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Vai que dá certo ano que vem

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Afague a cabeça de uma gata que ela é capaz de pegar no sono de tanto relaxamento e prazer. Depois de um carinho, até uma onça-pintada cochila com os olhos a meio-pau e a baba escorrendo no canto da boca.  Milton Nascimento diz que “um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”. Afinal, dois dedos de atenção e carinho provocam aquele torpor gostoso que muda o dia. Dia que, em meio ao pacote de motivos que estressam todos os viventes  —  principal  causa mortis , inclusive dos que não sabem chorar como as plantas   — , traz consigo também pequenas  coisas que têm o condão de produzir bem-estar não digo indescritível porque aqui estou a conjecturar sobre o assunto. Falo de coisas simples como sentar à beira-mar e, depois de dois ou três goles  de água de coco, cerveja gelada ou seja lá o que for ,  enterrar o dedão do pé na areia úmida e buscar no horizonte algo além do que os olhos podem ver.  Ou, por exemplo, tirar um cochilo de meia hora numa rede na varanda, depo

A falta que elas me fazem

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Quando ganhei de presente de Natal minha primeira bola “oficial nº 5”, senti pelo peso do embrulho que não era uma couraça daquelas com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la de arranhões nos campinhos de terra batida ou no calçamento da rua. Era de material plástico (vinil), grosso. Doía demais quando batia nas costelas, na boca do estômago ou nas coxas. Devo ter corrido pela calçada com a “dente-de-leite”, superando adversários imaginários, tentando fintá-los um por um até a esquina. Finta, para quem esqueceu, é aquela jogada individual em esportes como futebol, vôlei, basquete, handebol, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do adversário. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção.  Meu irmão Dula (Hélder), baixinho , canhoto, ligeiro,  quatro anos mais novo que eu, era mestre na arte da finta, com um requinte

Era Natal, ainda bem

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Ela me contou que, pouco depois da noite de Natal do ano de 1995, ao ouvir um barulho estranho na porta da frente de sua casa, foi até lá e deu de cara com dois homens desconhecidos. Ficou preocupada com eles: — O que cês tão fazendo aí fora nesse sereno? Entrem que essa friagem não vai fazer bem.  Aos 90 anos, quase cega pelo avanço da catarata, vivia num casarão antigo e comprido cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam sua casa de porta a porta.  Ilustração: Dedé Dwigth  Morava com uma neta solteira na faixa dos 40 anos, cuja mãe, também criada por ela, morreu afogada muito tempo atrás numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que surpreendeu todo mundo e devastou boa parte do lugarejo em questão de minutos.  Quando estive na região p

Basta um caju

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Na flor dos 69 anos de idade, o marido de uma amiga minha, morador do Lago Norte, em Brasília, no mês passado escorregou de uma escada apoiada no muro que dá para o quintal do vizinho, estatelou-se no gramado e fraturou a clavícula, além de sofrer uma forte pancada no rosto. Tentava de forma sorrateira afanar um suculento caju para presentear a amada.  Inegavelmente, mais que carinho com segundas intenções, ficou claro para mim, de novo, que a criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas. Cheguei a temer pela estrutura óssea do pobre gatuno de meia-idade, apaixonado, que felizmente só amargou alguns dias de tipóia, cama e anti-inflamatórios.  Como uma coisa puxa a outra, lembrei-me do que aconteceu comigo por volta das quatro da tarde de um domingo, quando morei pela primeira vez na Bahia. Na época, no começo dos anos 90, aos 33 anos de idade, ocupava o cargo de superintendente estadual-adjunto do Banco do Brasil, até ali o maior desafi

Sou, mas quem não é?

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Ao ler crônicas como " Memória de minhas surras tristes " , " Cocorotes "  e " Asas cortadas no ninho " , uma amiga leitora me escreveu alertando que devo ser portador de um tal Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Recorri ao  Google  e descobri que esse bicho de três cabeças aparece na infância e persegue o sujeito por toda a vida, sob a  forma de desatenção, inquietude e impulsividade. Pega 5% das criancinhas e em mais da metade dos casos, embora mais brando, permanece até a velhice — o pior de todos os males, a nos tirar todos os prazeres exceto o apetite. Li ainda que o TDAH em geral é associado a dificuldades na escola e nas relações com outras crianças, pais e professores. A molecada portadora é vista como: “com a cabeça no mundo da lua”,  “desastrado” (derruba tudo que tem nas mãos) ou “com motor de popa na bunda” (não param quietas um minuto sequer!).  Quando adolescentes, podem ter dificuldades em se sujeitar

