Um viciado a menos

Circulou há pouco tempo um texto que mexeu com a tribo dos sexagenários em diante, exaltando a capacidade produtiva de quem atingiu essa faixa etária. Parecia o preâmbulo de um informe publicitário da indústria farmacêutica anunciando um nova pílula milagrosa.

Dizia o seguinte: 

(...) Um grande estudo nos Estados Unidos descobriu que a idade mais produtiva na vida de um homem é de 60 a 70 anos. Setenta a 80 anos é a segunda idade mais produtiva. A terceira idade mais produtiva é de 50 a 60 anos.

A média de idade de um ganhador do Prêmio Nobel é de 62 anos. A média da idade de um CEO em uma empresa da Fortune 500 é de 63 anos. A média da idade dos pastores das 100 maiores igrejas da América é de 71 anos.

A média da idade de um papa é de 76 anos. Isso nos diz de alguma forma que Deus planejou que os melhores anos da sua vida sejam 60-80!  É quando você faz o seu melhor trabalho.

Um estudo publicado no NEJM descobriu que aos 60 anos o ser humano atinge seu potencial máximo e continua até os 80! Portanto, se você tem entre 60-70 ou 70-80, você tem o melhor e o segundo melhor ano de sua vida com você! 

Fonte: New England Journal of Medicine 70.389/2018 (...)

É mais um capítulo da antiga novela “Me engana que eu gosto!” Não creio que ninguém trabalhe por diletantismo ou prazer depois dos 65, sobretudo se a correria começou cedo, ali entre 15 e 16 anos. Só por necessidade. Ou vício. 

Vício é hábito repetitivo que pode degenerar ou provocar algum tipo de prejuízo tanto ao viciado como aos que convivem com ele. Vem do termo latino "vitium", que significa "desvio", “defeito". Necessidade é outra coisa.

No começo do ano passado, o chefão de um grupo econômico encantou um amigo meu ao convidá-lo para implantar um projeto-piloto de escola de negócios, no Sudeste, para jovens de 14 a 15 anos, a serem selecionados do último ano do ensino público fundamental. 
— Que beleza! Fico feliz em voltar a trabalhar em algo desse nível, num país com tantas iniciativas e tão poucas poucas “acabativas” nessa área — entusiasmou-se meu amigo.
— Tudo bem, mas veja que não estou aqui falando em caridade — ponderou o chefão.
— Sei... Há incentivo fiscal para ensino profissionalizante... 
— ... Isso! E os melhores alunos, depois de três anos de teoria e prática, acabarão nas empresas do grupo. É o nosso futuro que está em jogo.

Meu amigo era visto pelo ex-chefe como a pessoa mais capacitada para tocar o projeto-piloto.  Criativo, pós-graduado em administração e ex-diretor de RH de uma grande empresa, gozava de sua confiança desde que trabalharam juntos por mais de uma década.


Mas no dia seguinte meu amigo amanheceu indeciso se toparia ou não. Depois de dois anos aposentado, sem residência fixa em canto algum, viajando metade do tempo pelo exterior e a outra metade pelo país, não quer mais prender-se a agenda, horários, hierarquia, metas, reuniões e pressão por resultados a curto prazo. 

Iria recusar o convite e buscava apenas uma forma honrosa de fazer isso sem deixar transparecer covardia ou que estava esnobando a oferta. Diria ao ex-chefe que já dedicara mais de 40 anos a uma pesada rotina de trabalhos e que seria insensatez mergulhar novamente numa roda-viva.

Também não queria negar à mulher — parceira de toda a vida e, como ele, agora aposentada — a sua companhia numa fase em que se completam desde os cuidados com alimentação e saúde até nos pequenos prazeres como fazer caminhadas matinais na praia, dividir um rosbife acebolado no restaurante da esquina, ir ao cinema ou flanar pelos corredores dos shoppings até tarde, antes de retornarem ao aconchego dos lençóis.  

Por que mexer naquilo que vinha dando certo? Logo ele que, havia anos, defendia com unhas e dentes o sacrossanto direito de não fazer nada de muito estressante no último quarto da vida, escorado num bom plano de saúde e numa aposentadoria suficiente, sem preocupar-se com contas a pagar no fim do mês.

Andava cismado também desde que soube da morte de um colega de infância, vítima de um derrame cerebral sentado no sofá da sala de estar. Chegou a comentar comigo:
— Quem diria, hein?! Ele se cuidava tanto. Todo dia caminhava na orla. Como é que o sujeito morre tentando cortar as unhas dos pés? 

