registro onde consignado que nascera de cútis branca. A resposta foi curta e afiada feito coice de porco: “pelanco de urubu também nasce branco!”. De novo: cabeça de mãe é tudo igual.

O costume execrável de misturar nomes de pai (Agostinho) e mãe (Eudócia) para nominar recém-nascido aqui não daria certo mesmo: Agostócio ou Eutinho seria cruz de pau-ferro, pesada demais para os ombros do inocente. O pai até poderia homenagear — não quis assim — dois ídolos chamados Orlando: o quarto-zagueiro vascaíno, que integrava a seleção brasileira que viria a ser campeã mundial na Suécia meses depois; e o Silva, o cantor das multidões da época de ouro do radio, grande intérprete de “Aos pés da cruz”, “Carinhoso” e  “Rosa”.

“Hayton”, na verdade, é sobrenome lá para as bandas do Reino Unido. Já o primeiro sobrenome é na verdade nome próprio nativo, de raiz: “Jurema”, que em tupi significa “arvore de espinhos de cheiro desagradável”. É planta comum no Nordeste, cujas folhas podem dar origem a um chá narcótico e alucinógeno. “Rocha”, último sobrenome, seguramente veio da Península Ibérica com os expatriados para Pindorama.

Ao resolver homenagear um colega de trabalho (Hayton Vidal dos Santos) que fora seu guru-orientador nos passos iniciais da carreira no Banco do Brasil, o pai não imaginava que o filho seria chamado de várias formas pelos professores a cada primeiro dia de aula nas escolas em que estudou: Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, Uai-ton etc. Menos de Hayton (ái-ton). Só depois de breve explicação ninguém mais esquecia daquele nome, bem mais complicado, por exemplo, do que: Ciço, João, Raimundo, Tonho ou Zé. 

O nome esquisito e o crânio levemente avantajado eram pratos cheios para "bullying", mas desde cedo o menino aprendeu a se defender de quem se atrevesse a lhe apelidar. Dotado de altura e força acima da média dos moleques de sua idade, possuía, além disso, respostas afiadas e cruéis na ponta língua para calar os buliçosos, a quem faltava coragem e imaginação para lhe chamar, por exemplo, de: Caixa d’Água, Estoura Gola, Lua Cheia ou Maçã do Amor.

Conseguiu atravessar ileso a infância e a adolescência, sem que lhe colassem nenhum apelido digno de nota. Mas, início dos anos 90, num belo dia em que acabara de mergulhar na piscina da AABB Salvador, uma irreverente cidadã carioca, tia de grande amiga sua, depois de uns bons goles de cerveja resolveu cutucar o gatão felpudo no esplendor de seus 33 anos para ver o que acontecia: “e aí, Cabeção, a água está boa?”

Ele fez cara de besta mas respondeu com outra pergunta, na lata: “com qual delas a madame está falando?” A própria sobrinha Sílvia, com o marido, vulgo Gasolina, ambos numa mesa com pelo menos dez pessoas, quase racham as costelas de tanto rir da coitada da Tia Odete. E entre acarajés, pilombetas e vatapás, a cerveja gelada rolou até a pôr do sol. Ainda não havia bafômetros estraga-prazeres a espreitá-los pelas ruas da Bahia.  

A vida é assim mesmo.  Quem tem orelha de abano, nariz de batata, olho de jipe ou boca da noite não escapa da zoação geral. Ser cabeçudo, porém, é o que mais tira um sujeito do prumo, principalmente depois de velho, quando a barriga cresce, os pelos caem e as canelas afinam.

Mas chega a hora em que o sujeito se dá conta de que tudo isso não passa de coisa de sua própria cabeça. É quando a vida lhe dá de presente mais um neto geneticamente perfeito, parecendo um pirulito cabeludo. E a mãe acha lindo. Tudo igual.


quinta-feira, 11 de julho de 2019

Há sempre um nome de mulher


Ele ainda tentou segurar na garganta o choro enquanto ouvia “Marina”, de Dorival Caymmi, interpretada por Nana Caymmi, que, a seu pedido, eu havia colocado no toca-discos:
— Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota.
— Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos.
Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí.

Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosamente deixou o sítio “Maravilha” onde nasceu (zona rural da pequena Colinas) para morar numa cidade maior, o que seria fundamental para o desenvolvimento de todos os seus “afilhados”. 

Meu pai, Agostinho, era um deles.  Por conta de tanta admiração e respeito, em março de 1958 não mediu esforços para fazer uma traumática viagem da Paraíba ao Maranhão, levando-me para ser batizado pelo irmão-ídolo.

Passados mais de 60 anos, minha mãe prefere não lembrar da experiência de voar com uma criança com apenas 20 dias de nascida, vomitando de meia em meia hora, com dores de ouvido, reflexos das mudanças bruscas de pressão e da turbulência de um bimotor DC-3 onde passageiros bebiam e fumavam em quase todas as poltronas da aeronave.  

Mas voltemos à música que, 30 anos depois de meu batizado, emocionava Padrinho Enoch em sua rede de algodão. “Marina” é uma das faixas do álbum fonográfico duplo “Há sempre um nome de mulher” que eu lhe trouxe de presente em janeiro de 1988, quando viajei de Maceió até Caxias para rever tios e primos. 


No ano anterior, em ação de marketing institucional muito bem concebida, o Banco do Brasil patrocinara a produção do álbum duplo temático com canções intituladas com nomes de mulheres míticas: Amélia, Ana Maria, Aurora, Carolina, Chica da Silva, Conceição, Dora, Doralice, Helena, Isaura, Lígia, Luciana, Luiza, Maria Betânia, Maria Candelária, Madalena, Rita, Rosa Morena, Yolanda, entre outras.

