Numa manhã chuvosa no Sertão da Paraíba, no final de 1967, um homem de rosto familiar, usando camisa estampada de mangas compridas, calça de linho e alpercatas, aproximou-se da mesa onde meu pai recebia alguns clientes e pediu: “meu patrão, o senhor me autoriza oferecer este livro ao pessoal do banco?”
O vozeirão denunciou na hora quem chegava, trazendo numa mala de couro vários exemplares de O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga. Em final de carreira, o Rei do Baião já vivia uma fase marcada pelo desânimo, apresentando-se em pequenos cinemas e teatros do interior, emissoras de rádio de menor expressão, bem diferente do estrelato de décadas passadas.
O vozeirão denunciou na hora quem chegava, trazendo numa mala de couro vários exemplares de O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga. Em final de carreira, o Rei do Baião já vivia uma fase marcada pelo desânimo, apresentando-se em pequenos cinemas e teatros do interior, emissoras de rádio de menor expressão, bem diferente do estrelato de décadas passadas.
Obra do paraibano Sinval Sá (1922 - 2014), foi escrita na primeira pessoa, com base no repertório de palavras do próprio Luiz Gonzaga (1912 - 1989), em narrativa cronológica desde a infância no Exu(PE) entre familiares, passando pela descoberta da música, a fuga de casa depois de uma surra da mãe, a vida militar no Ceará, o início e o apogeu da trajetória artística, incluindo as letras das principais canções, história e estórias até 1966.
Aos nove anos de idade, aquele foi o primeiro livro - grosso, sem gravuras, igual aos que meu pai enfileirava na estante - que li do começo ao fim, imaginando as cores, os cheiros e os sons do universo sertanejo. Em linguajar matuto, como ouvia meus avós maternos falarem, cheguei a decorar Assum Preto bem antes de ouvir a música pela primeira vez:
“Tudo em vorta é só beleza
Sol de abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dô
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantá
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amô
Que era a luz, ai, dos óios meu.”
“Tudo em vorta é só beleza
Sol de abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dô
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantá
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amô
Que era a luz, ai, dos óios meu.”
Sem o dom natural nem o entusiasmo necessários aos intermináveis exercícios de repetição, mexendo apenas com algumas teclas e baixos, o martírio com pentagramas, claves de sol, bemóis e sustenidos não durou mais que quatro meses. Além disso, lembro até agora do peso do instrumento sobre minhas pernas de criança durante uma hora, três vezes por semana, e da marcha preguiçosa dos ponteiros do velho relógio de parede da casa da professora de música.
A bem da verdade, eu já acusava os primeiros sintomas de uma doença contagiosa que circulava pelo país naquele tempo: o rock’n’roll dos Beatles e a Jovem Guarda de Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa. Queria mesmo era aprender a tocar guitarra elétrica, instrumento à época duramente criticado pelos amantes, como meu pai, da música genuinamente brasileira.
Haydeé ainda estudou piano no Colégio Cristo Rei, mas isso nem de longe passava por minha cabeça. Apesar do sucesso de algumas canções da Bossa Nova que se ouvia na Rádio Espinharas de Patos, tinha certeza de que a molecada da rua em que morávamos não me daria sossego. Para eles, piano era coisa de menina; menino jogava bola, criava passarinhos...
Haydeé ainda estudou piano no Colégio Cristo Rei, mas isso nem de longe passava por minha cabeça. Apesar do sucesso de algumas canções da Bossa Nova que se ouvia na Rádio Espinharas de Patos, tinha certeza de que a molecada da rua em que morávamos não me daria sossego. Para eles, piano era coisa de menina; menino jogava bola, criava passarinhos...
Muito tempo depois, nos anos 90, conheci um paraibano, assim como eu, também nascido nos anos 50, que começou a cantar e tocar acordeon ainda na infância, influenciado por nomes como Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Precoce, já aos 10 anos tocava o seu pequeno fole de 24 baixos, animando festinhas na região do Cariri.
Era Flávio José, como eu, ex-menor aprendiz do Banco do Brasil. Aprovado depois em concurso público, virou funcionário de carreira por mais de 20 anos, até que se demitiu quando sua atividade secundária - o banco, óbvio - começou a atrapalhar sua a dedicação à música.
Intérprete da música romântica nordestina e acordeonista de primeira grandeza, é hoje considerado o nº 1 do xote e do forró pé-de-serra, graças a uma voz afinada e poética, além da criteriosa escolha que faz de compositores parceiros como: Petrúcio Amorim, Flávio Leandro, Nando Cordel, Jorge de Altinho, dentre outros. Com dezenas de álbuns lançados e milhares de shows em mais de 40 anos de carreira, sua arte extrapolou as fronteiras do Nordeste e encanta multidões por todo o Brasil.
Outro dia eu escrevi que ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir. Flávio José é mais uma prova evidente disso. No meu caso, devo reconhecer, minha maior contribuição à MPB foi nunca haver aprendido a tocar um instrumento.