Entrei de gaiato no “navio" quando meu amigo ligou-me, interrompendo o cochilo após o almoço. Contou da proposta que havia recebido e quis saber:
— Véi, você concorda comigo? Acha que estou certo em abrir mão dessa oportunidade?
— Prefiro não opinar, cara. Isso é como hemorróidas: coisa íntima, pessoal... 
— Peraí, véi, se peço sua opinião é porque tô indeciso...
— Você parece minha mulher: faz pergunta mas já tem na cabeça a resposta que quer ouvir.
— É meu jeito de checar se estou no rumo certo. Deixe de ser ranzinza, véi!
— Se você insiste, que tal a gente sentar para conversar mais tarde, quando o sol esfriar? Pode ser numa barraca aqui na orla, tomando chope com casquinha de siri ou caldinho de camarão.
— Não posso... Fiquei de apanhar meu neto no inglês e depois passar na lavanderia. A mulher também quer pegar um cineminha mais tarde...
— Cê que sabe!  Pode ser amanhã, às oito? Enquanto a gente bate um papo, toma um café com tapioca lá na padaria... 

Na dúvida se ele iria e para não ser chamado novamente de ranzinza — coisa de velho, o que absolutamente não condiz com a “criança” aqui! , cuidei de adiantar, em rápidas palavras, pelo menos três motivos pelos quais não quero voltar a trabalhar por dinheiro nenhum nesse mundo:
  1. Tenho ossos, articulações e músculos desgastados pelo uso e sei disso. Corro maior risco, portanto, de sofrer deformações, fadiga muscular e prejuízos à qualidade da vida que me resta, a depender do que tiver que encarar.
  2. Sei também que as pressões do mundo corporativo de hoje podem me trazer mais problemas: dor de cabeça (há muito tempo não sei o que é isso!), insônia, tontura, irritabilidade, dificuldade de concentração e memorização e, portanto, queda na qualidade de vida. Tem mais: podem causar outros distúrbios psicológicos, como: frustração, insegurança, medo e tristeza.
  3. Sessentões como nós que fumaram, beberam e comeram nos anos 80 e 90 como se não houvesse amanhã têm coração, pulmões, fígado, rins, estômago e intestinos num ônibus desgovernado descendo ladeira abaixo, por mais que os freios da medicina tenham evoluído. O desafio que nos resta é prolongar a agonia, com bom humor e resignação, até a chamada falência de múltiplos órgãos. Depois dos 90, se a decisão for minha.

Não faço a mínima ideia do que aconteceu com meu amigo após aquela conversa. Sumiu e nunca mais tocou no assunto. Talvez seja alérgico a frutos do mar ou, quem sabe, enjoou tapioca. Nunca se sabe. Depois de certa idade, quando um de nós desaparece por alguns dias das caminhadas no calçadão, a gente pensa logo no pior. 

Ouvi dizer que teria viajado com a mulher para São Paulo, em novembro passado, sem data prevista para retorno. Mas não ficaram nem duas semanas por lá e já voltaram. Foram vistos na praia do Francês, Litoral Sul alagoano, no último réveillon.

Vai-se ver é outro que andou refletindo e, sem precisar ouvir ninguém, acaba de livrar-se do vício. Fiz bem em não me meter na vida dele. Poderia ficar chateado comigo. 

Comentários

  1. Uma atividade é diferente de um compromisso com hora marcada, agenda e seus adereços. Defendo no momento atual 6.3 voluntariado e leitura na sombra com muita água fresca.

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  2. Ter objetivo, busca de uma realização, acredito não ter idade, sempre será uma boa direção. Precisa ser diferente, sem Muito ônus, mais bônus.

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  3. Esse tema e estimulante.
    Minha atividade trabalhista com Carteira assinada se iniciou em mar/1970, com 13 anos. Com mais ou menos prazer,dura até hoje. Em março próximo, portanto, meio século de trabalho.
    Nas férias de dezembro essa questão de aposentadoria começou a povoar as minhas ideias. Foi bom, pois vi que é chegada a hora. Decidi-me. Junho de 2021 completo 65 anos e esse foi o limite que me impus.
    Acho que cumpri o castigo bíblico com galhardia.
    Se eu tivesse recebido essas 3 dicas antes, talvez já estivesse curtindo os prazeres da volitagem.
    De qualquer forma, foi bom
    ACCampos.

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  4. Hoje com 5.9 não tenho morada fixa. Minha mulher e eu andamos zanzando por aí. Até o momento está dando certo...
    Não quero caçar sarna pra eu coçar.

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  5. Há muito na vida por usufruir. Um bom livro, uma viagem, bons momentos junto aos que amamos... e por aí vai! Tão curta a vida, vamos curti-la! Mais prazer na vida faz um bem...!

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  6. é, foi melhor não se meter na decisão do amigo mesmo, vai que o cara decide trabalhar novamente ...

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  7. Se procurarmos e quisermos, sempre encontraremos o que fazer. A questão é fazermos as escolhas certas nas várias fases de nossas vidas. Estou prestes a completar 38 anos de BB, onde iniciei minha carreira, por necessidade, aos 15 anos de idade. Ressalto que durante esse período, meu trabalho foi e tem sido muito prazeroso, sem exceções. Mas sei que a hora de pendurar a chuteira do BB está chegando, momento que vem sendo muito bem pensado. Quanto ao futuro, prefiro esperar que ele se torne “presente” para vivê-lo naturalmente. Um dia por vez e sempre ao comando de Deus!!!

