quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Juntando os cacos

Há menos de três semanas ela e eu traçávamos planos modestos para a noite de Natal de um ano pra lá de medonho, ano que não acabará tão cedo em nossas cabeças torturadas pela agonia de cada dia.

Tudo dentro do que planejamos, comida apenas para um casal resignadamente confinado há nove meses: frango com recheio de quatro queijos, arroz de lentilhas, cuscuz marroquino e batatas ao murro. Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, diante de nossa ceia de Natal, tocados pela esperança de que duas picadas em cada um de nós possam redesenhar este cenário com cores, sons e cheiros diferentes no ano que vem. 

Nem a pressa ditada pela fome de quem almoçara ao meio-dia me impediu de, antes da primeira colherada, esquentar os pratos no forno por volta de nove da noite. Enquanto isso, conversávamos com filhos e netos debruçados nas janelinhas do aplicativo de encontros virtuais dos dias de hoje, satisfazendo, no que possível (imagem e som), o desejo de revê-los em carne, osso e pele.

 


O celular me alertou de que, rapidamente, transcorreram quinze minutos. Entretido na prosa, demorei-me, se muito, mais dois ou três minutos, certo de que nada de relevante aconteceria em tão pouco tempo. Esqueci de que havia preaquecido o forno, a 200 graus centígrados. 

 

De luvas, ao retirar os pirexes, o primeiro deles explodiu em minhas mãos, espalhando frango, molho, queijo derretido e estilhaços de vidro de tudo que é tamanho sobre o que havia nos arredores: outros pratos, fogão, pia, chão da cozinha, da sala de jantar, além de minhas canelas cada vez mais finas e lisas.

 


Não sou bombeiro nem especialista em resistência de materiais, mas creio que a causa provável do estouro tenha sido o acúmulo de gordura fervendo num dos lados do recipiente, que estava desequilibrado na única prateleira do forno. A roldana da segunda prateleira quebrou-se há três ou quatro meses e resolvi não consertá-la, por enquanto, para evitar terceiros na bolha asséptica em que se transformou o apartamento na quarentena. Quando chacoalhei e quis distribuir o molho no refratário como um todo, devo ter provocado um choque térmico. 

Na hora, me veio à cabeça tentar dar um jeito na situação e aproveitar o que fosse possível de nossa tão cheirosa e esperada ceia de Natal. A julgar pela aparência crocante do frango borbulhando no chão da cozinha, eu não via a menor chance de ali existir ativo o já nem tão novo coronavírus. Logo, quem sabe fingindo que nada ocorrera...

 

Mas existiam cacos de vidro por todos os cantos no raio de dez metros do epicentro da explosão, inclusive em meus pés onde brotavam gotas de sangue. A primeira providência de minha mulher foi passar água e sabão nos ferimentos, seguidos de algodão e desinfetante. As luvas que eu usava certamente me protegeram de ter que ir a um hospital para suturar algum corte mais profundo, com todos os riscos de contágio que nos assombram nestes tempos traiçoeiros e sombrios.

 

Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, tivemos que nos contentar com as sobras requentadas do almoço, com o nada luxuoso reforço de algumas fatias de pão com manteiga na chapa. Era o que tínhamos para o jantar, isso duas horas após intensa atividade braçal-natalina à base de vassoura, pá, aspirador de pó, água sanitária, desengordurante, pano, rodo e alguma paciência que ainda nos resta. 

 

Logo, matávamos o que nos estrangulava aos poucos – a fome! –, quando pensei: quantas pessoas dariam um dedo (mindinho, vá lá que seja!) para comer aquilo que jogamos no lixo, independentemente do risco de ingerir estilhaços de vidro ou de contaminar-se com a sujeira do chão? Mas como sair e procurar alguém se lá fora uma besta-fera invisível e cruel ainda nos espreita e obriga a ficar em casa? Daria para argumentar com a desgraçada que era Natal ou teria que entornar o caldo de vez, partir para a briga e ver em duas semanas o resultado disso? O medo de nocaute no primeiro assalto me venceu.

 

Voei mais alto em minhas elucubrações e me perguntei: quantas pessoas dariam um rim para ter ao lado a sua cara-metade que essa ventania que varre o mundo carregou sem piedade para bem longe daqui, sem direito nem mesmo a merecidos adeuses? Muitas, imagino, ainda que essas pessoas tivessem que passar pelo mesmo sufoco que passamos neste Natal, ela e eu, juntando cacos de vidro por todos os cantos, agora no raio de vinte metros do epicentro da explosão, numa luta que parece não ter fim. 

 

Vidas e vidros que seguem. “Vai que dá certo ano que vem”, diz um velho conhecido meu que, toda noite, me encara no espelho e me cobra coragem e fé para juntar os cacos e seguir adiante no dia seguinte.

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Acerto de contas no Natal

Quando comecei a me dar conta dos pecados do mundo – no catecismo preparatório para a primeira eucaristia, em Patos (PB) –, logo percebi a facilidade com que se profanava certo mandamento bíblico: “Não cobice a casa de outro homem; não cobice a sua mulher, os seus escravos, o seu gado, o seu jumento ou qualquer outra coisa que seja dele”.



Não havia escravos, gado ou jumento em minha casa 
– havia, isto sim, uma escadinha de crianças! 
, mas via que meu pai despertava um misto de curiosidade e inveja. Franzino, compenetrado a maior parte do tempo, de riso difícil e usando lentes grossas que destoavam de seu rosto miúdo, ele não era exatamente um Adonis ou Apolo, deuses da beleza na mitologia grega. Porém, quando passeava pelas calçadas de braços dados com minha mãe, bonita, risonha e mais alta que ele, atiçava a cobiça desmedida de alguns profanos. Ou de muitos.