Parece que foi ontem, Robertão

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Ao retornar à Bahia, em maio de 1999, na largada quis provocar os colegas ao recorrer à canção de Caetano Veloso quando me dirigi pela primeira vez a centenas de administradores do Banco do Brasil: "Existirmos... a que será que se destina?" Parece que foi ontem que assumi a superintendência estadual. Jaime, executivo que viera da sede da empresa, em Brasília, prestigiar a cerimônia de posse, no final entregou-me uma folha de papel com breve comentário: “Excelente discurso. Emoção e razão”. Guardei no bolso sem perceber que havia algo a mais escrito no verso. Na hora em que eu falava, ele usara o mesmo papel para comentar com Robertão, seu parceiro de trabalho, o que lhe chamara à atenção na primeira fila do auditório: “Belas pernas!” Robertão era terrível. Do alto de seus quase dois metros de altura, sempre bem vestido, cabelos aparados, qualquer mulher que passasse diante dele era vítima do seu olhar de lascívia e sedução. E ai de quem desse algum sinal de retorno

Eu confesso. E você?

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Para quem trabalhou por mais de quatro décadas numa mesma empresa — hoje em dia, algo visto como falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, não chega a ser tão difícil listar algumas figuras especiais que encontrou pelo caminho. Pensei nisso e logo me veio à cabeça uma dezena delas. Lembrei da  " Arrogante", que sempre fazia questão de encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só via os outros de cima para baixo e tinha sempre um sorriso de deboche para qualquer comentário mais simplório numa reunião. Também recordei da "Bocão". Falava sem parar de si própria (o que já era péssimo) e dos outros (inaceitável). Mesmo porque quem se enfeitiça com o som da própria voz pode até parecer interessante por alguns minutos, mas soa ridículo daqui a pouco e insuportável meia hora depois.  Já  " Curiosa" chegava cedo e antes mesmo do “bom dia” cuidava de remexer papéis em minha mesa de trabalho; em seguida, bisbilhotava a tel

Zé de Brito

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O velho José de Brito Jurema, quase um clone matuto e carrancudo do genial dramaturgo, palestrante e romancista paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014), desmontou de sua égua em frente à única agência bancária da cidade de Itabaiana-PB, dirigiu-se ao balcão de atendimento, chamou no canto um baixinho franzino que orientava alguns clientes e foi direto ao ponto: — Vosmecê pode me dizer qual é sua intenção com minha filha? — Calma, seu José, vamos conversar... — ponderou Agostinho, que, quatro anos mais tarde, se tornaria meu pai. — Me disseram que vosmecê tá se enxerindo pro lado da menina. Ela só tem 16 anos, viu? — Seu José, eu já iria mesmo procurar o senhor lá no sítio Jacaré para pedir a mão de Eudócia. Nós vamos nos casar assim que correrem os papéis no cartório. Meu avô andava bravo com as conversas de comadres que ouvia no sítio "Jacaré", a oito léguas da cidade, dando conta de que sua filha, balconista numa loja de tecidos, namorava um bancário foraste

A arte de viver da fé

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A banda  Os Paralamas do Sucesso  apresentou-se no começo de outubro de 2019, pela quarta vez, no  Rock in Rio.  Com  37  anos de estrada, o grupo ganhou visibilidade ao participar da primeira edição do festival, em 1985, e segue até hoje com sua formação original (Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone) encantando velhas e novas gerações com uma mistura bem balanceada de  rock ,  reggae  e outros ritmos latinos.  Conheci Herbert Vianna, vocalista e líder do grupo, no final do ano 2000, depois de um espetáculo maravilhoso realizado em Salvador. Elegante e bem-humorado, tinha nas mãos quando nos recebeu (minha filha e eu) uma taça de champanhe e um acarajé, em perfeita harmonia com uma noite morna na Bahia de todos os santos “e de quase todos os pecados”, como diz um velho amigo meu.  Acabara de lembrar à plateia que “... a cidade, que tem braços abertos num cartão-postal, com os punhos fechados da vida real nos nega oportunidades e mostra a face dura do mal: Alagados, Tr

Asas cortadas no ninho

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Meus irmãos não me deixam mentir e podem confirmar que um dia fui eleito prefeito da rua em que morávamos. Coisa de criança. Isso aconteceu em 1966, em Patos, Sertão paraibano, pouco depois da intensa cobertura das eleições estaduais, envolvendo João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (PSD),  realizada pela  Rádio Espinharas. A apertada disputa voto a voto  –  João Agripino venceria com menos de 1% de vantagem  –  no final de 1965 empolgou o município e tocou fogo na meninada da Rua Bossuet Wanderley, a disputar quem juntaria mais “santinhos” dos dois candidatos. Mais tarde, parte desses papelotes serviriam de cédulas na votação para prefeito da rua. Para fazer o quê? Não sei. O que fazer depois de eleito nunca foi importante no universo político deste país. Ninguém queria enfrentar Lindomar, chamado de “Lindo”, moleque dentuço, brigão, metido a intimidar crianças menores, filho caçula de Seu João da perfumaria. Seria derrota líquida e certa de quem se atrevesse a encará-lo em to