quarta-feira, 26 de junho de 2019

Só eu sei


Era tarde demais quando percebi que condenava minha mulher e nossos filhos a sofrerem com os transtornos de sucessivas mudanças ao optar por uma carreira marcada por desafios pelo país afora. Só eu sei o quanto isso mexeu com todos nós.

Poderia ter escolhido outra profissão? Claro. Teria sido melhor ou pior? Não sei. Repito o que escrevi outro dia: ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir. 

Sobrevivemos, todos. Mas só eu sei o quanto pedi a Deus toda noite para que fossem ao meu encontro todas as pedras atiradas pela vida na direção de minha família. E para que nunca nos faltassem o feijão nem o entusiasmo para sonhar com dias melhores. 


Só eu sei da angústia quando mudamos para Salvador, em maio de 1999, após três anos e meio no Recife. Lídia, filha caçula, tinha apenas 14 anos e chorava dia e noite a ausência de pessoas e lugares que foram ficando pelo caminho. 


Doía tanto quanto doeu para seus irmãos mais velhos quando deixamos Maceió pela primeira vez para morar em Brasília, em 1988. Ou quando voltamos para Alagoas numa situação bem diferente daquela que vivíamos – Dona Madalena, minha sogra, já não estava neste mundo. Duas mudanças ainda aconteceriam até chegarmos a Pernambuco, em 1996.

Pouco depois da virada do século, em abril de 2000, já surgiam rumores de que eu seria transferido de novo, agora da Bahia para o Distrito Federal. E o desassossego reaparecia com todas as suas cores e dores.

Foram momentos de aflição em Salvador até que algumas amigas de prédio, escola e igreja convidaram Lídia para um retiro espiritual num fim de semana. Nos dias que antecederam ao encontro religioso, pediram aos familiares que escrevessem algo para reflexão dos participantes.

Eu precisava daquela oportunidade mais do que ninguém. Em uma hora, se muito, lacrei envelope com uma carta que ela guarda até hoje  onde pedia perdão por tanta dor, mesmo sendo inútil, já que não podíamos retroceder o filme de nossas vidas e vê-lo de outro jeito. 

Em minha cabeça, era como se estivesse escrevendo não só para ela, mas para toda a minha família:


“...Perdoe-me por tê-la arrancado tão cedo de Maceió, do convívio com tios e primos, e a levado à distante e seca Brasília.

Perdoe-me por tê-la feito aprender a ler e a escrever, entre ladeiras e cabritos, na chuvosa e feia Porto Calvo.


Perdoe-me por tê-la levado, da noite para o dia, para a calorenta Recife, fazendo-lhe passar por tantos colégios, cadernos e livros.


Perdoe-me por tê-la feito, inesperadamente, largar seus amigos do Colégio Boa Viagem, abrindo no seu coração uma ferida enorme chamada saudade.


Perdoe-me por tê-la trazido comigo para Salvador, sem poder lhe dar a certeza de que nunca mais nos mudaremos.


Perdoe-me por não ser o pai com a vida pacata que você merece e por não saber abraçá-la e beijá-la, todo dia, como prova do amor e do orgulho que sinto em lhe ter como minha filha.


Se depois disso tudo lhe sobrar piedade, minha filha, peça a Deus que me conceda a chance de dar a sua filha – minha neta –,  quando um dia ela chegar, tudo aquilo que não fui capaz ou não pude oferecer a você até aqui.”


No “Desespero da Piedade”, de Vinicius de Moraes – 1913 a 1980 , quis buscar inspiração para tentar aliviar a angústia que descia sobre nós, como uma nuvem carregada, toda vez que os ventos de uma nova mudança varriam a nossa casa.  

Deu certo. Talvez nem tanto pela carta, mas pela conversa que ela deve ter mantido com todos os santos da Bahia no isolamento daqueles dois dias, pedindo que a tempestade passasse o quanto antes.


Mudamos para Brasília meses depois. As lágrimas secaram apenas quando Lídia concluiu o ensino fundamental, formou-se em Medicina, casou e, em 2008, foi morar com o marido bem longe de casa – primeiro, no Rio de Janeiro; depois, nos Estados Unidos –, onde enfrentaria os primeiros desafios de sua trajetória profissional.

Quatorze anos após aquele retiro espiritual em Salvador –  “Dia das Mães” de 2014 – ela nos visitaria em Brasília trazendo numa pequena caixa uma grande notícia: uma chupeta, indício de que sua primeira filha estava a caminho.

Eu só precisava daquele pretexto para aposentar, 40 anos depois de minha chegada no Banco do Brasil, como menor aprendiz. Decidi ali mesmo passar boa temporada com Magdala no exterior, ajudando nossa filha em sua primeira experiência como mãe. 

Era a chance que a vida me reservara de fazer pela neta que chegaria no final do ano, em seus primeiros seis meses de vida, o que não fui capaz ou não pude fazer como pai.

Logo depois do Natal de 2014, via o dia gelado clarear pela vidraça da sala de espera da maternidade do Massachusetts General Hospital, em Boston, quando lembrei  "Esquinas" – canção lançada em 1984, ano em que Lídia nasceu –, composta pelo ex-líder da banda LSD (Luz, Som & Dimensão) que embalou algumas noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida do início dos anos 70, época em que, entre 14 e 16 anos, ainda era cedo demais para perceber o que é que a vida queria de mim.