Em 1967, eu tinha entre oito e nove anos quando voltava da bodega com uma encomenda de minha mãe e passava em frente à casa de um rapazote alto, magro, cara cheia de espinhas, sobrinho do prefeito da cidade, e dele ouvi: “lá vai o filho do bicho!”. 

O pai do provocador, por sinal, mulherengo, pé-de-cana, que estufava os peitos ao ser chamado de “Bala”, trabalhava no mesmo local que meu pai, embora não fossem próximos. No calor da ofensa, tentei revidar com um chute nos raios do pneu da bicicleta de meu agressor, mas o cascudo que levei lateja até hoje num ponto equidistante entre as minhas orelhas.

 

Quem virou uma onça ao me ver chegar chorando foi minha irmã. Tomou as dores e pegou o rumo da casa do covarde. Ele assoviava na calçada como se nada tivesse acontecido quando levou uma pedrada nas costas. E enquanto o infeliz recobrava o equilíbrio após o susto provocado pelo ataque, ela já voltava de alma leve por vingar o irmão agredido. 

 

Pouco adiantou. O assédio duraria meses, pois quase toda semana minha mãe me mandava na bodega para comprar algumas coisas e, necessariamente, eu teria que passar pela porta do marginal. Sendo ele bem maior e mais forte que eu, o achincalhe era inevitável, às vezes morrendo de rir com uma récua de comparsas: “lá vai o filho do bicho!” 

 

Nunca contei a meu pai porque tinha certeza de que ele nada faria. Era de índole pacífica, avesso a conflitos de toda ordem. Eu ainda correria o risco de ser acusado de criar confusão no meio da rua e pagar caro por isso. Na época, pais e filhos viviam próximos, mas em planos paralelos, distintos. Ainda bem que se aproximava a data em que deixaríamos de vez a Paraíba para morar em Alagoas. 

 

O tempo passava e, antes da mudança, ganharia corpo em minha cabeça calejada de croques um acerto de contas sem chance de represália. Vira o desgraçado com os de sua laia numa aposta (espécie de disputa de pênaltis) na calçada. Um deles chutava uma bola três vezes de certa distância enquanto o outro buscava defendê-la; em seguida, trocavam de posição. No final da disputa, o vencedor recebia do perdedor um cruzeiro novo ou coisa que o valha. Dá para imaginar quem saiu de bolso cheio?

 

Pouco antes do feriadão em que partiríamos (Natal de 1967), costurei no capricho, com pedras e areia dentro, uma bola de plástico, velha e furada, e me sentei no meio-fio à espera do momento em que o delinquente apareceria. Quando ele deu as caras, a bola já estava a alguns metros de onde me posicionei como se fosse goleiro e o cutuquei: “ganha cinco se fizer o gol!”. Só vi com o rabo de olho o chutão e o barulho da queda da criatura, estatelando-se na calçada. Enquanto isso, voei para dentro de casa – era corajoso, mas nem tanto! , pois não pretendia criar confusão na rua e, claro, desapontar meu pai. Saí apenas no sábado, bem cedinho, olhando de um lado e de outro, direto para a Rural Willys em que minha família pegaria a estrada.

 

Voltei a Patos (PB) quase 35 anos depois, próximo do São João de 2002. Revi o colégio onde aprendi a ler, escrever, rezar e pecar, na mesma rua onde morei por mais de cinco anos, mas sumiram todos os conhecidos de infância. Soube de alguns que se envolveram em arruaças com drogas e tiveram fim prematuro e melancólico. Do meu carrasco, porém, nada me foi dito, nem procurei saber. 


Sabia que, às vésperas daquele inesquecível Natal há mais de meio século, profanara outro mandamento bíblico quando executei minha gloriosa despedida. Se comparada ao bullying, porém, nada mais que um pecadilho venial. Tanto que recordo de quase tudo com insuspeito prazer, exceto de algo importante: se o valentão conseguiu marcar o gol. Se não, estamos quites. Se fez, escapuli sem pagar a aposta. 


O acerto de contas, se não prescreveu, estaria em aberto. Agora, só no Juízo Final. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Desonestos

Há oito anos viralizou nas redes sociais um vídeo em que o atleta espanhol Ivan Fernandez abriu mão de vencer a prova de cross country de Burlada, em Navarra, mas até hoje é enaltecido por sua honestidade durante o evento. Abel Mutai, atleta queniano, que tinha tudo para ganhar a corrida, parou no lugar errado, achando que alcançara a linha de chegada. Ivan Fernandez, que vinha em segundo lugar, podia ultrapassá-lo e conquistar a prova, mas optou por alertá-lo sobre o vacilo e o incentivou a confirmar a sua vitória. E algo que deveria ser padrão no ser humano acabaria virando notícia.


No começo deste viral e inesquecível 2020, circulou nas redes sociais outro vídeo contendo novo gesto digno de nota, por coincidência envolvendo outro esportista espanhol. Aconteceu durante uma partida de futsal em que o jogador Francisco Solano, do FS Cartagena, ao ver o seu adversário sofrer uma lesão importante numa disputa de bola com ele, optou por não marcar o gol quando já estava diante do goleiro. Chutou a bola para fora da quadra e a vida seguiu adiante. 

