“Tá na mesa!”


Assim gritava a plenos pulmões Dona Eudócia, minha mãe, por volta do meio-dia. Esse grito de guerra, vindo da cozinha da casa onde morávamos, na Gruta de Lourdes, em Maceió, tinha o condão de juntar, em fração de segundo, um time de crianças salivando em torno dela. De banho tomado, cheirosa, ela servia orgulhosa suas crias, convicta, sem qualquer falsa modéstia, de suas habilidades culinárias.


Vi minha mãe certo dia se vestir de santa das causas impossíveis e operar uma versão caseira e bem temperada do milagre bíblico da multiplicação de pães e peixes. Não com arabaiana, carapeba, cavala ou cioba, peixes de primeira qualidade que já custavam os olhos da cara na Maceió dos anos 70, mas com ovos de galinha, boa vontade, engenho e arte.

Sim, com meia dúzia de ovos, alguns cubinhos de charque, dois tomates, uma cebola, meio pimentão, alfaces e ervilhas, ela preparou alguns omeletes com requintes de crueldade para com a vizinhança, que só ficou no cheirinho de comida boa que se espalhou pelo ar.


O suco gelado de maracujá e as sobras recicladas de arroz, feijão e farofa, ajudaram a vencer o desafio de alimentar toda a família naquela quinta-feira-feira, quando o estoque da velha  “frigidaire” já atingira o chamado “volume morto” e apresentava sintomas de falência de múltiplas gavetas. 



Lá em casa nunca fomos de nos abraçar ou beijar. Essas manifestações de afeto só apareciam no ninho da “Juremada” nos primeiros meses de vida, até a chegada do próximo irmão. Afeto e carinho pra valer sentíamos quando nossa mãe, logo cedo, nos oferecia pamonha, canjica, coalhada, tapioca com coco ralado ou cuscuz com ovos estrelados. Aí bastava uma xícara de café preto bem quente pro dia nascer feliz, até a hora do almoço, quando ouviríamos o grito de guerra novamente: “tá na mesa!”.

Há poucos meses ouvi meu neto dizer: “vovô... você faz a melhor sopa do mundo”; e a irmã completar: “só vovô sabe fazer o bolo de milho que eu gosto”. Generosidade pura dos dois, talvez por conta da fome naquele momento, quando me veio a ideia de escrever esta crônica sobre a lição básica que aprendemos todos com Dona Eudócia, bisavó deles, pós-graduada com louvor na universidade da vida, hoje no esplendor de seus 80 outubros. 


Porque desde que o mundo é mundo, “não existe amor mais sincero do que aquele pela comida” (George Bernard Shaw, 1856 - 1950). Das primeiras gotas do leite materno ao mingau de aveia na velhice - nesse último caso, quando se tem o privilégio de chegar lá.


Comentários

  1. Sua especialidade: Bife Marinheiro ( eu assim apelidei porque era passado ao ponto no molho acebolado com a salmoura que escorria da chã de dentro. Assim ela os fazia render pra todos comerem bem.rsrsrs)

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  2. O “tá na mesa” me reportou à infância. Hora sagrada de reunir a família.

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  3. Este é o texto que chega a dar água na boca.

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  4. A Araujada ( família Araújo composta por seu Arlindo, Dona Lourdes e mais 7 filhos, dentre os quais este que vos comenta) também não é e nunca foi muita afetuosa. Rsrsrs Estas crônicas, remete-me ao meu passado em Arcoverde PE, tão semelhante ao aqui descrito. Parabéns Hayton. Show de bola.

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  5. Grande família, em número e qualidades! Lembra-me também a minha mãe Sussu.São lembranças saudosas.

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  6. Vovó "Dócia" sabia como conquistar os seus.
    Era um ritual sagrado, sair de Viçosa aos domingos para esse dia tão gostoso. Lembro como se fosse ontem desses domingos na Gruta, netos suados por tanto correr no terreno ao lado e subir no pé de goiabeira. Na hora do famoso "TÁ NA MEEEEESA" da vovó, corríamos fervorosos e todos sentavam no chão, que ia da cozinha ao corredor de tantos netos ali. Cheiro de infância.

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  7. Muito bom! todas as vezes que escuto “tá na mesa” uma sensação de alegria extrema me invade

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  8. Que lindo tio Hayton! Amei!Muito bom reviver os momentos em família!

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  9. Sem palavras... Gostinho dr infância! ❤

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  10. muito bom, faz a gente lembrar as nossas passagens de infância e algumas cenas vividas agora com a neta.

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  11. Linda história de Amor e superação

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  12. Crônica para leitura, degustação e devoração.

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  13. Crônica para leitura, degustação e devo(ra)ção.

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  14. Ótimo o texto e sua história.
    Amigo permite viajarmos no tempo, relembrando de muita coisa Boa, o Amor sempre superando as dificuldades, tristezas e desafios.
    PARABÉNS

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  15. Ouvi muito grito tá na mesa!
    E muitas vezes faço o mesmo!

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  16. Amigo Hayton, Leitura boa. Leitura fácil parabéns.

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