"...Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei...
Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar! Sabe lá...
E quem será nos arredores do amor que vai saber reparar que o dia nasceu?
Só eu sei os desertos que atravessei. Só eu sei... 
Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar! Sabe lá... 
E quem será na correnteza do amor que vai saber se guiar?
A nave em breve ao vento vaga de leve e traz toda paz que um dia o desejo levou.
Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei... (Djavan)

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Antes que as luzes apaguem

Muita coisa no mundo é estranha demais para acreditar, mas nada é tão estranho que não possa ter acontecido. É ficção parte da história que conto aqui, mas que fique bem claro: a semelhança com a realidade não pode nem deve ser encarada como simples coincidência.

Dizem que alguns hospitais são frios porque espelham a alma de seus donos. Não é por acaso. Há 10 anos, um velho amigo meu conheceu Dr. Jacinto Boa Morte, um desses donos, que se empolgou tanto ao falar sobre suas supostas virtudes como administrador que a soberba lhe escorria pelos cantos da boca.

Esse amigo trabalhava no Banco do Brasil e o hospital pretendia financiar a importação de alguns equipamentos de ressonância magnética. Dias depois, passaria a prestar serviços à Cassi, operadora de planos de saúde hoje com mais de 680 mil assistidos e 75 anos de experiência no mercado. Mudava pro outro lado do balcão.

Quando se conheceram, o doutor jactava-se de que iria estabelecer para o ano seguinte metas de desempenho desde a "porta de entrada" (urgência e emergência). Com isso, iria aumentar receitas e, assim, poder substituir equipamentos sofisticados a cada inovação tecnológica lançada, sem precisar de bancos.

Metas do tipo: de 100 pacientes que buscassem socorro, no mínimo 40 teriam necessariamente que se submeter a exames mais complexos e, desses, uns 10 precisariam de algum tipo de internação. Daí para frente, quatro ou cinco seriam direcionados para a UTI. Com chuva ou sol.

Falava que não havia como os planos de saúde negarem autorização para determinados exames ou procedimentos numa hora crítica. Segundo Dr. Jacinto Boa Morte, familiares de pacientes poderiam ser orientados sobre como obter uma decisão liminar judicial se a operadora questionasse a necessidade de alguma demanda.

Eram reflexos dos vícios incrustados em um modelo obsoleto de negócio — o tal do “fee for service” — que ainda hoje prevalece no país, onde as operadoras de planos de saúde, ao autorizarem qualquer internação, não fazem a mínima ideia do tamanho da conta que terá que pagar mais adiante.

Quantas diárias serão necessárias? Quais equipamentos serão utilizados? A que preços? A cada internação, as operadoras são obrigadas a colocar um cheque "em branco” nas mãos de gente sem nenhum escrúpulo — com honrosas exceções, é claro! — para que desenhe com as tintas que quiser o futuro dos planos de saúde.

Esse desequilíbrio nessa relação puramente comercial, agravado por uma ganância em doses industriais, transforma numa briga de foice no escuro quando, em um lado do ringue, estão planos que amparam empregados de empresas mais estruturadas que sabem fazer contas, como: Banco do Brasil, Petrobrás e Caixa Econômica. 

Alguns mercadores da saúde raciocinam que se as operadoras quebrarem serão prontamente socorridas pelas empresas patrocinadoras, sem qualquer participação dos demais responsáveis pelo custeio dos planos (os associados). "O governo não deixa falir", argumentam, por ignorância, má-fé ou quem sabe as duas hipóteses combinadas.


Mas como evitar que essa autêntica queda-de-braço acabe em fraturas expostas dos dois lados do ringue? No caso brasileiro, talvez a saída mais óbvia seja a integração de toda a cadeia entre operadoras de planos, hospitais, laboratórios e serviços especializados. Negociação caso a caso não funciona, principalmente quando envolve pequenas operadoras de planos de saúde. 

É claro que integrar esses interesses envolve recursos financeiros expressivos. Por isso, a chamada verticalização — quando as operadoras de planos detém participação acionária em hospitais, laboratórios e serviços especializados de oncologia, cardiologia, ortopedia etc. — pode ser algo interessante inclusive para grandes investidores como os fundos de pensão.

Há quem diga ser arriscado investir na indústria da saúde no Brasil, principalmente para quem precisa assegurar benefícios a longo prazo. Mas um único dado destrói esse argumento na origem: o tamanho da demanda reprimida. Hoje, de 210 milhões de brasileiros, menos de 25% possui planos de saúde, segundo dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS). 

Desde a carta de Pero Vaz de Caminha a Manuel I, "o venturoso" rei de Portugal e Algarves, que se diz que o Brasil é o país do futuro. Já passou da hora de esse futuro dar as caras e, quando acontecer, a demanda prioritária de qualquer sociedade emergente — aqui, na África ou na América do Norte — serão cuidados com saúde e bem-estar. 


Óbvio que esses serviços precisam ser tratados como negócio, provendo justa remuneração aos profissionais da área e aos investidores. Seria muito ruim para todas as partes interessadas uma postura de criminalização, que inibiria investimentos e levaria a caos ainda maior do que o atual. 

O que não se admite é que isso se faça fora de limites minimamente aceitáveis. Garantir esse freio é papel da regulação exercida pelo estado, sob vigilância das partes interessadas, com destaque para a razão de ser do sistema: o consumidor, seu beneficiário final. 

Quando se passa dos 60 anos, cada um encara de um jeito o declínio de status social e profissional, a sensação de que o fim está próximo, o luto dos amigos que estão desaparecendo de modo cada vez mais acelerado e, sobretudo, os problemas com a saúde, seja por conta de doenças crônicas, seja porque, feito carro velho de segunda mão, é um problema atrás do outro.