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  8. Ouso dizer que conheço esse seu amigo.

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    1. Eu não tenho a menor dúvida de que você o conhece há muito tempo.

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  9. Trata-se realmente de uma decisão muito pessoal... mas há vida boa em qualquer decisão, dependendo apenas do momento da pessoa... grande crônica.

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  10. Hayton , eu com meus 48 já estou nessa fase de reflexão..rss

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  11. Também conheço um amigo que recebeu um convite semelhante a esse e não aceitou. A diferença é que ele tomou a decisão sozinho, sem pedir minha opinião. A vida é assim mesmo, pautada pelas escolhas que fazemos.

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    1. Talvez tenha faltado coragem a seu amigo para pedir a sua opinião. Melhor assim. Quem sabe ele ficasse chateado com você.

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  12. Bom dia a todos. Quase que desconfiei desse amigo. Mas lendo as opiniões de vocês, concordo com todos. Cada fase no seu devido viver intensamente. Acho que vale a pena curtir essa nova etapa da vida, do sexagenário. Cada coisa no seu tempo. A vida é só uma! Um abraço

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  13. Depois de aposentado, só volta a trabalhar quem não tem o que fazer... conversar com os filhos, cuidar dos netos, sair pra tomar uma exatamente na hora que dá vontade, curtir os amigos, etc. Quem pede opinião é porque quer aval... como não se deve avalizar nem gente da família...

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  14. Respostas
    1. ... Ou não, como diria um certo cantor e compositor baiano na casa dos 70...

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  15. Você não se mete mas também não se omite!!! Parabéns por abordar, com leveza, um tema que angustia muitos novos aposentados.

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  16. Desconfio que tal pesquisa foi encomendada pela turma da Reforma da Previdência. Muito bem abordado o tema da temida por uns , e ansiada por outros, aposentadoria. Ouvi de um amigo , já com alguns anos de aposentado:” até hoje não encontrei os problemas da vida de aposentado .”

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  17. Ahahahahaha, ainda bem que não se meteu na vida dele. Sacomé, né , amizade tem que preservar, ahahahahaha

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  18. Só há pouco tempo conquistei o direito de ir e vir em toda sua plenitude, e esse osso não largo mais...

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  19. Este comentário foi removido pelo autor.

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  20. Bastou algumas reflexões suas e o "amigo" se mandou pelo mundo afora e ainda não deu a cara. Ainda bem que você não o aconselhou.
    Kkkkkk kkkkkk

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  21. Às voltas com um sério problema de saúde do chamego da família - nosso cachorrinho Pedrito, um daschhund peruano, bilíngue, pois late também em português -, só agora pude acessar aqui.
    Nova delícia de crônica, você já está abusando...
    Olha, acho que eu também consigo identificar esse seu "amigo". E exulto com sua decisão final, assim não ficaremos privados de alguns escritos despretensiosos com que ele nos brinda vez por outra. Se voltar a encontrá-lo, invente dificuldades e obstáculos, incita medo, pavor até, mas tire da cabeça dele qualquer possibilidade de nova tentação.
    Grande abraço. Aqui é Volney.

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  22. como disse você, no texto, isso é como hemorróidas, de foro intimo. Eu acho que todos nós brasileiros trabalhamos muito durante a vida inteira, por razões diversas, prazer, vocação, status, poder, dinheiro, etc. As vezes trabalhamos por gratidão e ate altruísmo. O seu amigo, por exemplo, não foi se encontrar com você , pois tinha uma agenda lotada de trabalho familiar, o que equivale ao trabalho por prazer. Eu queria muito expressar a opinião, que eu aceitaria o trabalho, mediante algumas condições pré estabelecidas por mim, que tornasse tudo aquilo que ele colocou, que é típico do trabalho, que mesmo que seja por algumas daquelas razões que eu supracitei, não impede que a necessidade impere. O trabalho, após a aposentadoria, depende muito primeiro lugar, do valor e as condições em que você se aposenta, pois o brasileiro em geral precisa ter um trabalho pra complementar a sua renda, segundo lugar, muitos precisam trabalhar por uma questão de se sentir valorizado perante a si próprio e as vezes, perante a família e a sociedade e alguns querem dar uma contribuição para o país que ele tem gratidão, pois, foi para uma escola pública , estudou em universidade pública, ou fez um treinamento no senai, sesc, senac, sebrae, etc e agora quer retribuir. Recentemente os trabalhos sociais, estão retornando a serem muito valorizados, isso é uma coisa maravilhosa, pois você une várias razões juntas. Eu queria dizer que eu aceitaria o trabalho, sem querer mexer na hemorroida de ninguém.
    meu nome é Hemerson Casado, sou quadriplegico, não falo, me alimento por uma sonda no estômago e respiro por aparelhos. Sou um ativista contra as doenças raras e trabalho todos os dias.
    parabéns por mais um texto de muita reflexão,, Hayton.

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