 

Nos dois casos, pela rapidez com que escolheram o que fazer diante das circunstâncias, não me pareceu que assim reagiram porque lhes seria mais vantajoso perder do que ganhar com a repercussão do gesto. Ainda que, intimamente, possa ter havido alguma dúvida nesse sentido. Nunca se sabe. 

 

Existem outros vídeos em que atletas internacionais colocam o respeito ao próximo acima da vontade de vencer, algo raro por aqui. Mas já vi muitos lances fora do Brasil em que também se pecou pela falta de ética, como o gol La mano de Dios marcado por Maradona contra a Inglaterra na Copa 86 e a cotovelada de Pelé no rosto do zagueiro uruguaio na Copa 70. São fraudes enaltecidas até hoje por muitos argentinos e brasileiros, inclusive da elite intelectual dos dois países, pela “genialidade” dos protagonistas. Também já vi atletas alemães, franceses, turcos, ingleses, italianos e paraguaios simularem pênaltis, marcarem gols ilegais, cuspirem nos adversários e otras cositas mas.  

 

Sábado passado, no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, Yuri Alberto foi destaque na vitória do Internacional por 2 a 1 sobre o Botafogo pelo Campeonato Brasileiro. O atacante marcou o gol da vitória aos 24 minutos da etapa final, gerando grande polêmica. Aproveitou-se de um suposto vacilo (gesto no piloto automático) do lateral-direito adversário para interceptar a bola e tocá-la na saída do goleiro botafoguense, desempatando a partida. 

 

De costas, o árbitro não viu o lance e recorreu ao assistente de vídeo para validar o gol. Para os botafoguenses, a intenção de seu jogador era entregar a bola ao goleiro para que cobrasse a falta. É natural o atleta de futebol fazer isso com os pés como fazem com as mãos os de basquete e vôlei. Tanto que, se reiniciasse o jogo com um chute direto ao gol no Internacional, a cobrança seria nula porque executada fora do local da infração. Yuri Alberto, autor do gol, resumiu: “A partir do momento que ele parou a bola e tocou, o jogo tá valendo... Então, eu finalizei e acabei marcando... Para só depois ver o que a arbitragem iria marcar”. Pra fechar, só faltou uma genuflexão dando graças aos céus pela esperteza.

 

O tal jeitinho brasileiro já foi objeto de toda sorte de estudos psicológicos e sociológicos. Desenvolveu-se nesta terrinha abençoada e bonita por natureza um jeito meio estúpido de ser e de resolver problemas com engenho, safadeza e arte. Dizem que isso seria herança dos períodos de exploração iniciados com os europeus, quando as relações patriarcais substituíram o “ser” pelo “ter”, impondo a astúcia e a embromação para conseguir poder e fortuna.  

Com a malandragem entranhada da orelha direita ao dedão do pé esquerdo, cruzando o coração em fatos e omissões, quase todos querem levar vantagem em tudo. Transigem com coisas sérias como sonegar impostos, furar filas (do banco ao aeroporto, passando pela do transplante de órgãos, até a da vacina que está em formação), burlar sinais de trânsito, jogar lixo nas ruas e estradas, ofender minorias, maltratar animais, destruir bens públicos, seguros de que não dará em nada. Ou, se muito, acabará em pizza e Coca-Cola. Diet, para não engordar.

Claro que a sem-vergonhice existe no mundo inteiro! Ainda estão fresquinhos os escândalos históricos envolvendo multinacionais felpudas como Arthur Andersen, Facebook, Lehman Brothers, Nissan, Volkswagen etc.; as mentiras descaradas que Trump com sua halitose espalhou durante o seu mandato, inclusive para justificar a derrota nas últimas eleições norte-americanas, os escândalos que sacudiram o governo do Japão no final do ano passado, entre outros. Na outra ponta, também continuam vivinhas algumas historietas tropicais de garis, faxineiros de banheiros públicos e arrumadoras de quartos de hotéis que encontraram sacolas de dinheiro e devolveram aos donos.

Ao ler Câncer, eu? – Memórias alegres de um medo profundo, Editora Fontenele, obra brilhante de autoria de Sérgio Riede, me chamou à atenção este pequeno trecho por ele transcrito, do escritor russo Dostoievski: “Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará mesmo para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda com a promessa de manter segredo. Finalmente, há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo. E qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas. Quer dizer, quanto mais respeitável é um homem, mais dessas coisas ele tem.”

Afinal, quem de nós sempre fez a coisa certa mesmo que ninguém estivesse vendo (ou filmando)? Será que somos diferentes e não fazemos parte da nação do jeitinho? A autocrítica, individual e coletiva, é ponto de partida para estar bem colocado na fita de chegada no novo normal que queremos. Quem de nós nunca foi desonesto que me atire pedras. Sem máscara.  

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Telecoteco

 “Mamãe... Mamãe!” – gritava a criatura na fila de caixas do banco, no supermercado ou no meio da rua toda vez que encontrava “nossa” mãe. Isso, claro, antes do confinamento dos dias de hoje. Era o jeito carinhoso com que ele declarava a quem quisesse ouvir que me tinha como irmão desde que nos conhecemos na metade dos anos 1970. 


Ano que vem serão 70 anos de idade e meio século de trabalho na mesma empresa, fazendo as mesmas coisas – amizade, suporte administrativo, recepção e distribuição de documentos, encomendas etc. –, com o mesmo apetite do início de tudo na cidade de Batalha, no Sertão alagoano, onde nasceu e criou-se à base de tareco, amor e mariola até mudar-se para Maceió. 

