junho 25, 2025

Só esperando o sol esfriar

Um estrangeiro que desembarque por essas bandas, Google Tradutor em punho, corre sério risco de se engasgar com a própria curiosidade tentando entender uma simples conversa entre dois brasileiros. Agora, se um for nordestino como eu e o outro, digamos, catarinense, aí o bicho pega: é como pedir pra um vaqueiro matuto dançar uma valsa sob a batuta de um maestro austríaco: falta compasso e sobra tropeço.


Outro dia, num desses restaurantes chiques das entrequadras da Asa Sul de Brasília — a cidade que mais mistura costumes e sotaques brasileiros —, onde até a taça de vinho parece confidente, escutei uma conversa digna de dicionário antropológico, envolvendo uma crise conjugal prestes a virar meme nas redes sociais:
— Depois que caiu a ficha, amiga, enfiei o pé na jaca!
— Foi mesmo? E no que deu?
— Deu que a luz dormiu acesa e ele ficou preso do lado de fora...

  

Traduz aí pro alemão, pro francês, pro tradutor simultâneo da ONU com pós-doutorado em semiótica brazuca. Qual ficha caiu? A do orelhão, a do crupiê do cassino ilegal ou a do juízo? E a jaca, por que sempre ela? Já virou capacho de tanto pé atolado em descontrole emocional. A luz dormiu acesa? Será que acorda amanhã ou só quando chegar a conta com insônia. 



“Preso do lado de fora”, então, é tragédia embrulhada em laço de fita. Ninguém sabe quem trancou, se trancou ou se existia mesmo um lado de dentro. Só se sabe que, naquele instante, ninguém entra, ninguém sai — feito turista tentando embarcar com passaporte irregular.


É que brasileiro não fala: codifica. Nosso idioma paralelo mistura filosofia de boteco com poesia de mesa de trabalho. É língua oficial com senha, QR code e dicionário afetivo de bolso — que, volta e meia, some junto com a paciência.


Veja este clássico: “Tem, mas acabou.” É como se o universo parisse um desejo só pra abortá-lo em seguida. Existiu, sim — mas evaporou feito amizade desinteressada nos corredores do Congresso Nacional.


E o tal do “Escuta só pra você ver”? Ou a pessoa tem superpoderes sinestésicos, ou tá prestes a enxergar um barulho passando colorido na frente dela. Cientificamente, é risível. Literariamente, uma pepita linguística.


E o lírico-geométrico “Tô aqui só cubando você”? Não é espionagem nem vigilância sanitária. É observação com sotaque e julgamento com discrição. Um olhar enviesado que diz: “tô aqui só de olho nos seus pés”.


“Tô com fome de comida.” Fome de quê? De vingança, de protagonismo? Só chamando os Titãs pra explicar: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.” E as contas pagas, claro, que a vida não anda fácil pra ninguém.


Tem ainda o existencialismo frutado do “Vai ficar aí chorando as pitangas?” Porque não basta sofrer: é preciso escolher a fruta certa. Pitanga é pequena e azeda, mas podia ser acerola, cajá, tamarindo, umbu — vai do grau de amargura de cada criatura.


E o intrigante “Daí peguei e falei”? Pode não dizer nada — ou tudo. Depende do contexto, da entonação e do teor etílico da conversa. Às vezes, é só vinheta antes da apoteose do desfile.


Brasileiro também é mestre em geografia lírica:
— Essa rua vai dar aonde?
— Siga reto, toda vida.

Toda vida. O tempo como direção, o destino como abstração. E ainda que a rua termine numa ribanceira, o que vale é a fé — mesmo quando o GPS alerta que está recalculando.


Quando alguém diz “Tá ficando tarde, vou chegando”, pode esperar: ainda vai pedir a saideira, contar três mentiras e esquecer o celular no banheiro.


E tem o pois, o sim e o não. Separados, são inocentes. Juntos, fazem qualquer gringo patinar no seco. Explica pro cidadão que “pois não” é “sim, senhor” e que “pois sim” é um não disfarçado de ironia:
— Pois sim, espere e verá!


O estrangeiro, pobre alma diplomada, vai franzir a testa, consultar o dicionário... e encontrar só os mistérios insondáveis de uma língua que se recusa a ser domesticada. Uma língua feita de gambiarras poéticas, humor instintivo e metáforas de sobrevivência.