Foram gravadas interpretações memoráveis de um timaço da MPB: Ângela Maria, Beth Carvalho, Cauby Peixoto, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Emilinha Borba, Emilio Santiago, Fágner, João Nogueira, Maria Bethânia, Marlene, Martinho da Vila, Miúcha, Nana Caymmi, Nélson Gonçalves, Paulinho da Viola, Pery Ribeiro, Tito Madi, Tom Jobim e outros.

Homenagear as mulheres forjadas no coração de compositores e poetas em si já era algo inédito e ganhou mais densidade quando passou a integrar uma campanha meritória: toda a arrecadação com a venda do álbum seria destinada à criação de um banco de coleta de leite materno, através da Legião Brasileira de Assistência, para distribuição entre crianças carentes privadas desse alimento básico numa etapa crítica da vida, começo de tudo.

Para mim, na época recém-graduado em economia e simples curioso em marketing, grandes organizações como o BB deveriam sempre priorizar campanhas institucionais daquele tipo. São essas que consolidam na mente das pessoas uma marca, e não a oferta comum de produtos e serviços via TV, revistas e jornais, típica de fabricantes de alimentos industrializados, automóveis, bebidas, cosméticos, roupas e outros bens de consumo. 

Amante dos discos, dos livros e, em especial, do futebol, Padrinho Enoch acompanhou mesmo de longe, pelo rádio, o Vasco tornar-se gigante com um time extraordinário, considerado dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória. Em 1948, inclusive, foi o primeiro clube brasileiro a conquistar um torneio internacional fora do país: o Campeonato Sul-Americano, que deu origem à atual Copa Libertadores.

Bateu uma tristeza danada quando recebi em Maceió a notícia de que Padrinho Enoch havia sofrido um infarto fulminante, aos 66 anos, sentado na mesa em que trabalhava como contador. No começo de março de 1988, certamente ainda lhe doía a perda de Mãe Sussú, minha avó, que também partira havia menos de um mês.

Depois de sua morte, não mais voltei à Caxias. O álbum duplo “Há sempre um nome de mulher” que lhe dei foi o jeito inconsciente e antecipado de retribuir em vida o que dele herdaria no seu inventário de bens inestimáveis: o amor pela leitura, pela música e pelo Vasco da Gama — a cruz (de malta) que carrego no peito desde criança.

domingo, 7 de julho de 2019

Pode ser a gota d’água


Ontem, o genial João Gilberto, músico e cantor cultuado no mundo inteiro como um dos pais da bossa nova, descansou do inferno em que estava vivendo, marcado por problemas financeiros, desavenças familiares e disputas judiciais. A saúde agravou-se desde a perda da amiga e ex-mulher Miúcha, também cantora, que partiu no final do ano passado. Com "Chega de Saudade", disco do final dos anos 50, João Gilberto inspirou e abriu espaço para uma nova geração de talentos como seu ex-cunhado, irmão de Miúcha. 

Daquela nova geração de talentos, em 1968 apareceu lá em casa um compacto simples  — para quem não conhece, pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de uma lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. Disseram-me que se tratava de alguém com mais futuro do que todos aqueles cabeludos da jovem guarda: chamava-se Chico Buarque de Holanda. 


Tinha lá minhas dúvidas. No final dos anos 60, começava a escutar na Rádio Espinharas de Patos(PB) canções como “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”, de Roberto Carlos. Mas ouvi o bom conselho que me deram de graça e nunca mais deixei de prestar atenção naquilo que fazia Chico. Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo, que mesclava questões sociais, românticas e políticas.

Pouco mais de meio século depois, embora seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, Chico vem sendo apedrejado nas redes sociais, nas ruas, nos bares, pela mesma intolerância e ingratidão de que falava em “Geni e o Zepelim”.

Isso me faz lembrar a avalanche de pedras também  lançadas sobre Pelé, no início dos anos 70, porque não usava de seu prestígio universal para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi ainda apedrejado porque garantiu que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Nesse ponto, aliás, desde então quem é derrotado em eleições quase sempre dá razão a Pelé.

Quem apedrejava Pelé não se dava conta de que agredia um herói na acepção do termo, ou seja, alguém que mudava o rumo da história de uma nação e que será para sempre lembrado por seus feitos na arte em que reinava soberano.

Anos depois, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao ser chamado a opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de cortar o atacante Renato Gaúcho — o jogador, junto com o lateral Leandro, caiu na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa México 1986 —, foi pedagógico: “Eu não preciso dele pra casar com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

Naquilo que faz, Chico é nosso Pelé e, como diria Saldanha, também não preciso dele pra casar com minha filha. Nem tenho o menor interesse em suas preferências religiosas, políticas ou sexuais. Meus netos, sim, precisam ouvir dele estórias como a daquele país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, onde na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa já com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

Essa criança cresceu. Homem feito, desiludido com o futuro da nação do faz-de-conta, um dia bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música. E acabou no céu como se fosse um bêbado a flutuar no ar feito um pássaro. A seu pai restaria a saudade, que doía mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto do filho que já morreu.

Aos 75 anos, Chico — como eu ou você — tem o direito de fazer o que bem quiser da vida, inclusive o de vestir a camisa que lhe parecer mais confortável. Sabe mais que ninguém que os dois grupos que hoje dividem a cena política na nação do faz-de-conta acreditam estar sempre certos. Ou se está com eles ou contra eles. Cultivam a intolerância como consequência natural de suas convicções. Não têm adversários, mas inimigos.

