Afinal, por que ainda sorrimos?


Anteontem, um velho amigo escreveu-me lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe falou preocupada: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade  amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.


Evidente que se houvessem oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  


Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua  pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?


Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.

Comentários

  1. É triste a realidade de nossas crianças. Não acredito que uma mãe de sinta confortável pedindo esmolas nas ruas.

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  2. Muito bom o texto, meu caro Hayton. Já o repassei para seis amigos. Abraço do Sidney.

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  3. Está é a realidade das grandes cidades!

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  4. Um duro retrato da realidade de uma grande fatia da sociedade produzida pela desigualdade social. Falta oportunidade, falta educação...

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  5. Eu sempre me questiono quanto a "dar esmolas". Será que é realmente ajudar? Necessidade, dignidade e reabrirá outros quês. Prefiro pensar em trabalhos para comunidades.

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  6. Sensacional a crônica, que aborda nosso cotidiano “sem filtros”. Parabéns, também, pela sensibilidade na escolha das palavras. Ah, belo trabalho, igualmente, do “fotógrafo” Dedé.

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  7. BOM DIA Hayton. Ótima crônica cheia de verdades e linda foto do seu amigo Dedé.

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  8. A foto literalmente elimina qualquer necessidade de contextualizar a extrema desigualdade que permeia o nosso país desde sempre. Com todas as adversidades ainda nos presenteiam com seus belos sorrisos. Ganhei o dia!!!

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  9. A foto literalmente elimina qualquer necessidade de contextualizar a extrema desigualdade que permeia o nosso país desde sempre. Com todas as adversidades ainda nos presenteiam com seus belos sorrisos. Ganhei o dia!!!

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  10. Impressionante a sensibilidade transmitida na sua crônica.
    Parabéns meu amigo !

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  11. A foto impressiona, mas o texto é de fundamental importância na comunicação da mensagem e você fez isso com maestria. Parabéns!

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  12. Sim, vou compartilhar o texto com amigos.

    Um abraço.

    Orlando.

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  13. Outro excelente texto! Pura realidade brasileira. Abs

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  14. nasserdabahia@gmail.com14 de março de 2019 às 19:57

    Há muito tempo aprendi que "uma imagem vale por mil palavras". Aqui não é diferente. Mas o mote, por si só, exige no mínimo 2 ou 10 MIL palavras. Ainda que o resultado capturado pelas lentes merecesse os "honorarios" que a dignidade das artistas, mãe e filha, insistiram em desembolsar sem saber que haveria recompensa (devolução).
    A realidade em si, fotografada ou comentada, põe em xeque nossas crenças e valores ao confrontarmos com a triste e degradada realidade atual...

    Parabéns, Hayton, por nos proporcionar mais essa reflexão. Receba meu @braço . Nasser.

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    1. É isso, Nasser. Imagem e texto podem funcionar isoladamente, levando a mensagem que se pretende comunicar. Mas quando juntos, em harmonia, facilitam bastante a comunicação. Por isso, não abro mão de nenhum desses recursos.

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  15. Uma realidade cada vez maior no nosso país. Realidade captada com sensibilidade por muitos artistas fotógrafos desconhecidos. Além de sorrisos de mãe e filha, existem fragrimentos de perversidades gerados por políticas de desprezo perante a raça humana. Cabe a nós refletirmos e fazer nossa parte sem esperar por ações politicas por parte do sistema corroído pela corrupção.

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  16. Bela reflexão! Imagens, são imagens. Mas nunca desista dos textos. São saborosos d reflexivos.

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  17. Concordo com o comentário anterior. Imagens são importantes, mas os textos dizem muito mais para uma boa reflexão. Grandes textos! Continue,ajuda muito na reflexão sobre o comportamento do jovem atual. Para bens! Abraços.

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  18. Cada dia melhores seus textos hayton. Parabéns.

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  19. Triste a realidade, a mais perfeita constatação, em especial a capacidade de geração de vida e riqueza existente em nosso País. Adormecida, suplatada pela forma de gerir e administrar.
    Muito Bom, como sempre.

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  20. Perfeitas colocações, que traduzem realidade e lirismo ao mesmo tempo. Contada desta forma, a realidade se expande e alcança os corações.

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  21. Parabéns pela bela narrativa, Hayton! Excelente tema escolhido e a ser abordado em palestras dirigidas ao público de jovens alunos. Atualmente em atividades como diretor de uma escola técnica em Recife, abordamos temas importantes e sempre contextualizamos com um vídeo de filósofos atuais, adequados ao tema. Permita-me referenciá-lo em nossa próxima apresentação.. abraço

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  22. Sinta-se à vontade, meu caro Gilberto. E parabéns pelo novo trabalho que vem desenvolvendo.

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  23. Meu amigo,
    só você para escrever tão bem sobre essa foto da vida real que a nossa pequenez humana nos impede de enxergar.
    Desejo que esse texto alcance diversos corações e acorde, ou melhor, renove o espírito de solidariedade de muitas pessoas. Assim, você já terá feito um grande bem à humanidade. Afinal, por que ainda sorrimos?
    Grande abraço,
    Tânia Santos.

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  24. Caro Amigo, é sempre um imenso prazer, quando vejo palavas escritas,traduzirem com tanta lucidez, cenas da vida. Seu texto me transportou para a cena descrita. saí dele com a certeza revigorada de que, apesar de sermos um País de profundas desigualdades, somos um povo impregnado de esperança.
    Grande Abraço!!!


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  25. Percepção de um homem de coração nobre.
    Observar e contextualizar a vida do próximo, remetendo a sua própria vida, é para poucos. Parabéns pelo belo texto e tema.
    Geraldo Leao

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