Porque tem coisa que nem brasileiro entende — mas sente. E dura até acabar. Não vê nem o cheiro. Só curte, mesmo vivendo ao Deus-dará, com a esperança e a paciência já em aviso-prévio.


Melhor ficar quieto no meu canto, todo fim de tarde, decifrando palavras e pessoas — só esperando o sol esfriar, se é que um dia esfria. 

junho 18, 2025

O fugitivo do Dia dos Namorados

Quinta-feira passada, no interiorzão da Bahia — onde até o silêncio cochicha saliências —, um episódio digno de novela mexicana com direção de Woody Allen sacudiu as redes sociais. Aconteceu num hospital, onde um homem de 48 anos, internado com cólicas renais, enfrentaria uma crise ainda mais dolorosa: a da simultaneidade afetiva.

 

Tudo começou quando, num raro eclipse de juízo, esposa e amante resolveram visitá-lo no mesmo horário no “Dia dos Namorados”, cada uma munida de lanches, sucos, toalhas e expectativas. A recepção quase virou ringue, com troca de farpas e olhares enviesados que prenunciavam escândalo em andamento.

 

Do quarto, entre uma pontada no rim e outra no orgulho,  o paciente pressentiu a iminente tragédia. Não hesitou: arrancou o soro do braço, correu até o banheiro, abriu a janela e — num rasgo de instinto ou desespero — atirou-se ao mundo com avental, chinelos e a autoestima em petição de miséria.




O vigilante, acostumado a chiliques e surtos de toda sorte, ficou perplexo:

— O homem passou voando pelo jardim, gritando que ia embora… com a bunda de fora!

 

As duas tentaram alcançá-lo, mas ele sumiu na poeira como quem abandona, no susto, a antiga pele no varal do destino.

 

Coincidência — ou pegadinha cósmica —, um amigo meu trafegava pela área quando freou o carro diante da figura em trajes sumários, ofegante, olhos de espanto, como quem fora expulso da própria história sem direito nem a escova de dentes. Por um instante, achou que fosse um assalto em andamento. Mas bastou o homem entrar e abrir a boca para o teatro mudar de ato.

 

Era um sujeito articulado, desses que filosofam no meio do caos. Entre suspiros e goles da garrafinha d’água do meu amigo, começou a discursar sobre as contradições do amor moderno, com a desenvoltura de um Sócrates de porta de pronto-socorro.

 

— As pessoas vivem negando o óbvio — disse, ajeitando o avental para esconder as partes pudendas. — Homens e mulheres não nasceram para a monogamia. Isso é invenção de igreja e novela das nove. Como já dizia Raulzito, “amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade...” e “quem gosta de maçã irá gostar de todas, porque todas são iguais...” E o Diabo rindo de todo mundo!

 

 

E seguiu, entre frases e pausas dramáticas:

— A fidelidade virou vitrine de loja: bonita por fora, oca por dentro. O desejo é teimoso como formiga em pote de açúcar: se reprime uma aqui, outra escapa ali. O pior é que nos ensinaram a censurar não só o próprio corpo, mas o da cara-metade também. Um pacto cruel de vigilância mútua.

— Não defendo a sacanagem pela sacanagem — completou, com ares de quem já atravessou descalço o deserto de espinhos dos sentimentos —, mas o relacionamento aberto, às vezes, é mais honesto que essa encenação do “até que a morte nos separe”, com o coração maluco pra pular o muro e fazer check-in noutro endereço.

 

Meu amigo, monógamo convicto, que só escutava e não tolera guerra conjugal nem como espectador, faz o que lhe parece prudente fazer: cede uma bermuda e uma camiseta esquecidas no porta-malas e para num boteco à beira da estrada, para abrir uma cerveja e organizar aquele caldeirão de teorias. Nem bem a segunda garrafa chega, surgem as duas mulheres do enrosco, faiscando pelos olhos e armadas até os dentes — de palavras, é claro.

 

Não houve tempo para trégua nem habeas corpus emocional. O filósofo virou novamente um Usain Bolt e desapareceu pela porta dos fundos, sem agradecer a saideira, deixando no ar uma dívida antiga que nem Freud consegue quitar: entender o amor sem manuais.