Em tempos de escassez cultural, quando tantas músicas e livros descartáveis são despejadas pela mídia na cabeça das novas gerações, assistimos a um espetáculo dantesco de “olho por olho e dente por dente” que daqui a pouco pode transformar a nação do faz-de-conta num paraíso tropical de cegos e banguelas. Mas a obra de Chico Buarque de Holanda precisa ser preservada. Está acima de todos nós, inclusive dele mesmo. É patrimônio cultural da humanidade.

Toda essa confusão pode acabar sendo a gota d’água. A qualquer momento, Chico pode pedir para deixarem em paz seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! —, apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e desaparecer. E aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer.


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Zelito


Dar uma gargalhada, daquelas de duas ou três repetições, com dor na barriga e risco de incontinência urinária, a gente só consegue quatro ou cinco vezes por ano e olhe lá. Mas há quem consiga isso quase todo dia.

Guardo na memória uma galeria de tipos inesquecíveis, dignos do realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez (1927 - 2014). Um deles é Zelito, menos conhecido como José da Silva, ex-funcionário do Banco do Brasil com quem convivi na agência Maceió-Centro, em meados dos anos 70, que possui cadeira cativa nesse seleto time.

O avô de Zelito, no primeiro terço do século passado, seguro de que fazia um bem inestimável ao neto, chamou o menino no quintal, pigarreou, cuspiu dentro de sua boca e vaticinou:

— Meu neto Zelito, pode engolir o cuspe que você vai ficar curado de todas as doenças do mundo, ouviu?!
E a criança sobreviveu. Às gargalhadas, contava isso aos colegas, tempos depois, na maior naturalidade.


Técnico agrícola dotado de inteligência bem acima da média, logo após ingressar no banco virou fiscal de operações rurais em Palmital, Oeste do Paraná, pequena cidade em que trabalhou por alguns anos. Retornou para o Nordeste transferido para Alagoas, uma das regiões mais desiguais do planeta, onde o baronato do açúcar ainda dava as cartas como donatários de uma das mais paradisíacas capitanias hereditárias. 

Zelito era brilhante quando discorria sobre o absurdo de brigas por terras num país com dimensões continentais. Para ele, o solo só servia para sustentação das plantas, que a rigor nem disso precisavam para crescerem e frutificarem. 


Deve ter ouvido falar muito de disputas que acabaram em mortes no interior de Sergipe onde nasceu. Para ele, fartura na mesa e paz no campo tinham nome: hidroponia, técnica de cultivar plantas sem solo, onde as raízes receberiam uma solução nutritiva balanceada com todos os nutrientes essenciais. Um dos principais benefícios seria o incremento na densidade de plantas por metro quadrado de cultivo. 


Era genial também quando defendia o plantio de lavouras consorciadas (gramínea e leguminosa) a pretexto de fixar o nitrogênio atmosférico, quando, na verdade, queria convencer usineiro e grande fornecedor de cana-de-açúcar de que era bom para todos deixar o bóia-fria plantar um pouco de feijão de corda no meio dos canaviais para consumo de alguma proteína vegetal por sua família.



Ria de tudo e de todo o mundo, escancaradamente, apesar de lhe faltarem os incisivos centrais superiores. Hoje, está bem mais elegante, com o "teclado" sem falhas, devidamente corrigido. 

Na época em que bancário endividado era pleonasmo, Zelito vivia seus apertos e orientava sua mulher a, todo mês, fazer uma feira "de mercearia" robusta numa cooperativa de consumo que havia em Maceió, que só recebia no mês seguinte, por meio de consignação em folha de pagamento. 


Certo dia chegou ao trabalho carrancudo, aparentemente tenso e, no meio do salão do setor de operações, onde haviam pelo menos 30 colegas, falou alto e em bom tom pra quem quisesse ouvir:

— Estou num dilema danado: não sei se deixe a mulher ou a cooperativa — e caiu na maior gargalhada.

Muito espirituoso, vira-e-mexe Zelito também criava trocadilhos, embora cada um pior que o outro. Do tipo: "nesse país, cana dá?" Ou então: Seu Grava tá?”, “o gato mia, já o methiolate.” E perturbava os coitados dos menores estagiários com um dos mais infames: “você é o tal que só usa lifeboy ou você é o boy que só usa luftal? É de proveta ou é natural.”


Havia nascido na Inglaterra Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”. Estima-se que, desde que a menininha inglesa veio ao mundo, em 1978, cerca de dez milhões de pessoas tenham nascido até agora por meio de fertilização “in vitro”. Só Zelito mesmo seria capaz de associar o cargo novo criado pelo banco (Menor Estagiário) com a técnica médica revolucionária descoberta há mais de meio século.


Seus relatórios de fiscalização eram pérolas de conhecimento de causa mas sem qualquer lapidação estética. A ponto de, certa vez, prestes a concluir um trabalho, inserir entre parênteses no rodapé: “a tinta da fita acabou, mas, depois da troca este laudo segue, no verso”. E a vida seguiu na batida de sua "Remington", entre gargalhadas e trocadilhos.

Conversei com ele outro dia e fiquei feliz ao constatar que continua muito bem-humorado, lúcido, transpirando entusiasmo por todos os poros. Aos 90 anos, garante que vai quebrar o recorde de seu avô que lhe “curou” de todos os males e viveu até os 106 anos porque “doença ele não tinha, mas Frankstein”. E com mais esse trocadilho de doer, caiu numa sonora e contagiante gargalhada.