Mas se existe algo em comum que anda deixando todo mundo em pânico, numa enorme barca furada em mar revolto e sem bóia, é o pavor de precisar recorrer à assistência médico-hospitalar e dar de cara com portas fechadas por litígio com o plano de saúde.

Uma década depois, reencontrei meu velho amigo. Ele jura que o remédio para esse mal, como ponto de partida, é juntar quem paga aposentadorias com quem cuida dos planos de saúde dos  mesmos assistidos.  Pelo menos no caso de Previ, Petros e Funcef, maiores fundos de pensão do Brasil. 


Os três juntos, em nome dos planos de saúde e de seus assistidos, com os necessários ajustes estatutários e regulamentares, cuidariam de ter uma conversa estruturada, de gente grande, com quem anda tirando o sono de seus participantes, discussão que certamente poderá trazer desdobramentos para a indústria da saúde como um todo.


Para meu velho e bom amigo, é bom que isso ocorra antes que as luzes apaguem e muita gente adormeça. Profundamente. 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Que Maravilha!


Ninguém sabe como Sebastião, motorista contratado para aquela viagem, conseguiu transportar toda a família — pais, sete filhos e malas — numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1300 km de estradas de lama e poeira que separavam Patos, Sertão paraibano, de Colinas, Oeste maranhense. 

Fato é que, em junho de 1967, chegávamos todos em paz ao sítio “Maravilha”, zona rural de Colinas, onde viviam meus avós paternos, Mãe Sussú e Pai Simente. Jornada épica com arremate de cinema, diga-se de passagem: em trecho esburacado e íngreme a uma légua do destino, mãe e filhos menores foram obrigados a fechar o percurso no lombo de jumentos.


Foram dias maravilhosos, literalmente. Lembro de um fim de tarde em que meu avô, sentado numa cadeira de balanço à porta de casa, quase morreu de um susto. Tio Marcelino, que, além de agricultor, preparava fogos de artifício para festas religiosas — com o auxílio do irmão, tio Leó , deixara próximo à janela dezenas de tubos de papelão cheios de pólvora, enfileirados como pirulitos num tabuleiro. Curioso, achei de encostar um fósforo aceso no estopim de um deles para ver o que aconteceria.

Mãe Sussú
Foguetões subiram assobiando e explodiram no céu, ofuscando o brilho das primeiras estrelas da noite. Mãe Sussu e meus pais, que raspavam os pratos com saudade de “Maria Isabel” — arroz puxado no alho com carne de sol picada —, correram e ainda me encontraram no local da estrepolia com cara de quem, assombrado, não teve tempo para fugir nem sabia do risco de misturar a estiagem, o fogo e a palha que cobria todas as casas do sítio.

O abraço carinhoso de Mãe Sussú, sob o olhar compreensivo de Pai Simente, livraram-me de uma surra exemplar pela traquinagem. Nem "de castigo" fiquei. Neto é neto no coração dos avós, com ou sem o beneplácito dos pais.

Na manhã seguinte, meu primo Bento admirou-se da balinheira  (estilingue, atiradeira ou baladeira) que eu havia trazido de Patos. A “arma” que ele usava também era poderosa: bodoque caiçara, arco de madeira com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Mas havia algo em comum entre nós, além do sobrenome: o propósito de extinguir a espécie Columbina squammata, as coitadas das rolinhas “fogo-apagou”.

O encanto pelo brinquedo do vizinho nos fez trocar as “armas” e o que se viu nos dias seguintes foram polegares e indicadores duramente castigados na aprendizagem recíproca. Esfolamos os dedos e não conseguimos acertar as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Deus nos poupou de carregar pro resto da vida o remorso pelo abate dessas criaturas tão inocentes quanto as crianças que éramos.

Mais adiante, endoideci ao conhecer uma casa de farinha. Após a colheita, tiravam a casca e lavavam a mandioca, antes que fosse ralada até virar massa. Depois, a massa seguia para uma prensa onde era espremida e extraída toda a água. Feito isso, era peneirada para a extração de impurezas. O que sobrava seguia para uma grande chapa para ser mexida no fogo até virar farinha seca e torrada.

Os adultos não me explicavam direito porque não queriam a minha ajuda para ralar mandioca ou para mexer farinha na chapa quente, atividades para as quais achei que levava jeito e poderia executá-las muito bem, apesar dos nove anos de idade. Há pouco tempo fiquei sabendo que a casa de farinha não existe mais. Teria sido praga de alguma criança contrariada? Minha, não foi! 

Como esquecer os bolinhos fritos de farinha de arroz que comíamos com café coado? E das várias redes de algodão espalhadas pela casa, onde o "dono" de cada uma delas, depois que as lamparinas apagavam, só era identificado pelo par de chinelos? 


Diziam que próximo à "Maravilha" havia um olho d'água onde algumas mulheres, após lavarem trouxas de roupas e fiéis à ascendência indígena, tomavam banho como vieram ao mundo. Nunca me deixaram conferir se aquilo era verdade ou não. 


Chegava a hora de voltar pra casa. Por falta de espaço no bagageiro, fui obrigado por meu pai a deixar o bodoque caiçara.  Faríamos escala em Caxias, próxima à fronteira com o Piauí, onde ele morou antes de migrar para a Paraíba para trabalhar no Banco do Brasil. Lá ficaríamos na casa de meu tio e padrinho Enoch, um de seus irmãos mais velhos, que o levou da "Maravilha", ainda criança, para estudar. Também iríamos rever tias Antonia, Cristina e Vitória.  

