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Há sempre um nome de mulher

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Ele ainda tentou segurar na garganta o choro enquanto ouvia “Marina”, de Dorival Caymmi, interpretada por Nana Caymmi, que, a seu pedido, eu havia colocado no toca-discos: — Dói muito? — perguntei a Tio Enoch, achando que o inchaço e a vermelhidão do tornozelo fosse mais uma crise de gota. — Não é isso. Você me fez lembrar de meu irmão... seu pai, quando era criança. Todo dia, depois do almoço, eu deitava aqui na minha rede para cochilar um pouco, escutando baixinho um disco que ele escolhia... — respondeu, a enxugar os olhos. Lá fora o sol do meio-dia parecia derreter o calçamento naquela primeira quinzena de 1988, na tórrida Caxias, quinta cidade maranhense, já próxima à fronteira com o Piauí. Era chamado de Padrinho Enoch pelos 10 irmãos mais novos (Baíca, Jerônimo, Marcelino, Tereza, Agostinho, Antonia, Cazuzinha, Leó, Cristina e Vitória). Para os “Torres da Rocha”, alguém acima de irmão e pouco abaixo de pai que fazia jus à reverência porque, desde cedo, corajosament

Pode ser a gota d’água

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Ontem, o genial João Gilberto, músico e cantor cultuado no mundo inteiro como um dos pais da bossa nova, descansou do inferno em que estava vivendo, marcado por problemas financeiros, desavenças familiares e disputas judiciais. A saúde agravou-se desde a perda da amiga e ex-mulher Miúcha, também cantora, que partiu no final do ano passado. Com "Chega de Saudade", disco do final dos anos 50, João Gilberto inspirou e abriu espaço para uma nova geração de talentos como seu ex-cunhado, irmão de Miúcha.  Daquela nova geração de talentos, em 1968 apareceu lá em casa um compacto simples   —  para quem não conhece, pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de  uma lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou”   —  de um cantor e compositor desconhecido para mim. Disseram-me que se tratava de alguém com mais futuro do que todos aqueles cabeludos da jovem guarda: chamava-se Chico Buarque de Holanda.  Tinha lá minhas dúvidas. No final dos anos 60, começava a escutar na Rádi

Zelito

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Dar uma gargalhada, daquelas de duas ou três repetições, com dor na barriga e risco de incontinência urinária, a gente só consegue quatro ou cinco vezes por ano e olhe lá. Mas há quem consiga isso quase todo dia. Guardo na memória uma galeria de tipos inesquecíveis, dignos do realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez (1927 - 2014). Um deles é Zelito, menos conhecido como José da Silva, ex-funcionário do Banco do Brasil com quem convivi na agência Maceió-Centro, em meados dos anos 70, que possui cadeira cativa nesse seleto time. O avô de Zelito, no primeiro terço do século passado, seguro de que fazia um bem inestimável ao neto, chamou o menino no quintal, pigarreou, cuspiu dentro de sua boca e vaticinou: — Meu neto Zelito, pode engolir o cuspe que você vai ficar curado de todas as doenças do mundo, ouviu?! E a criança sobreviveu. Às gargalhadas, contava isso aos colegas, tempos depois, na maior naturalidade. Técnico agrícola dotado de inteligência bem acima da mé

Sem confusão, qual é a graça?

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O tal do VAR (do inglês: Video Assistant Referee) anda deixando o futebol cada vez mais sem graça, insosso, morno. VAR, para quem não sabe, é um assessor de luxo que analisa comendo pipocas as decisões tomadas pelo árbitro principal de uma partida de futebol com o uso de imagens de vídeo. Ainda não faz parte das regras do jogo, mas, daqui a pouco a sua incorporação deverá ser julgada pela International Football Association Board. Andei vendo alguns jogos do Brasileirão e da Copa América e penso que a fogueira que sempre aqueceu o futebol tende a virar cinzas com o anticlímax proporcionado pelo VAR. Em tese, a tecnologia aplicada deveria ser em benefício do próprio esporte, como é no vôlei, automobilismo, natação, tênis por exemplo. Não é. Emoção e razão são água e azeite: não se misturam de jeito nenhum, pelo menos em algo que, antes de tudo, é adrenalina pura. Mesmo o vascaíno, acostumado com arbitragens esquisitas — tanto quando seu time enfrenta Flamengo ou Corinthians

Só eu sei

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Era tarde demais quando percebi que condenava minha mulher e nossos filhos a sofrerem com os transtornos de sucessivas mudanças ao optar  por uma carreira marcada por desafios pelo país afora. Só eu sei o quanto isso mexeu com todos nós. Poderia ter escolhido outra profissão? Claro. Teria sido melhor ou pior? Não sei. Repito o que escrevi outro dia: ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir.  Sobrevivemos, todos.  Mas só eu sei o quanto pedi a Deus toda noite para que fossem ao meu encontro todas as pedras atiradas pela vida na direção de minha família. E para que nunca nos faltassem o feijão nem o entusiasmo para sonhar com dias melhores.  Só eu sei da angústia  quando mudamos para Salvador,  em maio de 1999,  após três anos e meio no Recife. Lídia, filha caçula, tinha apenas 14 anos e chorava dia e noite a ausência de pessoas e lugares que foram ficando pelo caminho.  Doía tanto quanto doeu para seus irmãos mais velhos quando deixamos Maceió pel

Antes que as luzes apaguem

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Muita coisa no mundo é estranha demais para acreditar, mas nada é tão estranho que não possa ter acontecido. É ficção parte da história que conto aqui, mas que fique bem claro: a semelhança com a realidade não pode nem deve ser encarada como simples coincidência. Dizem que alguns hospitais são frios porque espelham a alma de seus donos. Não é por acaso. Há 10 anos, um velho amigo meu conheceu Dr. Jacinto Boa Morte, um desses donos, que se empolgou tanto ao falar sobre suas supostas virtudes como administrador que a soberba lhe escorria pelos cantos da boca. Esse amigo trabalhava no Banco do Brasil e o hospital pretendia financiar a importação de alguns equipamentos de ressonância magnética. Dias depois, passaria a prestar serviços à Cassi, operadora de planos de saúde hoje com mais de 680 mil assistidos e 75 anos de experiência no mercado. Mudava pro outro lado do balcão. Quando se conheceram, o doutor jactava-se de que iria estabelecer  para o ano seguinte metas de desemp

Que Maravilha!

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Ninguém sabe como Sebastião, motorista contratado para aquela viagem, conseguiu transportar toda a família — pais, sete filhos e malas — numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags , por mais de 1300 km de estradas de lama e poeira que separavam Patos, Sertão paraibano, de Colinas, Oeste maranhense.  Fato é que, em junho de 1967, chegávamos todos em paz ao sítio “ Maravilha”, zona rural de Colinas, onde viviam meus avós paternos, Mãe Sussú e Pai Simente. Jornada épica com arremate de cinema, diga-se de passagem: em trecho esburacado e íngreme a uma légua do destino, mãe e filhos menores foram obrigados a fechar o percurso no lombo de jumentos. Foram dias maravilhosos, literalmente. Lembro de um fim  de tarde  em que meu avô, sentado numa cadeira de balanço à porta de casa, quase morreu de um susto. Tio Marcelino, que, além de agricultor, preparava fogos de artifício para festas religiosas  — com o auxílio do  irmão, tio Leó  — , deixara próximo à janela dezenas de tu

Vai um pastel aí?

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Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas. Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui. Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo. Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília.  O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma ho