Fica no Mediterrâneo o paraíso dos centenários. A Sardenha, região autônoma da Itália formada por mais de 350 municípios, é a campeã mundial de longevidade, com um percentual de habitantes que passaram dos 100 anos três vezes maior do que no resto do mundo. Genética e hábitos saudáveis já foram apontados como principais componentes desse privilégio. Recentemente, pesquisadores encontraram mais uma explicação: por trás de tantos anos de vida, estão boas gargalhadas todo santo dia.

A origem dos "Silvas" é controversa. Há uma corrente que diz que o sobrenome surgiu no Império Romano para denominar habitantes de matas ou florestas  silva, em latim, é "selva".


Nunca se sabe, mas é possível que nos idos de 1500, na frota de Pedro Álvares Cabral que aportou na Ilha de Vera Cruz, tenha migrado da Sardenha a cepa que deu origem ao já lendário Zelito. 


segunda-feira, 1 de julho de 2019

Sem confusão, qual é a graça?


O tal do VAR (do inglês: Video Assistant Referee) anda deixando o futebol cada vez mais sem graça, insosso, morno. VAR, para quem não sabe, é um assessor de luxo que analisa comendo pipocas as decisões tomadas pelo árbitro principal de uma partida de futebol com o uso de imagens de vídeo. Ainda não faz parte das regras do jogo, mas, daqui a pouco a sua incorporação deverá ser julgada pela International Football Association Board.

Andei vendo alguns jogos do Brasileirão e da Copa América e penso que a fogueira que sempre aqueceu o futebol tende a virar cinzas com o anticlímax proporcionado pelo VAR. Em tese, a tecnologia aplicada deveria ser em benefício do próprio esporte, como é no vôlei, automobilismo, natação, tênis por exemplo. Não é. Emoção e razão são água e azeite: não se misturam de jeito nenhum, pelo menos em algo que, antes de tudo, é adrenalina pura.

Mesmo o vascaíno, acostumado com arbitragens esquisitas — tanto quando seu time enfrenta Flamengo ou Corinthians, como ao ser beneficiado em pênaltis marotos ao atuar em São Januário —, nota que o futebol anda perdendo a graça quando um joelho ou um pé à frente determina impedimento e invalida um gol, frustrando não só a torcida que acabara de urrar pela desgraça do adversário, como também o atleta em seu esforço para bem executar sua arte.

É duro ver o árbitro, por cinco ou seis minutos — que nunca são totalmente acrescentados antes do final do jogo — depois do lance que validara a olho nu, voltar atrás e recomeçar a partida como se nada tivesse acontecido, desgastando a todos, inclusive os torcedores no estádio ou pela TV, que não sabem se vibram ou sofrem com o mesmo lance.

Determinados eventos — se é que vocês me entendem — não resistem a tanto tempo de paralisação nem quando os envolvidos ainda estão cheios de hormônios. O sangue esfria. Pior que os atletas e os treinadores já se deram conta que, em qualquer lance duvidoso, podem cobrar o uso do VAR. Pressionam dentro e fora do campo e o árbitro acaba mais perdido do que surdo em bingo de cartela cara.

E quem garante que um árbitro principal com interesses inconfessáveis vai aceitar o alerta da mesa do VAR se “seu” time correr o risco de ser prejudicado numa análise mais detalhada de um lance? É só fingir que nada escutou e sacolejar as mãos no típico “segue o jogo” que fica tudo por isso mesmo. Ou, se quiser manter o resultado parcial de uma partida, basta paralisá-la com várias simulações de auscultas ao VAR.

Basta conferir se a bola entrou ou não, em caso de gol. No mais, é evidente que se insistirem nisso, o nível de sofisticação do sistema tecnológico irá evoluir tanto que daqui a pouco um beiço de pulga ou um cabelo de sapo poderá deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial a partir de um estádio de futebol. Ficará mais perigoso do que barbeiro com soluço.

É preferível tolerar aquela discussão interminável das noites de domingo e segunda-feira, onde analistas passam horas discutindo sobre as possíveis alternativas para um passado cuja versão final o árbitro já bateu o martelo no calor da disputa e no sopro do apito.


Do jeito que as coisas andam, acabarão nos roubando até o direito de sentir-se injustiçado ou de terceirizar a culpa pelos nossos fracassos. Aí o futebol só terá graça naqueles últimos campinhos de terra batida onde a emoção goleia a razão, os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa de árbitro, bola “prensada” e da defesa, falta só se houver escoriações generalizadas ou se falar na mãe e ganha quem fizer o último gol antes do anoitecer.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Só eu sei


Era tarde demais quando percebi que condenava minha mulher e nossos filhos a sofrerem com os transtornos de sucessivas mudanças ao optar por uma carreira marcada por desafios pelo país afora. Só eu sei o quanto isso mexeu com todos nós.

Poderia ter escolhido outra profissão? Claro. Teria sido melhor ou pior? Não sei. Repito o que escrevi outro dia: ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir. 

Sobrevivemos, todos. Mas só eu sei o quanto pedi a Deus toda noite para que fossem ao meu encontro todas as pedras atiradas pela vida na direção de minha família. E para que nunca nos faltassem o feijão nem o entusiasmo para sonhar com dias melhores. 


Só eu sei da angústia quando mudamos para Salvador, em maio de 1999, após três anos e meio no Recife. Lídia, filha caçula, tinha apenas 14 anos e chorava dia e noite a ausência de pessoas e lugares que foram ficando pelo caminho. 