Já sentia dor de cabeça e febre alta quando chegamos em Caxias. Era sarampo. Assim como havia acontecido nas temporadas de catapora (varicela) caxumba (papeira) e coqueluche em anos anteriores,  pegou também meus seis irmãos. Para a molecada, havia o lado positivo de adoecer: era possível tomar refrigerantes, leite em pó, comer maçã e biscoitos à vontade, com uma mãe zelosa por perto.

Todos recuperados em pouco mais de uma semana, na hora da partida minhas primas Eliane e Eline, filhas de Tio Enoch, apareceram com febre. Ele, espirituoso como poucos, sorriu para o irmão e a cunhada, meus pais, e os ameaçou em tom de galhofa: “ano que vem, quando eu for conhecer a Paraíba, vou levar bexiga!”

A bexiga (varíola) era uma doença infectocontagiosa provocada por um vírus descoberto quando cientistas notaram que uma múmia, que viveu entre 1550 a 1307 a.C., apresentava vestígios. Essa descoberta deixava claro que a varíola, mais que a peste negra ou a tuberculose, afetou a humanidade por séculos e séculos.

Surgiam em todo o corpo bolhas cheias de pus que coçavam, provocavam dores intensas e não desapareciam sem deixar cicatrizes feias. Isso sem falar no risco de cegueira quando a córnea era infectada ou de morte por broncopneumonia, com o comprometimento do sistema imunológico.

A doença só foi controlada após 1967, graças a uma série de programas implementados pela Organização Mundial da Saúde em diversos países. Até ali, a imunização no Brasil era bastante precária, inclusive porque a vacina só se mantinha ativa em baixas temperaturas, o que exigia o uso de geladeiras, coisa difícil nos anos 50 e 60, sobretudo no Norte e Nordeste.


Crianças vacinadas, livres da bexiga (varíola), em 1968 migrávamos para Alagoas, onde nasceriam mais duas: Kléber e Dayse. Seis anos depois, Mãe Sussú ficou bastante comovida ao receber no Maranhão os caçulas de seu querido filho Agostinho, que falecera em 1972 e não pôde acompanhar de perto o desenvolvimento deles. 

Mãe Sussú, com sua missão encerrada, em 1988 também partiria ao encontro de Pai Simente e dos filhos que se foram antes da hora, deixando em pedaços o seu imenso coração.


O mundo daria diversas voltas depois daqueles dias inesquecíveis em junho de 1967. Semana passada tia Cristina me contou que, hoje, "Maravilha" já dispõe de energia elétrica, poço artesiano e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas até com com TV a cabo. 


O mundo mudou, mudamos todos, todo dia, o dia todo. O tempo que passou, passou. Só não quero — nem posso!  apagar as cores, os cheiros e os sons da "Maravilha" de Mãe Sussú e Pai Simente guardados numa gaveta que existe em mim e que a saudade, vez por outra, me pede para remexer. 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Vai um pastel aí?


Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas.

Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui.

Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo.

Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília. 

O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma hora me fez refletir sobre o breve sopro que é a vida.  Não nos manda aviso-prévio do seu fim nem nos prepara para quem iremos deixar por aqui.


Praticamente reduziu a zero o chamado peristaltismo intestinal – movimentos involuntários que ajudam o trânsito do bolo alimentar durante a digestão – e em minutos instalou-se o que os médicos chamam de Geca (Gastroenterocolite aguda).

Mesmo sonolento, ainda deu para ouvir rápido cochicho entre dois deles, ambos com semblantes carregados:
– O que achou da Geca? Será que foi salmonella?– indagou o primeiro.
– Não estou ouvindo sinais de luta... – respondeu o outro...

Como ainda me restavam traços de humor, quis perguntar mas faltou coragem: haveria algum conflito ideológico entre meus órgãos internos? Ou entre cantoras de uma dupla sertaneja de quem nunca ouvira falar? Geca fazia a primeira ou a segunda voz? Nada disso! Apenas um jeito, no dialeto deles, de dizer que não havia  “nó nas tripas”.


Endoscopia, ultrassonografia e tomografia foram realizadas para afastar a hipótese de problema mais grave, como tumor ou coisa parecida. Mas a barriga não parava de distender, a cara amarelava, as mãos e os pés gelavam...
– Vamos ter que transferir o senhor pra UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório – disse alguém.

O silêncio e a penumbra gelada dos corredores até a UTI meteram em minha cabeça um punhado de interrogações. O que me restava de lucidez alertava que a vida, esse "jogo de culpa que faz tanto mal" – como diria Gonzaguinha – , estava perto do fim. 

Nunca havia deitado numa maca nem para deixar campo de futebol e a primeira vez, poderia ser a última. Era meu corpo carente admitindo que sim – claro, poderia acontecer! –, mas minha alma, inconformada, gritando que não.

Deu para perceber que alguns familiares e amigos chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel de carne moída e azeitonas era capaz de fazer com um cidadão em plena forma, no esplendor de seus 50 anos. 

Ouvi gemidos, gritos e lamentos de outros pacientes enquanto me instalavam monitores, até chegar um moleque com 20 e poucos anos, barba por fazer e jaleco amassado – intensivista estagiário, creio – e me enfiou goela abaixo um catéter que achei que fosse vazar na outra extremidade. 

Santo remédio! Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em poucos minutos, já me sentia bem melhor, levantei e fui ao banheiro tomar um banho restaurador.

Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, para desanuviar o recinto, disse em tom de pilhéria, óbvio:

– O pior aconteceu... Ele vai sobreviver! 

Passei ainda a noite inteira com uma sonda nasogástrica no pré-sal de minhas vísceras, sugando tudo o que o desgraçado do agente causador havia feito para impedir que eu testemunhasse o crescimento de meus netos.