 

Cristiano não fuma, não bebe, mas jogava muito. Como jogava! Meu armador predileto – assim me refiro a ele – nos tempos do Cantareira, timeco sem-vergonha que juntava o que de pior havia em termos de peladeiros, do faxineiro ao gerentão da empresa. Sabia como ninguém cadenciar o jogo, aguardar o momento exato para, à moda Gérson, enfiar uma bola longa entre os zagueiros, colocando os atacantes cara-a-cara com o goleiro adversário. Pena que os pernas de pau quase sempre vacilavam, mas, para todos, ganhar ou perder era irrelevante. Bom era ter um pretexto para reunir os amigos nas tardes de sábado em torno do mais apaixonante dos brinquedos: a bola.   

 

Ele nunca se queixou por não exercer altos cargos, nem deter poder sobre outras pessoas ou ganhar menos do que merecia. Como se fora um treinador com uma prancheta de sonhos nas mãos e um colar de medalhas no peito, trazia de berço dentro de si a escalação de um timaço imbatível, do goleiro ao ponta esquerda: Amizade; Disciplina, Determinação, Respeito e Lealdade; Otimismo, Paciência e Humildade; Tolerância, Gratidão e Honestidade. 

 

A prontidão para servir a quem dele precisava o levou a criar um bordão maravilhoso que virou sua marca registrada. Até hoje, ao concluir qualquer trabalho, antevendo o que certamente lhe dirá o destinatário da encomenda ou o beneficiário de seu esforço, antecipa-se e arremata de primeira: “Obrigado... De nada!”. E gira sobre os calcanhares, sumindo no mundo em meio a outros afazeres. 

 

Tenho meus motivos para desconfiar de que ele sonhava ser poeta e sanfoneiro. Digo isso porque, em janeiro passado, soube por Didi, que trabalhou em Alagoas nos anos 1980 e nunca mais o reencontrou, que ele lhe encomendou um poema para a namorada. Aconteceu então uma troca vantajosa para ambos: decidiram ir à barraca Ipaneminha, na orla, onde Didi conheceria a moça e rabiscaria algo para a competente assinatura do "autor". “Não bebo, mas vou pagar a despesa!”, teria dito meu armador predileto. 

 

Foi assim que Célia, cara-metade e musa inspiradora de Cristiano, com quem trocava olhares enternecidos na igreja do Livramento antes mesmo de alinharem os ponteiros, recebeu este apressado mimo poético no dia de seu aniversário, sem papel celofane nem laço de fita, mas com dedicatória, abraço e beijo:

 

Dezoito anos

 

Mundo colorido, sol distorcido,

Horizonte infinito, mar repartido,

Cores moldadas, rosa adornada.

 

E a alegria de ter dezoito anos,

E a certeza de não ter planos

Reclama da demora da maioridade,

Mas que um dia vai sentir saudade.

 

Novos tempos, entretanto, hão de vir

Quando se tem a vida a somar e dividir.

 

É hora de olhar na mesma direção

Com a pessoa que lhe toca o coração:

Fazer de dois mundos uma só nação!

 

Célia deve ter desconfiado, tanto que a carreira do "poeta" encerrou ali. Ele nunca foi de mentir. Quanto à música, se a sanfona não lhe deu muita trela, tomou gosto e passou a tocar triângulo como gente grande, chegando a acompanhar grupos de forró que se apresentaram em Maceió. Até a orquestra da Polícia Militar de Alagoas, que anima crianças e idosos nas manhãs de domingo à beira-mar, recebe canja do ilustre triangulista (assim escrevo, tal como baterista, violinista etc.). Se duvidar – eu não duvido de nada! –, ele é capaz de entortar um triângulo num telecoteco de deixar o ferro em brasa sem queimar os dedos nem largar o batedor.

 

Soube outro dia que Daniel, 5 anos – filho da jornalista Cris Calaça e sobrinho de Crisinho Gambiarra, um tecladista de primeira –, o único netinho de Cristiano e Célia, tem neste momento uma missão bastante nobre e delicada: manter aquecido o coração do avô enquanto a danada da vacina não dá as caras por aqui e acaba de vez com a pandemia que ameaça recrudescer na virada do ano. Mas nem disso ele se queixa.

 

Se bem conheço a criatura, assim que a tempestade passar vai trocar de roupa, descer de novo a ladeira no rumo do trabalho, encarar na esquina o bicho que o confinou a pulso a quem dirá que o mundo é grande e o destino lhe espera, que não será ele que vai lhe dar na primavera as flores lindas que ainda sonha pro seu verão. Com o triângulo, claro, num telecoteco de arrepiar o calçadão da rua do Livramento.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Bola na trave

Prêmio Jabuti é considerado o mais tradicional e importante reconhecimento literário do País, sendo anualmente concedido pela Câmara Brasileira do Livro a figuras da comunidade intelectual brasileira. Foi criado em 1958, ano em que quase tudo deu certo para o Brasil, desde a primeira conquista da Copa do Mundo, passando pelo lançamento de Chega de Saudade, de João Gilberto, disco-base da Bossa Nova, até o espanto universal causado pela arquitetura de Niemeyer.

Concorria este ano, na categoria “Crônicas”, a obra O dia em que achei Drummond caído na rua (Editora Zarte), de autoria de meu amigo Marcelo Torres, o menino tabaréu do Junco (hoje Sátiro Dias, a 200 km de Salvador) que conheci na virada do século, jornalista e escritor adaptado a Brasília. 