Doía tanto quanto doeu para seus irmãos mais velhos quando deixamos Maceió pela primeira vez para morar em Brasília, em 1988. Ou quando voltamos para Alagoas numa situação bem diferente daquela que vivíamos – Dona Madalena, minha sogra, já não estava neste mundo. Duas mudanças ainda aconteceriam até chegarmos a Pernambuco, em 1996.

Pouco depois da virada do século, em abril de 2000, já surgiam rumores de que eu seria transferido de novo, agora da Bahia para o Distrito Federal. E o desassossego reaparecia com todas as suas cores e dores.

Foram momentos de aflição em Salvador até que algumas amigas de prédio, escola e igreja convidaram Lídia para um retiro espiritual num fim de semana. Nos dias que antecederam ao encontro religioso, pediram aos familiares que escrevessem algo para reflexão dos participantes.

Eu precisava daquela oportunidade mais do que ninguém. Em uma hora, se muito, lacrei envelope com uma carta que ela guarda até hoje  onde pedia perdão por tanta dor, mesmo sendo inútil, já que não podíamos retroceder o filme de nossas vidas e vê-lo de outro jeito. 

Em minha cabeça, era como se estivesse escrevendo não só para ela, mas para toda a minha família:


“...Perdoe-me por tê-la arrancado tão cedo de Maceió, do convívio com tios e primos, e a levado à distante e seca Brasília.

Perdoe-me por tê-la feito aprender a ler e a escrever, entre ladeiras e cabritos, na chuvosa e feia Porto Calvo.


Perdoe-me por tê-la levado, da noite para o dia, para a calorenta Recife, fazendo-lhe passar por tantos colégios, cadernos e livros.


Perdoe-me por tê-la feito, inesperadamente, largar seus amigos do Colégio Boa Viagem, abrindo no seu coração uma ferida enorme chamada saudade.


Perdoe-me por tê-la trazido comigo para Salvador, sem poder lhe dar a certeza de que nunca mais nos mudaremos.


Perdoe-me por não ser o pai com a vida pacata que você merece e por não saber abraçá-la e beijá-la, todo dia, como prova do amor e do orgulho que sinto em lhe ter como minha filha.


Se depois disso tudo lhe sobrar piedade, minha filha, peça a Deus que me conceda a chance de dar a sua filha – minha neta –,  quando um dia ela chegar, tudo aquilo que não fui capaz ou não pude oferecer a você até aqui.”


No “Desespero da Piedade”, de Vinicius de Moraes – 1913 a 1980 , quis buscar inspiração para tentar aliviar a angústia que descia sobre nós, como uma nuvem carregada, toda vez que os ventos de uma nova mudança varriam a nossa casa.  

Deu certo. Talvez nem tanto pela carta, mas pela conversa que ela deve ter mantido com todos os santos da Bahia no isolamento daqueles dois dias, pedindo que a tempestade passasse o quanto antes.


Mudamos para Brasília meses depois. As lágrimas secaram apenas quando Lídia concluiu o ensino fundamental, formou-se em Medicina, casou e, em 2008, foi morar com o marido bem longe de casa – primeiro, no Rio de Janeiro; depois, nos Estados Unidos –, onde enfrentaria os primeiros desafios de sua trajetória profissional.

Quatorze anos após aquele retiro espiritual em Salvador –  “Dia das Mães” de 2014 – ela nos visitaria em Brasília trazendo numa pequena caixa uma grande notícia: uma chupeta, indício de que sua primeira filha estava a caminho.

Eu só precisava daquele pretexto para aposentar, 40 anos depois de minha chegada no Banco do Brasil, como menor aprendiz. Decidi ali mesmo passar boa temporada com Magdala no exterior, ajudando nossa filha em sua primeira experiência como mãe. 

Era a chance que a vida me reservara de fazer pela neta que chegaria no final do ano, em seus primeiros seis meses de vida, o que não fui capaz ou não pude fazer como pai.

Logo depois do Natal de 2014, via o dia gelado clarear pela vidraça da sala de espera da maternidade do Massachusetts General Hospital, em Boston, quando lembrei  "Esquinas" – canção lançada em 1984, ano em que Lídia nasceu –, composta pelo ex-líder da banda LSD (Luz, Som & Dimensão) que embalou algumas noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida do início dos anos 70, época em que, entre 14 e 16 anos, ainda era cedo demais para perceber o que é que a vida queria de mim.

"...Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei...
Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar! Sabe lá...
E quem será nos arredores do amor que vai saber reparar que o dia nasceu?
Só eu sei os desertos que atravessei. Só eu sei... 
Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar! Sabe lá... 
E quem será na correnteza do amor que vai saber se guiar?
A nave em breve ao vento vaga de leve e traz toda paz que um dia o desejo levou.
Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei... (Djavan)

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Antes que as luzes apaguem

Muita coisa no mundo é estranha demais para acreditar, mas nada é tão estranho que não possa ter acontecido. É ficção parte da história que conto aqui, mas que fique bem claro: a semelhança com a realidade não pode nem deve ser encarada como simples coincidência.

Dizem que alguns hospitais são frios porque espelham a alma de seus donos. Não é por acaso. Há 10 anos, um velho amigo meu conheceu Dr. Jacinto Boa Morte, um desses donos, que se empolgou tanto ao falar sobre suas supostas virtudes como administrador que a soberba lhe escorria pelos cantos da boca.