De alta hospitalar 72 horas depois, passava em frente a uma lanchonete quando a balconista, quem sabe comovida com minha cara de fome, mas sem saber de meus antecedentes intestinais, quis ser gentil:

- Vai um pastel de queijo ou carne moída aí, moço?

Devo confessar que recusei a contragosto. Minha família me internaria – noutro tipo de hospital, certamente! – se soubesse que ainda cogitei provar a iguaria. Mas era só uma mordidinha de leve, na casca. Nem atrapalharia o almoço.


Há mais de 10 anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite com salsinha mal lavada que me estragou aquele fim de semana. Pastel é do bem! Não faria uma crueldade dessas com um velho admirador. 


quinta-feira, 30 de maio de 2019

Agora sou do tamanho do que vejo



De cócoras, fumando um cigarro de corda ao lado dos caçuás de inhame e mangas-espada que trouxe do Sítio Jacaré, na cangalha de sua besta, para vender na feira livre de Itabaiana, Tio Olívio apontou para a Matriz de Nossa Senhora da Conceição e comentou com sua irmã, Tia Creuza:
– Pode ter igual mas duvido que tenha igreja no mundo maior do que essa aí?

Ninguém traduziu de forma tão clara o que Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) quis dizer no poema "Da minha aldeia", no livro “O Guardador de Rebanhos”:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”

Meus tios praticamente nunca deixaram o Sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde seus bisavós, avós e pais nasceram e se criaram. Plantavam frutas, legumes e verduras; engordavam novilhas e porcos e criavam galinhas e guinés.

Vendiam aquilo que não consumiam para poder comprar o que não extraíam da terra: açúcar, café, sal, roupas. Lápis, cadernos e livros nunca foram prioridades.

A mesma história de vida de tanta gente. A maioria dos pequenos produtores rurais brasileiros habitavam e desenvolviam suas atividades econômicas em pequenas propriedades, com mão-de-obra familiar. 



Essas terras, quase sempre, não dispunham de recursos tecnológicos como máquinas agrícolas, ordenha mecânica, adubos e fertilizantes. Nem tampouco técnicos, como agrônomos e veterinários. 

Ainda assim, 70% do alimento que abastecia a mesa dos brasileiros vinha desses sítios. Grandes propriedades costumam exportar sua produção, mesmo porque exploram culturas que não participam do "pão nosso" de cada dia-a-dia: algodão, soja, sorgo, dentre outras.

Voltamos ao Tio Olívio. Ele morreu por conta de um câncer de próstata. É provável que não tenha visto necessidade do toque retal que eventualmente algum médico lhe propôs. “Carece disso não, doutor, estou bem. Onde já se viu?!” – pode ter dito.

Deixou um filho, que foi abandonado pela mulher que o pariu – típico caso de "toma que o filho é teu!" – assim que veio ao mundo. Dona Eudócia, minha mãe, acabou cuidando dele, em Alagoas, como se fosse sua décima cria. 

Tia Creuza
Tia Creuza nunca quis casar nem ter filhos. A vida inteira ajudou aos pais e, em seguida, a Tio Olívio, que assumiu as rédeas do Sítio Jacaré. Vive agora um tanto solitária, nem alegre nem triste. Para ela, Deus quis que seu inseparável irmão fosse primeiro. 

Tios Olívio e Creuza nunca precisaram de paletó, gravata ou tailleur para conseguir o suficiente para sobreviver em paz. Nunca dormiram preocupados com o fechamento do balancete no final do dia ou com a reunião das nove da manhã seguinte. Nem mascaravam sentimentos para agradar ninguém.

Ao refletir sobre tudo isso, penso que minha vida poderia ter sido mais simples. Eu deveria ter me inspirado mais do jeito de ser de meus tios todas as vezes em que desejei ter mais do que aquilo que me bastava. Ou quando quis algum poder a mais do que tive, na falsa ilusão de que faria meu trabalho melhor do que fiz.

E se fosse diferente, teria sido melhor? Nunca se sabe. Desde que não me faltassem bom plano de saúde, sólido fundo de aposentadoria, ar condicionado na hora de dormir, notebook, livros e, acima de tudo, netos para me convencerem de que ainda estarei por aqui depois que a "festa" acabar. 

"...Temos, todos que vivemos,
uma vida que é vivida
e outra vida que é pensada.
E a única vida que temos
é essa que é dividida
entre a verdadeira e a errada..." 
(Fernando Pessoa)




quinta-feira, 23 de maio de 2019

Estrelas nem sempre brilham


Nem Sivuca, Dominguinhos e Gonzagão, com seus contatos celestiais, conseguiram evitar o aborto do que poderia ter sido mais uma estrela a brilhar na constelação da música instrumental brasileira. Pena!

Nezin dos Anjos andava exultante. Depois de mais de três décadas de trabalho em um grande banco, havia aposentado e iria realizar o sonho de sua vida: aprender a tocar sanfona para poder cantar o melhor da discografia de seu ídolo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião.


Amarrada por barbantes, uma velha mala chamava à atenção na esteira do aeroporto em Brasília: continha uma Scandalli de 80 baixos seminova, verde, adquirida em Maceió. Nezin se atracou rapidamente com seu pacote e apressou sua mulher Lacinha que, suando em bicas, borrava a maquiagem a carregar o restante da bagagem. 