Trata-se de um livro fabuloso onde grandes escritores como Amado, Cecília, Drummond, Graciliano, Marquez e outros tornaram-se personagens bem construídos de 26 histórias curiosas, hilárias ou mesmo trágicas – as minhas preferidas são 
O menino e os coronéis, Ô de casa! e O silêncio das igrejas –, frutos, segundo ele, de muita pesquisa sobre a obra e a vida de suas fontes de inspiração.

Marcelo me contava outro dia, antes da divulgação do resultado final, que já se sentia satisfeito por ter sua obra conquistado duas dificílimas vitórias, sendo escolhida entre as 10 melhores (no meio de 200 livros inscritos), depois entre as cinco melhores, numa concorrência em que estrelas da constelação brasileira ficaram pelo caminho. “Nunca imaginei que na primeira vez que me inscrevi no prêmio, com uma publicação muito simples, já fosse duplamente finalista”, pontuava.

 

Bateu na trave! A categoria teve como ganhadora a obra Uma furtiva lágrima (Editora Record), de Nélida Piñon. O imponderável cochilou no plantão e o prêmio, não se pode negar, acabou em boas mãos. Nélida é escritora de primeira grandeza e senta-se há bom tempo, merecidamente, à mesa dos imortais da Academia Brasileira de Letras. 

 

Quarta-feira passada, ao saber do desfecho, eu comentei o óbvio com meu amigo: o Jabuti, para autor pouco conhecido do grande público, deve ser visto como os escritores de renome mundial encaram todo ano o Prêmio Nobel de Literatura, isto é, com silenciosa e pragmática esperança. Se não der certo, nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo. Você já cruzou a linha, chegou onde pouquíssimos chegaram e continuará entregue a paixões que nunca terão fim.  

 

Disse-lhe ainda outra obviedade: literatura é arte de dentro para fora. Para declarar seu espanto diante dos mistérios da vida, o fotógrafo usa lentes; o pintor, tintas; o escritor, palavras. Quem escreve não deve preocupar-se em demasia com a opinião alheia, dado que nunca terá controle sobre como os leitores amortecerão no peito a bola de papel arremessada.

 

Por isso, toda leitura é feita de suspiros, risos e silêncios. Seria frustrante para o escritor descobrir o que seus filhos (textos) fazem no escuro do quarto enquanto ele não está por perto. Os leitores criam seus próprios quereres – “onde queres o prazer, sou o que dói; onde queres tortura, mansidão; onde queres um lar, revolução; e onde queres bandido, sou herói”, diria outro baiano como meu amigo.  

 

Voltamos a trocar mensagens no dia seguinte e ele fez uma analogia interessante ao trazer para o campo de jogo o seu querido Vitória. Nas duas vezes em que chegou à final de uma competição nacional, no Brasileirão de 1993 e na Copa do Brasil de 2010, foi nocauteado por dois adversários indigestos: O Palmeiras de 1993, de Edmundo, Evair, Roberto Carlos, Edilson, Mazinho etc., e o Santos de 2010 (campeão da Libertadores), de Neymar, Robinho, Ganso, Elano, Renato etc.

 

Naquela quinta-feira seria sepultado o que sobrou de Maradona, de quem muito se falou ultimamente, mas pouco se disse sobre sua maior contribuição: mexer com a autoestima de baixinhos, gordinhos e pernetas (cuja perna inútil não se presta nem para chutar a bunda de quem lhe condena pelo que faz a si próprio), provando que vale a pena, sim, cruzar a linha de chegada, mesmo não sendo o primeiro. 

 

Às vezes, bola na trave também é gol. Golaço!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Donas do amanhã

Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.

 


Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.

 

Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalhar os meninos. É verdade que nenhum de nós esbarrou na estaca, tampouco dela sofreu uma rasteira ou coisa parecida. Era como se fosse um árbitro sem apito, sem aborrecer os dois times nem interferir no resultado dos rachas.  

 

Recordei também de uma medida na mesma linha da adotada pela prefeitura de Araguaína, porém de amplitude mais abrangente. Há pouco mais de 20 anos estive numa cidadezinha de oito mil habitantes encravada no Alto Sertão do Pajeú, a 300 km da capital pernambucana, chamada Tuparetama. Além do clima ameno a 500 metros de altitude, vi que defronte de quase todas as casas havia uma árvore, algumas ainda bem pequenas. Procurei saber do prefeito como o município conseguia arborizar as ruas e qual o custo daquela iniciativa, certamente onerosa para o modesto cofre da prefeitura. Respondeu-me, sorrindo, que em cada casa havia uma criança que fora sensibilizada a cuidar de “sua” planta em troca de uma ajuda simbólica – algo equivalente a 10% de um salário mínimo –, desde aguar pela manhã e à tarde, passando pela arranca de ervas daninhas, uso de estrume, até cerca de proteção, se necessário.

 

Percebi ainda que não existiam muros com pichações e fotografias, comuns sobretudo em campanhas eleitorais. Em lugar de propagandas políticas com imagens e letreiros de gosto duvidoso, foram pintados nas paredes caiadas versos de poetas populares.

 

Nada muito rebuscado. Poemas simples, enxutos e intensos, extraídos da alma de uma gente humilde, como aquele em que Manoel Xudu relatou:

Mamãe me dava papa,

Me deu leite, me deu bolo,

Ela que me deu consolo,

Me deu carinho, garapa.

Mamãe que me deu um tapa,

Mas depois se arrependeu.

Beijou aonde bateu,

Desmanchou a inchação.

Quem perdeu mãe tem razão

De chorar, porque perdeu.