Esse amigo trabalhava no Banco do Brasil e o hospital pretendia financiar a importação de alguns equipamentos de ressonância magnética. Dias depois, passaria a prestar serviços à Cassi, operadora de planos de saúde hoje com mais de 680 mil assistidos e 75 anos de experiência no mercado. Mudava pro outro lado do balcão.

Quando se conheceram, o doutor jactava-se de que iria estabelecer para o ano seguinte metas de desempenho desde a "porta de entrada" (urgência e emergência). Com isso, iria aumentar receitas e, assim, poder substituir equipamentos sofisticados a cada inovação tecnológica lançada, sem precisar de bancos.

Metas do tipo: de 100 pacientes que buscassem socorro, no mínimo 40 teriam necessariamente que se submeter a exames mais complexos e, desses, uns 10 precisariam de algum tipo de internação. Daí para frente, quatro ou cinco seriam direcionados para a UTI. Com chuva ou sol.

Falava que não havia como os planos de saúde negarem autorização para determinados exames ou procedimentos numa hora crítica. Segundo Dr. Jacinto Boa Morte, familiares de pacientes poderiam ser orientados sobre como obter uma decisão liminar judicial se a operadora questionasse a necessidade de alguma demanda.

Eram reflexos dos vícios incrustados em um modelo obsoleto de negócio — o tal do “fee for service” — que ainda hoje prevalece no país, onde as operadoras de planos de saúde, ao autorizarem qualquer internação, não fazem a mínima ideia do tamanho da conta que terá que pagar mais adiante.

Quantas diárias serão necessárias? Quais equipamentos serão utilizados? A que preços? A cada internação, as operadoras são obrigadas a colocar um cheque "em branco” nas mãos de gente sem nenhum escrúpulo — com honrosas exceções, é claro! — para que desenhe com as tintas que quiser o futuro dos planos de saúde.

Esse desequilíbrio nessa relação puramente comercial, agravado por uma ganância em doses industriais, transforma numa briga de foice no escuro quando, em um lado do ringue, estão planos que amparam empregados de empresas mais estruturadas que sabem fazer contas, como: Banco do Brasil, Petrobrás e Caixa Econômica. 

Alguns mercadores da saúde raciocinam que se as operadoras quebrarem serão prontamente socorridas pelas empresas patrocinadoras, sem qualquer participação dos demais responsáveis pelo custeio dos planos (os associados). "O governo não deixa falir", argumentam, por ignorância, má-fé ou quem sabe as duas hipóteses combinadas.


Mas como evitar que essa autêntica queda-de-braço acabe em fraturas expostas dos dois lados do ringue? No caso brasileiro, talvez a saída mais óbvia seja a integração de toda a cadeia entre operadoras de planos, hospitais, laboratórios e serviços especializados. Negociação caso a caso não funciona, principalmente quando envolve pequenas operadoras de planos de saúde. 

É claro que integrar esses interesses envolve recursos financeiros expressivos. Por isso, a chamada verticalização — quando as operadoras de planos detém participação acionária em hospitais, laboratórios e serviços especializados de oncologia, cardiologia, ortopedia etc. — pode ser algo interessante inclusive para grandes investidores como os fundos de pensão.

Há quem diga ser arriscado investir na indústria da saúde no Brasil, principalmente para quem precisa assegurar benefícios a longo prazo. Mas um único dado destrói esse argumento na origem: o tamanho da demanda reprimida. Hoje, de 210 milhões de brasileiros, menos de 25% possui planos de saúde, segundo dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS). 

Desde a carta de Pero Vaz de Caminha a Manuel I, "o venturoso" rei de Portugal e Algarves, que se diz que o Brasil é o país do futuro. Já passou da hora de esse futuro dar as caras e, quando acontecer, a demanda prioritária de qualquer sociedade emergente — aqui, na África ou na América do Norte — serão cuidados com saúde e bem-estar. 


Óbvio que esses serviços precisam ser tratados como negócio, provendo justa remuneração aos profissionais da área e aos investidores. Seria muito ruim para todas as partes interessadas uma postura de criminalização, que inibiria investimentos e levaria a caos ainda maior do que o atual. 

O que não se admite é que isso se faça fora de limites minimamente aceitáveis. Garantir esse freio é papel da regulação exercida pelo estado, sob vigilância das partes interessadas, com destaque para a razão de ser do sistema: o consumidor, seu beneficiário final. 

Quando se passa dos 60 anos, cada um encara de um jeito o declínio de status social e profissional, a sensação de que o fim está próximo, o luto dos amigos que estão desaparecendo de modo cada vez mais acelerado e, sobretudo, os problemas com a saúde, seja por conta de doenças crônicas, seja porque, feito carro velho de segunda mão, é um problema atrás do outro.


Mas se existe algo em comum que anda deixando todo mundo em pânico, numa enorme barca furada em mar revolto e sem bóia, é o pavor de precisar recorrer à assistência médico-hospitalar e dar de cara com portas fechadas por litígio com o plano de saúde.

Uma década depois, reencontrei meu velho amigo. Ele jura que o remédio para esse mal, como ponto de partida, é juntar quem paga aposentadorias com quem cuida dos planos de saúde dos  mesmos assistidos.  Pelo menos no caso de Previ, Petros e Funcef, maiores fundos de pensão do Brasil. 


Os três juntos, em nome dos planos de saúde e de seus assistidos, com os necessários ajustes estatutários e regulamentares, cuidariam de ter uma conversa estruturada, de gente grande, com quem anda tirando o sono de seus participantes, discussão que certamente poderá trazer desdobramentos para a indústria da saúde como um todo.


