Tudo aquilo que o ser humano ignora não existe para ele. Por isso, o universo de cada um se resume ao tamanho de seu conhecimento, dizia Einstein.
Luiz, 4 anos, e sua irmã Eudócia, 8 anos – minha mãe, tempos depois –, tomavam banho no Rio Paraíba, próximo à casa de taipa e de chão batido onde moravam no Sítio Jacaré, zona rural de Pilar(PB), quando Nina, a irmã mais velha deles, chegou aos gritos:
– saiam daqui, vão embora pra casa que o mundo vai acabar agora!
De repente, o dia começou a escurecer, o calor diminuiu, os pássaros silenciaram, as galinhas buscaram os poleiros e duas crianças em pânico correram assustadas com o que viam.
Luiz se cansou a poucos metros de casa e pediu ajuda à irmã, que o acolheu nos braços. Mas desfaleceu antes que Eudócia pudesse deitá-lo na primeira rede que encontrou.
– José, corre aqui que Luiz desmaiou! – gritou Carmelita para o marido ao ver a filha, de olhos arregalados, tentando reanimar o irmão.
José, que ordenhava no estábulo, chegou depressa, examinou o filho desacordado e balançou cabeça.
– Adianta não. O menino tá morto. O que aconteceu, Doça!?
– Foi Nina, pai! Luiz me chamou para buscar ovos de guiné na beira do rio e depois tomar banho. Ela chegou dizendo que o mundo ia acabar... começou a escurecer...
– E aí?
– Luiz começou a tremer. E a gente correu pra casa, com medo...
O corpo foi sepultado logo após o médico em Itabaiana(PB) constatar que “coração fraco” fora a causa da morte. Não resistira ao susto com o eclipse solar que a Folha da Noite – diário vespertino que circulou de 1921 a 1959, primeiro jornal publicado pelo Grupo Folha –, assim noticiou em sua edição de 20 de maio de 1947:
“A lua começou a invadir o disco solar às 8 horas, 20 minutos e 6 segundos...
Às 9 horas , 30 minutos e 1 segundo já se sentia a temperatura bem mais baixa e a escuridão já era quase total, impedindo a visão perfeita à distancia de cinquenta metros. Pouco depois surgiram as primeiras estrelas ante o entusiasmo curioso dos locutores e jornalistas que pela primeira vez puderam observar com uma perfeição indescritível o espetáculo que a natureza lhes oferecia.
O eclipse total começou às 9 horas, 34 minutos e 8 segundos. O globo solar ficou inteiramente coberto, observando-se sobre o firmamento um resplendor impressionante, como se houvesse um grande luar sobre o horizonte visual. A temperatura no primeiro minuto do eclipse baixou a 19 graus centigrados. Às 9 horas e 38 minutos começou a clarear rapidamente, notando-se então os contornos dos corpos sobre o solo, à medida que a lua foi baixando...”
De volta ao Sítio Jacaré, José estava enfurecido. Desceu do cavalo, tirou o cinturão das calças e deu a maior surra que Nina levaria na vida para que nunca mais assustasse aos irmãos daquele jeito. E ainda alertou outra filha, que a tudo assistia:
– Você abra o olho e deixe de fazer medo a Doça, ouviu?
Essa outra irmã vivia ameaçando colocar um “colar” de caçotes – pequenos sapos amarrados pelas pernas – no pescoço de Eudócia ou uma bacia de baratas na rede em que ela dormia. Morria de inveja da sobrinha preferida das tias que moravam “na cidade”.
Semana passada quis saber de Eudócia, agora com 80 anos, 24 netos e 23 bisnetos, qual teria sido a reação de minha avó Carmelita, “Mãe de Jacaré”, ao receber a notícia de que o filho estava morto, naquela manhã há 72 anos.
– Chorou, mas quase todo ano morria um anjinho, meu filho. Doía mais quando já era crescido, como Luiz – respondeu.
Eu nasci 11 anos depois que o mundo acabou para Tio Luiz. Não pude ouvir a sua voz me dizendo coisas como: “Deus te abençoe, meu sobrinho!”
Se hoje lhe pedir notícias do mundo de lá, como na canção de Milton e Brant, talvez me fale sobre dois lados de uma mesma mesma viagem. Que o trem que chega é o mesmo trem da partida e que a hora do encontro é também de despedida. Que todos os dias é um vai-e-vem e que a vida se repete em cada estação. E tem gente que vem só olhar.