 

Ou como rabiscou João Furiba, não se sabe se inspirado numa galinha, numa cabra, numa novilha ou numa donzela, digamos assim:

Eu também estou tristonho

Porque perdi minha bela.

Eu quisera arrumar outra

Pra botar no lugar dela.

Nem precisa ser bonita

Basta ser igual a ela.

 

Fui-me embora no fim da tarde e nunca mais voltei à cidade. Agora me pego pensando sobre o destino daquelas crianças sertanejas da segunda metade dos anos 1990, tocadas desde cedo pelo amor ao meio ambiente e à poesia. Por que essas comunidades representam ponto fora da curva e viram notícia com aquilo que deveria ser regra natural, como aprender a ler, escrever e contar?

 

No começo deste ano, numa histórica reunião ministerial, um certo cidadão alertava os demais participantes sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da covid-19. Para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus e mudar regras que poderiam ser questionadas na Justiça. Seria a hora, segundo ele, de fazer uma “baciada” de mudanças nas normas ligadas à proteção ambiental. Também nas suas palavras, hora de “passar a boiada”.

 

Resolvi checar a origem do sujeito e descobri o óbvio: não nasceu em Araguaína nem em Tuparetama. Talvez nunca tenha semeado uma planta ou cometido um poema. Se dedicasse um quarto de hora à leitura de Manoel de Barros, quem sabe descobriria que a importância de determinadas coisas não se mede com fita métrica, balanças nem barômetros, mas pelo encantamento que produzem nas donas do amanhã (as crianças de hoje), para quem plantas e poesias continuarão sendo indispensáveis. Certas criaturas, não. Podem ser trocadas até de “baciada”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Praga de guri

O guri viu quando aquela mulher, fingindo alimentar as galinhas que ele criava no quintal com tanto carinho e milho, atraiu duas delas para a cozinha com seu tititi e um punhado de grãos, liberou a menor, fechou a porta e condenou a mais gordinha à morte. Viu ainda quando a mulher pisou as pernas dela com a sandália do pé esquerdo e lhe depenou o pescoço, onde bateu com a lâmina da faca para “chamar” o sangue, cortou com um só golpe a carótida e o jorro vermelho escorreu numa vasilha até a coitada se render desfalecida. Guardou assim na memória uma das cenas mais marcantes de sua infância. 


Sentiu-se pior ao se dar conta de que aquela mulher era a sua própria mãe. O mal-estar aumentou quando viu o corpo que tantos ovos lhe trouxera, ainda morno, ser jogado dentro de um caldeirão amassado com água fervendo – o que afastava qualquer chance de socorro à custa de mercúrio cromo, gaze e esparadrapo – e dele serem retiradas todas as penas sem qualquer remorso. Depois, ainda veria sapecado numa boca do fogão o que restava de penugem.

 

O guri assistia paralisado ao desenrolar do filme macabro. Via em cores mortas o fim de sua protegida, com a matadora a cortá-la em pedaços – arrancou-se até a cabeça de olhos foscos e as pontas dos dedos com unhas e tudo – do tamanho das fatias em que seu coração de criança fora repartido. Chegou a imaginar que, de tão arrependida da atrocidade que cometera, ela agora tentava curar os ferimentos com uma mistura de vinagre, pimenta do reino, cominho, alho e sal. Mas já não havia sinal de vida quando perguntou por perguntar:

– E o sangue, vai jogar fora? E os ovinhos sem casca?

– Saia daí... Não mexe nisso! Vá brincar no quintal, agora! – rebateu a mãe.

 

Foi melhor. Era importante ir até o galinheiro checar como as amigas da infeliz reagiram ao que acontecera, se viram ou ouviram alguma coisa, se estariam necessitadas de um pouco de água para se restabelecerem do choque depois daquela tragédia numa manhã de domingo, dia em que, mais cedo, o guri vira a própria mãe de joelhos, na capela do colégio, a rezar pelo bem de todos, menos do galinheiro. Quem sabe iniciariam ali uma greve de fome em protesto pela morte da gordinha. Recusariam desde milho até as sobras de almoço e definhariam com dignidade até a morte – fim de todos os viventes – por uma causa nobre. "Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles", diria o machão do quintal cantando de galo no pedaço.     

 

Era pouco provável, entretanto, que aquelas criaturas fossem resilientes e corajosas a esse ponto naquele distante ano de 1967. Para sua ingrata surpresa, o guri não notara no galinheiro sinais de tristeza ou de revolta, uma lágrima sequer fora derramada no chão diante da barbárie. Todas pareciam amoldadas à vida miúda de fundo de quintal, à espera da água, da comida ou do estupro diário do velho galo que, sem o menor romantismo, nunca negociou os termos de cobertura das namoradas. Inocente, aliás, o guri achava que aquilo não passava de gentileza para protegê-las do vento frio à sombra da mangueira, apesar dos esporões afiados próximos ao cangote. 

  

Não deu meio-dia e a mãe chamou o restante da família – pai e quatro filhos – para almoçar “galinha à cabidela”, eufemismo para descrever o resultado da covarde e premeditada execução da gordinha, que ademais fora cozida cruelmente no próprio sangue:

– Eu quero uma coxa! – antecipava-se a irmã mais velha.

– A titela é minha! – gritava o irmão do meio.

– Me dá o coração e a moela! – cobrava outro.

– Pelo visto, mulher, só vai sobrar ciscador, grade, mangote e sobrecu pra nós... – brincava o pai com a mãe, sem graça alguma para o guri.