Dia seguinte, escorado no método de acordeão Mário Mascarenhas, já apalpava as primeiras teclas do instrumento quando recebeu um telefonema de Cabeção, ex-chefe e velho amigo, querendo saber como estava seu "dolce far niente"

Nezin disse que andava se sentindo leve, outra pessoa. Falou do bem que lhe fizera a visita aos familiares em sua terra natal e da expectativa de poder, finalmente, realizar o antigo desejo de aprender a tocar sanfona. Queria mostrar pros amigos que existem sutis diferenças entre baião, forró pé-de-serra, xaxado e xote.


Só não imaginava o que alguns ex-colegas de trabalho (Pacheco, Bené e Tonha) seriam capazes de fazer com a informação ingenuamente fornecida sobre sua meta para os próximos meses.

Na tarde daquele mesmo dia, devidamente pautado, Pacheco ligaria para Nezin (de telefone fixo para fixo, para escapar do identificador de chamadas), modificando a voz ao puxar pelo sotaque carioca para não ser reconhecido:
– Mermão, na moral, você não vê que essa parada tá enchendo o saco dos vizinhos aqui no prédio?! Todo mundo tá ficando meio bolado.
– Me desculpe... Tô começando a tocar hoje. É meu primeiro dia...
– Caraca, você chama isso de tocar? Procure uma escola, pô!
– Desculpe... 

Outra ligação não demorou meia hora, agora do gremista Bené, que também disfarçou a voz:
– Mas bah, fiquei sabendo pelo carioca do 305 que tu andas tocando gaita aqui no prédio. Isso é trilegal, tchê!
– Mas ainda estou aprendendo...
– Que nada, tchê! Deixe de modéstia! Que tal no próximo sábado irmos pro salão lá na cobertura, de bombacha, chapéu e lenço no pescoço, assar uma costela e tocar alguma coisa de Borguettinho?
– Mas eu ainda não sei tocar... Nem acabei a primeira lição...

De noite, Nezin procurou Cabeção, que fez “cara” de surpresa, claro! Preocupado com o rumo dos acontecimentos, contou ao amigo o que se passava:
– Ainda bem que joguei duro com aquele carioca do 505! Fui logo dizendo pra ele: aqui na minha casa, mando eu. Não vou parar de tocar de jeito nenhum!
– Sei... sei...
– E amanhã, logo cedo, vou dizer pro gaúcho: nada de churrasco no sábado! Só quando estiver me sentindo à vontade com a sanfona... O que você acha?
– Certíssimo, Nezin, bote para quebrar com essa gente! Onde já se viu querer se meter na vida alheia! Acha que de Minas pra cima só tem besta!

Mais confiante, Nezin retomou os estudos no dia seguinte, logo após o café da manhã. Só parou pra descansar quando Lacinha serviu o almoço. Mas antes da primeira garfada, o telefone tocou novamente: era Tonha, mineirinha muito ligada às práticas religiosas, também do “grupo teatral”, com sua fala caipira.
– Ó, moço, tô sabendo que meu marido ligou procê ontem. Doidimais! Ele é folgado como todo carioca, mas tá ficando pior depois de velho!
– Não tiro a razão dele, minha senhora. Eu ainda não toco direito. Deve tá muito chato me ouvir nesse começo...
– Procevê, ele não gosta de música e saiu de casa dizendo que vai reclamar no síndico... Ai que vergonha que tô dele... Podeixá que resolvo isso assim que voltar da igreja!

Nas 48 horas seguintes aconteceram mais uns dois ou três telefonemas dos envolvidos, cada qual torrando ainda mais a paciência do esforçado aprendiz, que a esta altura era o retrato do desencanto com o universo musical.

Fulo da vida, Nezin chamou Lacinha e os dois filhos na sala de jantar, tomou o Rivotril do dia, abraçou o instrumento e decretou em alto e bom tom:
– Se for preciso, a gente muda daqui! Eu vendo esta bosta deste apartamento mas não vendo minha safona!

Só no terceiro dia, ao tomar conhecimento da "performance do grupo teatral”, Vera, mulher de Cabeção,  cobrou do “diretor da peça” que acabasse com aquela molecagem, poupando o coração do velho amigo.

Cabeção relutou. Queria que a “peça em cartaz" pelo menos por uma semana, inclusive com a introdução de novos personagens, mas acatou o pedido e ligou para Nezin:
– ... É tudo brincadeira da turma, sem maldade. Eu, Pacheco, Bené e Tonha... Aconteceu assim, assim... Mas como Vera gosta muito de você, pediu pra gente parar.

Nezin, que estudava bem baixinho para não incomodar a vizinhança, emudeceu com o que ouviu e desligou o telefone, antes de explodir na gargalhada. Em seguida, largou a sanfona no sofá, foi ao banheiro, sentou sobre a tampa do vaso e, aliviado, gozou da imagem que viu no espelho:
– Tu és um nezin mesmo, hein?!

Logo depois lembrou que precisava ligar com urgência pro Correio Braziliense e pedir pra cancelar o anúncio de venda do apartamento que mandara publicar. Balançou a cabeça conformado quando abriu uma cerveja pra relaxar, ligou o som e a primeira canção que escutou foi “Amigo é pra essas coisas”, interpretada pelo MPB-4.


Lacinha, que havia saído para comprar umas pamonhas pro lanche do final da tarde, mal abriu a porta de casa e o marido contou a novidade:

– Mulher! Que Nossa Senhora me defenda dos amigos, que dos inimigos me defendo eu... 

Há quem diga que Nezin empacou de um jeito que não mais quer saber da sanfona, embora jure de pés juntos que "não dá, não vende nem troca". Os amigos, velhos parceiros de copo e de cruz, não acreditam nisso! 