Para meu velho e bom amigo, é bom que isso ocorra antes que as luzes apaguem e muita gente adormeça. Profundamente. 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Que Maravilha!


Ninguém sabe como Sebastião, motorista contratado para aquela viagem, conseguiu transportar toda a família — pais, sete filhos e malas — numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1300 km de estradas de lama e poeira que separavam Patos, Sertão paraibano, de Colinas, Oeste maranhense. 

Fato é que, em junho de 1967, chegávamos todos em paz ao sítio “Maravilha”, zona rural de Colinas, onde viviam meus avós paternos, Mãe Sussú e Pai Simente. Jornada épica com arremate de cinema, diga-se de passagem: em trecho esburacado e íngreme a uma légua do destino, mãe e filhos menores foram obrigados a fechar o percurso no lombo de jumentos.


Foram dias maravilhosos, literalmente. Lembro de um fim de tarde em que meu avô, sentado numa cadeira de balanço à porta de casa, quase morreu de um susto. Tio Marcelino, que, além de agricultor, preparava fogos de artifício para festas religiosas — com o auxílio do irmão, tio Leó , deixara próximo à janela dezenas de tubos de papelão cheios de pólvora, enfileirados como pirulitos num tabuleiro. Curioso, achei de encostar um fósforo aceso no estopim de um deles para ver o que aconteceria.

Mãe Sussú
Foguetões subiram assobiando e explodiram no céu, ofuscando o brilho das primeiras estrelas da noite. Mãe Sussu e meus pais, que raspavam os pratos com saudade de “Maria Isabel” — arroz puxado no alho com carne de sol picada —, correram e ainda me encontraram no local da estrepolia com cara de quem, assombrado, não teve tempo para fugir nem sabia do risco de misturar a estiagem, o fogo e a palha que cobria todas as casas do sítio.

O abraço carinhoso de Mãe Sussú, sob o olhar compreensivo de Pai Simente, livraram-me de uma surra exemplar pela traquinagem. Nem "de castigo" fiquei. Neto é neto no coração dos avós, com ou sem o beneplácito dos pais.

Na manhã seguinte, meu primo Bento admirou-se da balinheira  (estilingue, atiradeira ou baladeira) que eu havia trazido de Patos. A “arma” que ele usava também era poderosa: bodoque caiçara, arco de madeira com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Mas havia algo em comum entre nós, além do sobrenome: o propósito de extinguir a espécie Columbina squammata, as coitadas das rolinhas “fogo-apagou”.

O encanto pelo brinquedo do vizinho nos fez trocar as “armas” e o que se viu nos dias seguintes foram polegares e indicadores duramente castigados na aprendizagem recíproca. Esfolamos os dedos e não conseguimos acertar as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Deus nos poupou de carregar pro resto da vida o remorso pelo abate dessas criaturas tão inocentes quanto as crianças que éramos.

Mais adiante, endoideci ao conhecer uma casa de farinha. Após a colheita, tiravam a casca e lavavam a mandioca, antes que fosse ralada até virar massa. Depois, a massa seguia para uma prensa onde era espremida e extraída toda a água. Feito isso, era peneirada para a extração de impurezas. O que sobrava seguia para uma grande chapa para ser mexida no fogo até virar farinha seca e torrada.

Os adultos não me explicavam direito porque não queriam a minha ajuda para ralar mandioca ou para mexer farinha na chapa quente, atividades para as quais achei que levava jeito e poderia executá-las muito bem, apesar dos nove anos de idade. Há pouco tempo fiquei sabendo que a casa de farinha não existe mais. Teria sido praga de alguma criança contrariada? Minha, não foi! 

Como esquecer os bolinhos fritos de farinha de arroz que comíamos com café coado? E das várias redes de algodão espalhadas pela casa, onde o "dono" de cada uma delas, depois que as lamparinas apagavam, só era identificado pelo par de chinelos? 


Diziam que próximo à "Maravilha" havia um olho d'água onde algumas mulheres, após lavarem trouxas de roupas e fiéis à ascendência indígena, tomavam banho como vieram ao mundo. Nunca me deixaram conferir se aquilo era verdade ou não. 


Chegava a hora de voltar pra casa. Por falta de espaço no bagageiro, fui obrigado por meu pai a deixar o bodoque caiçara.  Faríamos escala em Caxias, próxima à fronteira com o Piauí, onde ele morou antes de migrar para a Paraíba para trabalhar no Banco do Brasil. Lá ficaríamos na casa de meu tio e padrinho Enoch, um de seus irmãos mais velhos, que o levou da "Maravilha", ainda criança, para estudar. Também iríamos rever tias Antonia, Cristina e Vitória.  

Já sentia dor de cabeça e febre alta quando chegamos em Caxias. Era sarampo. Assim como havia acontecido nas temporadas de catapora (varicela) caxumba (papeira) e coqueluche em anos anteriores,  pegou também meus seis irmãos. Para a molecada, havia o lado positivo de adoecer: era possível tomar refrigerantes, leite em pó, comer maçã e biscoitos à vontade, com uma mãe zelosa por perto.

Todos recuperados em pouco mais de uma semana, na hora da partida minhas primas Eliane e Eline, filhas de Tio Enoch, apareceram com febre. Ele, espirituoso como poucos, sorriu para o irmão e a cunhada, meus pais, e os ameaçou em tom de galhofa: “ano que vem, quando eu for conhecer a Paraíba, vou levar bexiga!”