 

Naquele ano, por coincidência, dois aviões haviam se chocado no céu do Ceará, deixando no ar um mistério que divide opiniões até os dias de hoje, mais de meio século depois: uns acreditam em conspiração seguida de assassinato; outros falam em mera fatalidade. A bordo de uma das aeronaves estava o marechal Castelo Branco, primeiro governante do regime militar, tido como alguém de perfil moderado nas Forças Armadas. Três anos antes, no discurso de posse, chegara a cogitar eleições para 1965. Havia deixado o poder justamente quando engrossava as canelas o grupo “linha dura” liderado por seu sucessor, general Costa e Silva, grupo esse que só largaria a cadeira, o carimbo e a caneta mais de 20 anos depois. 

 

Mas voltemos ao almoço. Ninguém percebeu a tristeza que tomou conta do guri. Sua família, alheia ao que se passava nas entranhas do submundo político-militar, estava feliz, de barriga cheia, assim como as criaturas sobreviventes do galinheiro, que não viam nada de mais naquilo que acontecia no quintal. "Tudo vale a pena se a ração não for pequena", deviam cacarejar entre si, porque embora fossem galinhas, adoravam a frase de Pessoa.

 

Um mês depois, bateu a murrinha (peste aviária) e dizimou todo o plantel, inclusive meia dúzia de pintinhos. Desconfiou-se – pura calúnia! – de que teria sido praga do guri, inconformado com a falta de compaixão e solidariedade entre as galinhas e com sua própria incapacidade de mudar o que via de errado no quintal de casa. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Recortes peludos

Tão esperada nas bancas quanto a revista Placar, Playboy era “a mais manuseada das revistas brasileiras”, segundo o escritor Humberto Werneck, autor da crônica “Leitores e vedores”. Foi ele, aliás, quem nos anos 1980 sugeriu aos assinantes de Playboy que se autorrotulassem de “vedores”, termo bem mais preciso do que “leitores”. 

A revista apareceu no Brasil em agosto de 1975 com o título Homem. Na época, a censura achou inadequado o nome Playboy por associá-lo a perversão e nudez. Quatro anos mais tarde, nos primeiros sintomas de distensão “lenta, gradual e segura” do penúltimo governo militar, a publicação conseguiu dobrar a censura e levou às bancas um ousado ensaio fotográfico com as playmates de sua versão norte-americana. Durou 40 anos, com 487 edições publicadas.

 

A verdade nua e crua de Playboy  com duplo sentido, claro– é que se via muito e se lia pouco. Na última década do século 20, ainda não havia a vulgaridade das imagens explícitas que hoje circulam nas mídias sociais. Os olhares entorpecidos de testosterona eram saciados por imagens de fotógrafos como J. R. Duran. 

 

Soube de um caso interessante envolvendo a revista, daqueles que as pessoas são capazes de jurar que não aconteceu, mas meu velho amigo Tony, a quem conheço desde que morei no Recife (lá se vão quase 25 anos), não tinha por que mentir para mim. 


Sujeito sério, hoje sessentão, fiel à mulher que só lobo cinzento ou coruja, Tony durante algum tempo foi “vedor” dissimulado de PlayboyE estava seguro de que convenceria Dagmar, sua esposa, baixinha tão sabida quanto desconfiada, de que a qualidade da revista – as matérias, os artigos, a entrevista bem ao estilo de O Pasquim, as charges etc. – justificava plenamente a assinatura que fizera.

 

De família grande, Tony era um pouco mais velho do que Lucão, seu irresistível irmão, também casado, mas que se pudesse escolher teria nascido no Oriente Médio e seria um príncipe devotado de corpo desalmado a três ou quatro mulheres não necessariamente submissas, às quais não deixaria nada faltar. Exigiria apenas convivência harmoniosa entre elas, dado que nunca soube lidar com conflito conjugal. 

 

O jeito de ser de Lucão provocava calafrios sem febre em suas cunhadas. Aos sábados então, quando bebia umas cervejas em família e desandava a repetir que seu "coração é grande e cabe mais de uma”, elas surtavam temendo contágio fraterno ou que a carga genética eventualmente se manifestasse nos respectivos maridos.

 

Apesar de tudo, o indômito Lucão era tido como bom filho, irmão, pai e tio, mas tão devasso que, ao ver o boom do fluxo turístico no Nordeste nos anos 1980, teve a desfaçatez de, à moda “Herva Doce” (com "h"mesmo!), publicar anúncio na Folha de São Paulo e no Correio Braziliense nessa linha“Moreno alto, bonito e sensual, posso ajudá-la na solução de seus problemas. Conheça as belezas de nosso paraíso com metade da despesa por minha conta. Cartas para caixa postal...” 

 

E pior que deu certo por algum tempo. Óbvio que isso ocorreu antes que o primeiro caso da epidemia de Aids fosse identificado numa sociedade que ainda relegava à mulher papel coadjuvante, voltado à gestão de um nada doce lar e à criação de filhos. Os movimentos mais vigorosos no sentido de mexer nesse cenário ainda eram incipientes. 

 


Em um domingo à noite, Lucão, de ressaca e pressionado pela filhota – cuja professora de um famoso colégio na capital pernambucana encomendara o dever de casa de fixar no caderno de desenho a imagem de um animal invertebrado –, recortou e colou uma caranguejeira peluda de origem cientificamente desconhecida na fauna tropical, porém comum nas páginas de Playboy

Antes de ir à escola no dia seguinte, a filha de Lucão, em sua inocência, toda orgulhosa acha de compartilhar com o tio Tony a "ajuda" que recebera do papai e que deveria entregar em mãos à professora. Passado o susto de arrepiar os pelos, o tio pôde auxiliar a sobrinha a refazer a tarefa com a imagem alternativa de um invertebrado e belo ouriço do mar.  