Que ninguém se surpreenda se qualquer dia desses ele deixar a moita onde ensaia escondido e brilhe como um dia cintilaram Sivuca, Dominguinhos, Gonzagão... e até mesmo a estrela solitária do Botafogo.


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Memória de minhas surras tristes


Apanhar de cinturão tornou-se uma experiência inesquecível para mim. Não apenas pela dor física, mas porque nenhum de meus irmãos apanhava tanto quanto eu e isso abalava a confiança que deveria haver em quem me batia.

Não se falava em "bullying" no Sertão da Paraíba nos anos 60. Se muito, em menino buliçoso, danado. Meu passatempo favorito naquela época, não nego, era torrar a paciência dos irmãos mais novos com apelidos, caretas  e cutucadas nos redemoinhos de cabelo do topo da cabeça deles. Por isso, imagino, apanhava tanto.

Não devia ser fácil para meus pais, sobretudo aos sábados e domingos e durante as férias escolares, manter o sossego numa casa com sete filhos entediados (os últimos nasceriam em Alagoas), todos com menos de 10 anos, a arengar do jardim ao quintal disputando brinquedos, a abrir e fechar a geladeira ou o filtro d'água na cozinha.

Levei tantas surras que aprendi a retaliar com pequenas maldades. Na única vez em que testemunhei uma discussão mais áspera entre meus pais, havia experimentado mais uma, logo cedo, por um motivo besta qualquer. À noite, antes de dormir, minha mãe costumava checar se estava tudo em ordem nas redes em que os filhos dormiam. Ao vê-la entrar no quarto, arranquei a casca de uma ferida antiga, o suficiente para brotar um filete de sangue no joelho e tingir de encarnado o lençol.
– Acorde, meu filho, o que é isso? – alarmou minha mãe.
– Foi a fivela do cinturão de papai.  – respondi, descaradamente fingindo dor e sono.
O coitado ainda tentou argumentar que não era doido a ponto de bater no filho com a fivela, mas, em voz alta, ela disse por mim tudo aquilo que eu não ousaria dizer, sob pena de mais uma pisa memorável.

Já havia sido castigado uma vez por conta de minha curiosidade sexista. Aos cinco anos, no Jardim da Infância do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB), não sabia se freira era homem ou mulher. Irmã Priscila não pintava unhas, não usava batom como minha mãe, nem tampouco se tinha ideia do tamanho de seus cabelos. Resolvi tirar a dúvida lhe puxando o véu e minha saliência foi devidamente punida quando cheguei em casa. 

Outra surra inesquecível aconteceu numa manhã de domingo. Ao tentar escapar para não levar mais chibatadas, pisei de propósito dentro da lata de lavagem – sobras de comida estocadas ao ar livre, no quintal, para alimentar os porcos de uma vizinha – e corri para a sala de jantar, lambuzando tudo, para desespero de minha mãe que acabara de limpar o chão. E ainda existe quem duvide se crianças conhecem estratégias de manipulação psicológica.

Como a crônica de mais uma surra anunciada, ficaram na memória algumas sentenças:
– Vou contar pro seu pai quando ele chegar do trabalho, ouviu?
– Se correr vai apanhar mais, cabra safado!
– Não quero escutar nem mais um pio, ouviu?
– Se apanhar na rua dos moleques, vai apanhar de novo em casa!

Eu me perguntava até virar adulto: por que meu pai, cidadão de bem, amante de livros, cinema e música, que nunca sofrera um beliscão ou puxão de orelhas sequer de Tio Enoch – irmão mais velho com quem morava em Caxias(MA) –, recorria a cinturão de couro para "educar" os filhos? Logo ele, meu primeiro ídolo, referencia em quem me espelharia pro resto da vida! 

Não chegamos a conversar sobre o assunto depois que cresci. Morreu antes. Jurei a mim mesmo que faria diferente quando chegassem os meus filhos: nem palmadas na bunda. Parece que deu certo.

Se ele soubesse dos "pequenos saques" que eu fazia na bolsa de minha mãe para poder ajudar na compra de camisetas e bolas dos times da Rua Bossuet Wanderley, em Patos(PB), por exigência dos moleques mais velhos da vizinhança, aí sim é que teria motivos de sobra para umas boas lapadas no meu espinhaço. Não sabia.

Também não sabia dos banhos e das pescarias na “Ilhota” e na “Terra Cavada”, no Rio Mundaú, em União dos Palmares (AL), quando acabei "íntimo" da ancilostomíase (amarelão) e da esquistossomose (barriga d’agua, doença do caramujo). Se soubesse, é provável que o couro de minhas costas ficasse bem mais curtido.

De tudo restou a certeza de que a maior parte das surras que levei aconteceu por motivos banais, sem maior gravidade. Meu pai nunca soube dos mais sérios, inconfessáveis e obscenos. 

Mas não conseguiu da última vez que tentou. Em 1971, com quase 13 anos,  no primeiro golpe eu segurei firme na outra extremidade do cinturão e o puxei com força. Ao perceber que o filho já era taludo o bastante para não mais apanhar, desistiu.

Após a sua morte, um ano depois, virei adolescente impulsivo e sonhador, porém embrutecido e irascível. Nunca cogitei experimentar drogas, mas passei a fumar cigarros e a beber até cachaça com os amigos da Gruta de Lourdes, bairro em que morava, em Maceió(AL).

Quando jogava futebol, se em qualquer disputa levasse uma pancada ou me sentisse ameaçado, reagia, de forma desproporcional, a chutes e murros. Arrepender-se em seguida não me impedia de repetir a dose no próximo racha, só violência onde deveria haver apenas diversão e prazer.