A bexiga (varíola) era uma doença infectocontagiosa provocada por um vírus descoberto quando cientistas notaram que uma múmia, que viveu entre 1550 a 1307 a.C., apresentava vestígios. Essa descoberta deixava claro que a varíola, mais que a peste negra ou a tuberculose, afetou a humanidade por séculos e séculos.

Surgiam em todo o corpo bolhas cheias de pus que coçavam, provocavam dores intensas e não desapareciam sem deixar cicatrizes feias. Isso sem falar no risco de cegueira quando a córnea era infectada ou de morte por broncopneumonia, com o comprometimento do sistema imunológico.

A doença só foi controlada após 1967, graças a uma série de programas implementados pela Organização Mundial da Saúde em diversos países. Até ali, a imunização no Brasil era bastante precária, inclusive porque a vacina só se mantinha ativa em baixas temperaturas, o que exigia o uso de geladeiras, coisa difícil nos anos 50 e 60, sobretudo no Norte e Nordeste.


Crianças vacinadas, livres da bexiga (varíola), em 1968 migrávamos para Alagoas, onde nasceriam mais duas: Kléber e Dayse. Seis anos depois, Mãe Sussú ficou bastante comovida ao receber no Maranhão os caçulas de seu querido filho Agostinho, que falecera em 1972 e não pôde acompanhar de perto o desenvolvimento deles. 

Mãe Sussú, com sua missão encerrada, em 1988 também partiria ao encontro de Pai Simente e dos filhos que se foram antes da hora, deixando em pedaços o seu imenso coração.


O mundo daria diversas voltas depois daqueles dias inesquecíveis em junho de 1967. Semana passada tia Cristina me contou que, hoje, "Maravilha" já dispõe de energia elétrica, poço artesiano e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas até com com TV a cabo. 


O mundo mudou, mudamos todos, todo dia, o dia todo. O tempo que passou, passou. Só não quero — nem posso!  apagar as cores, os cheiros e os sons da "Maravilha" de Mãe Sussú e Pai Simente guardados numa gaveta que existe em mim e que a saudade, vez por outra, me pede para remexer. 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Vai um pastel aí?


Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas.

Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui.

Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo.

Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília. 

O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma hora me fez refletir sobre o breve sopro que é a vida.  Não nos manda aviso-prévio do seu fim nem nos prepara para quem iremos deixar por aqui.


Praticamente reduziu a zero o chamado peristaltismo intestinal – movimentos involuntários que ajudam o trânsito do bolo alimentar durante a digestão – e em minutos instalou-se o que os médicos chamam de Geca (Gastroenterocolite aguda).

Mesmo sonolento, ainda deu para ouvir rápido cochicho entre dois deles, ambos com semblantes carregados:
– O que achou da Geca? Será que foi salmonella?– indagou o primeiro.
– Não estou ouvindo sinais de luta... – respondeu o outro...

Como ainda me restavam traços de humor, quis perguntar mas faltou coragem: haveria algum conflito ideológico entre meus órgãos internos? Ou entre cantoras de uma dupla sertaneja de quem nunca ouvira falar? Geca fazia a primeira ou a segunda voz? Nada disso! Apenas um jeito, no dialeto deles, de dizer que não havia  “nó nas tripas”.


Endoscopia, ultrassonografia e tomografia foram realizadas para afastar a hipótese de problema mais grave, como tumor ou coisa parecida. Mas a barriga não parava de distender, a cara amarelava, as mãos e os pés gelavam...
– Vamos ter que transferir o senhor pra UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório – disse alguém.

O silêncio e a penumbra gelada dos corredores até a UTI meteram em minha cabeça um punhado de interrogações. O que me restava de lucidez alertava que a vida, esse "jogo de culpa que faz tanto mal" – como diria Gonzaguinha – , estava perto do fim. 

Nunca havia deitado numa maca nem para deixar campo de futebol e a primeira vez, poderia ser a última. Era meu corpo carente admitindo que sim – claro, poderia acontecer! –, mas minha alma, inconformada, gritando que não.

Deu para perceber que alguns familiares e amigos chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel de carne moída e azeitonas era capaz de fazer com um cidadão em plena forma, no esplendor de seus 50 anos. 

Ouvi gemidos, gritos e lamentos de outros pacientes enquanto me instalavam monitores, até chegar um moleque com 20 e poucos anos, barba por fazer e jaleco amassado – intensivista estagiário, creio – e me enfiou goela abaixo um catéter que achei que fosse vazar na outra extremidade. 

Santo remédio! Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em poucos minutos, já me sentia bem melhor, levantei e fui ao banheiro tomar um banho restaurador.

Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, para desanuviar o recinto, disse em tom de pilhéria, óbvio:

– O pior aconteceu... Ele vai sobreviver! 

Passei ainda a noite inteira com uma sonda nasogástrica no pré-sal de minhas vísceras, sugando tudo o que o desgraçado do agente causador havia feito para impedir que eu testemunhasse o crescimento de meus netos.

De alta hospitalar 72 horas depois, passava em frente a uma lanchonete quando a balconista, quem sabe comovida com minha cara de fome, mas sem saber de meus antecedentes intestinais, quis ser gentil:

- Vai um pastel de queijo ou carne moída aí, moço?

Devo confessar que recusei a contragosto. Minha família me internaria – noutro tipo de hospital, certamente! – se soubesse que ainda cogitei provar a iguaria. Mas era só uma mordidinha de leve, na casca. Nem atrapalharia o almoço.


Há mais de 10 anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite com salsinha mal lavada que me estragou aquele fim de semana. Pastel é do bem! Não faria uma crueldade dessas com um velho admirador.