Pois foi justamente naquela semana que Dagmar, quando soube da molecagem do cunhado, decidiu recortar e jogar na lixeira todas as imagens com tarântulas peludas da edição mensal de Playboy que o carteiro entregara em sua casa

– Melhor que as crianças não vejam essas fotos, já que aquilo que interessa mesmo é o restante da revista, não é meu amor?”

– Claro... – admitiu Tony. 

 

"Mulher pequena é tinhosa, ainda mais com uma tesoura na mão", diria mais tarde meu velho amigo ao me contar o caso. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

E aí, Neguinho, sumido, hein?!

Na coleção O Mundo da Criança que havia na estante de livros lá de casa, minha irmã e eu, aos dez e nove anos de idade, um dia descobrimos e ficamos impressionados com uma lenda afro-cristã cuja origem remonta ao fim do século XIX. Foi muito popular entre os abolicionistas gaúchos que lutaram pelo fim do vexame da escravidão numa terra de dimensões continentais.

Dizia-se que um fazendeiro cruel com seus escravos e peões mandou que um menino negro vigiasse no pasto alguns cavalos que acabara de comprar. De tardezinha, faltava um animal. O patrão então pegou um chicote e deu uma surra tão dura na criança que feriu feio suas costas. E arrematou aos gritos: "Vai ter que achar o cavalo agora ou vai ver o que acontece!". 


Negrinho do Pastoreio


O menino então saiu à procura do animal. Algum tempo depois, encontrou-o num pasto nativo, laçou-o, mas a corda arrebentou e o bicho desapareceu de novo no meio da escuridão. De volta à fazenda, o dono, mais truculento que antes, bateu de novo na criança e a amarrou sobre um formigueiro. Quando amanheceu, ela estava gelada, com os olhos opacos, inerte. 

Mas, de repente, lá estava de pé, com a pele lisinha feito louça, sem as marcas das chibatadas que sofrera no dia anterior. À sua direita, a Virgem Maria; à esquerda, o cavalo fujão. O fazendeiro ajoelha-se arrependido, o menino se faz de mouco, beija a mão da santa e vai-se embora. 


Daquele dia em diante, andarilhos, bêbados, loucos espalharam pela região terem visto passar uma tropa de potros tocada por um moleque num cavalo de pelo castanho, crinas pretas e longas. Diziam que, se alguém perdesse alguma coisa, à noite o menino a encontrava, mas só devolvia a quem lhe trouxesse uma vela acesa, cuja luz levaria ao altar da santa que o livrara da escravidão. Nascia a lenda do Negrinho do Pastoreio.

Pois bem. Toda vez que perdíamos algum brinquedo, livro, caderno ou lápis, tanto minha irmã quanto eu acendíamos uma vela sobre a mesa da sala de jantar e implorávamos pela ajuda do Negrinho. E, verdade seja dita, ele nunca vacilou conosco, apesar da distância que separava o Sertão paraibano e o Pampa gaúcho dos anos 1960.

 

Havia, certamente, alguma influência daquilo que nosso pai escutava em sua radiola Teleunião, na voz de uma gauchinha arengueira que encantou uma das plateias mais exigentes do mundo  primeira brasileira a pisar no palco do Teatro Olympia de Paris – com a obra-prima de Edu Lobo e Guarnieri, ligada à história dos escravos e seus descendentes entre nós:

“Upa neguinho na estrada

Upa pra lá e pra cá

Vixi, que coisa mais linda

Upa neguinho começando a andar

Começando a andar, começando a andar

E já começa a apanhar...”

 

Não posso falar por minha irmã, mas, por mim, com o esfriar da inocência, fui deixando de lado aquelas promessas ingênuas e passei a aceitar melhor o dualismo da vida com seus planaltos e planícies, sua gaveta de achados e perdidos, depois que aprendi a mais básica das lições: uns dias chove; noutros, bate o sol.

 

Perdi muita coisa de lá para cá. Claro que não me refiro ao sumiço de amigos passageiros, à partida dos filhos da mesa em que almoçávamos ou à fita de chegada de uma corrida de obstáculos profissionais de mais de quatro décadas. Chega uma hora em que a gente se dá conta de que sofrer com o inevitável é mais uma perda: de tempo.  

 

Se aqui na terra ainda estivessem jogando futebol como antes. Mas não vejo novos pelés, tostões, rivellinos, zicos, falcões, reinaldos, romários ou ronaldos. Também já não ouço muito samba nem rock’n’roll. Onde em se plantando tudo dava, já não brotam mudas de chicos, claras, elises, paulinhos, rauls, ritas, tons ou vinícius.  

 

A coisa aqui está feia! É muita erva daninha infestando jardins, quintais, florestas e pantanais, inclusive algumas urtigas com suas togas encardidas e amarrotadas. Só o Negrinho do Pastoreio na causa! 

 

Mas não posso nem quero abusar da paciência de meu velho e caro amigo. Ele deve andar pelo pescoço com tantos pedidos. Daqui a pouco vão faltar velas até nas bodegas de ponta de rua desta terra de frustrações continentais.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Não ia dar certo, entende?

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 


Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 


Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  


Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 

De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 


Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende?", talvez dissesse.