Era tão atormentado que certa noite – Carnaval de 1975, no Iate Club Pajuçara, aos 17 anos –, depois de uns goles de cerveja, apavorei a namorada ao lhe dizer que iria procurar confusão. Saí esbarrando em um e outro até o tempo fechar e alguém partir para o revide me arremessando um copo com gelo. 

Se o mundo fosse justo, na melhor das hipóteses eu deveria ter sido expulso do clube naquela madrugada. Não fui porque, de forma autoritária e cretina, me identifiquei aos agentes de segurança na base do “você sabe com quem está falando?”:
– "Peraí, pô"! eu sou funcionário do Banco do Brasil!

E a estupidez em carne e osso quase joga no lixo o pouco que havia conseguido na vida até ali, ao usar em vão o nome da empresa que lhe acolhera como Menor Aprendiz havia nove meses. Quanto ao rapaz que ao jogar o copo com gelo apenas revidara uma agressão gratuita e imbecil, acabou retirado à força do clube. 

A poeira só tomou assento entre 1976 e 1977, quando me tornei estudante de Economia, funcionário de carreira do Banco do Brasil, marido e pai. Cansados, os bichos que me atormentavam caíram em sono profundo. Ainda bem.

Como um rio no rumo do mar, a vida seguiu adiante. Se hoje meu pai aparecesse na porta de minha casa, quem sabe me diria:
– Lembra quando eu lhe batia de cinturão? Me perdoa! Você não tinha culpa de nada do que se passava comigo.
– Faz tanto tempo, pai. Já esqueci. Senta e vamos tomar um vinho. Daqui a pouco seus bisnetos chegam por aqui...


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Vidas reinventadas


O que nos diferencia de outras criaturas do reino animal é a capacidade de lidar de forma criativa com os problemas do dia a dia. A eterna insatisfação com o que temos em mãos nos leva a descobrir novas ferramentas, novos materiais e objetos, que reinventam a todo instante o jeito como vivemos. Para o bem e para o mal, claro.

Foi assim que apareceram alguns inventos que mudaram bastante a vida do ser humano na face da Terra: roda, vidro, papel, eletricidade, fotografia, lâmpada, plástico etc. Mas poucos foram tão importantes quanto o que junta algumas dessas descobertas e inventa o cinema.

Importante porque o homem não evoluiu apenas provendo suas necessidades materiais. Cultivou também desde as cavernas o hábito de ouvir e contar histórias, inclusive através de pinturas. Vem daí o gosto por ler e escrever textos, ver filmes e até mesmo disseminar "fake news" nas redes sociais. Há gosto pra tudo.

Não sou cinéfilo. Por preguiça, reconheço, não cheguei a ver metade dos filmes que gostaria de ter visto, mas confesso que alguns mudaram meu jeito de enxergar o mundo e toda vez que isso acontece, preciso convencer pelo menos meia dúzia de pessoas a assisti-lo e me dizer depois sobre o que viram. Me faz bem.

Foi com esse espírito, há 20 anos, que procurei numa videolocadora um antigo filme com o qual sugeri uma reflexão coletiva sobre o propósito do Banco do Brasil e o sentido do trabalho diário de seus funcionários nas cidadezinhas do interior, junto a pequenos empresários urbanos e produtores rurais. Parecia um daqueles filmes de sala de espera de dentista. Não era, nunca foi. 

Queria conversar sobre planejamento de atividades, mas sem o rigor acadêmico. Juntei então numa sala vários gestores no final do ano, em Pernambuco (1998) e na Bahia (1999), e compartilhei com eles “A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life)”, um dos clássicos hollywoodianos mais inspiradores.

Naquele filme – produzido em 1946 de forma absolutamente franciscana, quando comparada às megaproduções de hoje –, um candidato a anjo chamado Clarence (Henry Travers) desce do céu com o desafio de convencer George Bailey (James Stewart) a não se matar. Se conseguisse, ganharia finalmente suas asas.

George, nascido e criado na cidadezinha de Bedford Falls, abrira mão do sonho de estudar, viajar e conhecer o mundo para cuidar do banco hipotecário de que seu pai era sócio até falecer em pleno trabalho, vítima de infarto fulminante.

O Sr. Potter (Lionel Barrymore), todo poderoso da região, provoca a insolvência do banco com manobras desleais para, no passo seguinte, tentar comprá-lo “na bacia das almas”. George não aguenta a pressão e, prestes a falir, deprimido, resolve antecipar a própria morte. 

Louco por um par de asas, Clarence tenta convencê-lo a desistir do suicídio falando de sua importância na vida de muita gente. Não consegue com argumentos. Resolve então mostrar em flashback como seria a vida se George não fizesse parte dela. Imagens sempre dizem mais que palavras.

A partir daí acontecem várias situações que nos induzem a uma reflexão sobre como seria a vida se não estivéssemos por aqui, passando uma temporada incerta, com todos os nossos vacilos por pensamentos, palavras, atos e omissões. No mínimo, instigante.

Não quero frustrar a expectativa quem não viu o filme e pretende assisti-lo. Mas posso assegurar que várias pessoas lembram até hoje do que balançou dentro delas não só no sentido profissional, no ambiente de trabalho, no universo em que viviam, mas também nas relações com cara-metade e filhos.

"Num filme, o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação" (Charles Chaplin). Todos nós temos na memória  pelo menos três ou quatro filmes que, ao vê-los pela primeira vez, mexeram no que estava quieto, adormecido.

Feito o mar, a vida desperta e se reinventa em ondas depois de um filme inspirador. Nem precisa pipoca e refrigerante.