Menino ainda, ele saía do cinema nas matinês de sábado com um toco de cigarro de mentira no canto da boca, as pernas arqueadas e as mãos prontas para sacar revólveres imaginários, rolar os gatilhos nos dedos fura-bolos e disparar contra bandidos fantasmas. Na sequência, com o olhar gelado, soprava a fumaça do cano das armas e seguia adiante. Ao fundo, ouvia-se o assobio da trilha sonora de “Por um punhado de dólares”.
Para o menino, no Velho Oeste tudo se resolvia na bala ou na ponta do punhal. Lugar de ladrões ousados que saqueavam em plena luz do dia, ávidos por, nas horas de folga, violentar as donzelas mais formosas. Terra também de dançarinas ruivas e voluptuosas nos saloons e de caubóis de bravura indômita, inclusive contra pele-vermelhas que resistiam em desocupar áreas de garimpo de pedras preciosas.
Ele cresceu. Aprendeu nos livros que o Velho Oeste era bem diferente daquilo que os filmes davam a entender. Que, na verdade, as únicas terras ocupadas ficavam no Leste norte-americano até a metade do século 19, entre o oceano Atlântico e o Mississipi, rio de 6.270 km que corta o país, de Norte a Sul, em pedaço equivalente a um quarto do território atual.
O avanço para além do Mississipi aconteceu apenas por volta de 1848, com a descoberta de ouro na Califórnia. Menos de 20 anos depois, surgiu a lei federal que concedia terras a quem se dispusesse a ocupá-las por pelo menos cinco anos. E a região começou a ser povoada.
No começo, as cidades não tinham prefeituras, delegacias nem tribunais. Vem daí a lenda de matadores cruéis e baderna generalizada? Mas os assentamentos eram rigidamente controlados pelo governo, obrigando-se os pioneiros a remeter mapas e documentos propondo o reconhecimento de seus domínios.
Depois, foram criadas regras locais, instituindo-se os poderes independentes e harmônicos entre si (legislativo, executivo e judiciário) para, segundo a teoria de Montesquieu, afastar o risco de governos absolutistas e evitar a edição de normas tirânicas.
O menino virou sessentão grisalho, cheio de dores, dúvidas e netos. Já não acredita nas peripécias de Django, Pecos e Trinity no Velho Oeste. Aliás, ele me contava, outro dia, que está ultimando uma peça teatral sobre a disputa à prefeitura de próspera cidadezinha à margem do rio Mississipi.
De cara, o autor me disse que qualquer semelhança com a realidade é absolutamente proposital. Concorrem ao cargo um ex-prefeito sentenciado (Django) e o xerife que o prendeu (Pecos), além do atual alcaide (Trinity), eleito há três anos como o paladino do combate à corrupção.
Cada candidato é totalmente diferente dos outros dois, mas com o mesmo teor de acidez e sem qualquer pastilha de hidróxido de alumínio à mão. Nessa dança de lobos, só não vale botar a mãe no meio. Ela não tem culpa do que sobrou daquilo que pariu e mamou em seus peitos.
Há quatro anos, Django puxou cadeia braba por obra do xerife Pecos, que se jacta de haver recuperado para os cofres da prefeitura bilhões de dólares de corruptos confessos. Mas, confirmada a obtenção irregular de algumas provas, Pecos teve seus atos anulados pela Justiça, ensejando a libertação de Django.
Ao pé da letra, em julgamento restrito a um dos processos (de vários em andamento), as comportas foram abertas para uma enxurrada de anulações e prescrições, libertando-se inclusive outros condenados que, serelepes, já batem as asas por aí se passando por anjos de candura.
A Justiça, contudo, garante que o processo que deu origem à bagunça foi apenas transferido de jurisdição e que caberá ao juízo competente decidir se aproveita as demais provas existentes. Ocorre que ninguém na cidadezinha acredita nisso.
Pecos escondeu suas pretensões enquanto ostentava uma estrela no peito, mas logo topou se juntar ao grupo de Trinity. Expulso da panela numa briga interna de egos, é visto como traidor pelo ex-chefe e seus asseclas. E Django, na mão inversa com seus sectários, o acusa de tê-lo condenado apenas para evitar que vencesse as últimas eleições.
Corre então o boato de que eventual vitória de Django será atribuída à Justiça, que o teria recolocado no jogo apenas para inviabilizar a reeleição de Trinity. É aí que Pecos entra novamente em cena, ungido por donos de grandes jornais, ranchos e bancos, interessados numa alternativa ao duelo entre Django e Trinity. Torce pelo tipo de troca de tiros em que os dois caiam simultaneamente. Algo que a física tem dificuldade de explicar, mas comum naquele meio.
O autor só não sabia ainda como encaixar na história o destino de bilhões de dólares recuperados de corruptos confessos. A quem devolver a dinheirama confiscada sem provas irrefutáveis dos crimes? Como utilizar numa finalidade justa e inadiável?
Decidiu pedir minha opinião. Não sou mais bancário nem especialista no tema, mas propus que a grana seja direcionada para a compra, em verdinhas, de um lote de vereadores reconhecidamente sem-vergonhas. É preciso assegurar a governabilidade do próximo governo.
O autor gostou da dica, porém ainda luta para encontrar interessados na produção do espetáculo teatral. Talvez consiga montá-lo abaixo da linha do Equador, onde, dizem, não existe pecado, mas os ladrões continuam saqueando em plena luz do dia.