 

E as duas ficaram ali, encarando meu amigo. Quiseram saber o que o fugitivo havia dito antes da chegada delas. Como não é homem de meias-palavras — ao contrário, é de uma fidelidade canina no seu relacionamento afetivo —, narra com precisão quase jornalística o que ouviu.

 

Para sua surpresa, elas se entreolharam longamente, respiraram fundo e saíram juntas, lado a lado, como quem digere um xarope amargo, mas necessário. Um silencioso “é... faz sentido...” parecia ecoar entre as mulheres.

 

Ele pagou a conta e voltou pra casa. Afinal, como costuma dizer, não nasceu para ser árbitro de enroscos alheios — muito menos para testemunha ocular de adultério filosófico.

 

Vai que o delegado resolve intimá-lo, não para depor sobre o sumiço do paciente do hospital, mas para esclarecer, com todas as letras, o que é o amor e suas nuances em tempos de redes sociais e geolocalização.

junho 11, 2025

Entre o replay e o risco de avançar

Sábado passado, após mais uma rendição ao pecado da gula — desta vez com a feijoada do Empório da Mata, no Jardim Botânico, em Brasília —, despertei com o sol batendo nas canelas e a TV soprando fantasmas do passado. Num desses canais retrô, reprisavam a final da Copa de 1970.


Ilustração: Dedé Dwight



De repente, me vi aos doze anos. Magro, cabelos longos, diante da TV preto-e-branco que reinava na sala de nossa casa da Rua da Vitória, em Maceió. Meu pai, além de três irmãos, completava a torcida organizada — sem bandeirão, mas com fé no “país do futuro”.


Diferentemente de alguns colegas de racha, eu não queria imitar Pelé, Tostão ou Jair. Meu herói usava braçadeira: Carlos Alberto, lateral de alma e perfil de maestro. Era classudo até erguendo a taça Jules Rimet.


Mas a reprise do jogo me prega uma peça. Vejo Gigi Riva, atacante italiano dono de uma canhota poderosa, entortar Clodoaldo e mandar um balaço no ângulo. Era o segundo gol da Itália.


Como assim, segundo gol? Até onde sei, quem desempatou aquele jogo foi nosso Gérson. Depois, Jair e o capitão Carlos Alberto selariam os 4 a 1.


Fiquei mudo. E se o jogo reescrevesse o passado? E se eu estivesse vivendo outra realidade? Um universo paralelo — chance rara de dublar a história com a voz que só hoje, aos trancos e cabelos brancos, aprendi?


Talvez o replay fosse mais que futebol: era meu próprio VAR existencial, revisando lances de minha vida com a lente do arrependimento. O que eu faria diferente, tendo outro gabarito para as mesmas provas?


Aproveitar oportunidades perdidas? Corrigir respostas marcadas por medo, omissão ou preguiça mental? Dizer o que calei, fugir do que me feriu, ou enfrentar o que deixei pra “depois”?


Lembrei de um cartum antigo — acho que de O Pasquim. Um pintor espanhol, salivando pelos olhos diante de um esplêndido jardim, cavalete montado, paleta de cores e pincéis, tela em branco. A legenda dizia: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível.”


Raríssimos são esses momentos em que a vida se oferece como tela virgem, antes do primeiro borrão, da primeira escolha, do primeiro tropeço. Quase sempre já chegamos manchados, com tintas da meninice misturadas às culpas de adulto. Ouvir que “tudo é possível” soa heresia num mundo saturado de interrogações.


Mesmo assim, sempre aparece um otimista com frases surradas: “Viva o presente! O futuro não existe e o passado já passou.” Como se fosse possível matar a sede de ontem com o gole de hoje. Nem os gatos caem nessa — por trauma de banho morno ou medo atávico de pepino.


É difícil viver só o agora sem que a memória nos interrompa com seus trailers emocionais. A gente vive reconstruindo ruínas internas, lixando vergonhas, envernizando mentirinhas pra tornar a própria história suportável — como fazia Suassuna, que exagerava até dar inveja do improvável.


Mas falo aqui da mentira criativa, não da canalha, que engana os outros. Digo daquela que dá curva no tédio, enfeita o banal e, de quebra, ensina mais que muita verdade insossa.


Entre o café da manhã e o jantar, já fui três pessoas diferentes num mesmo dia. Incoerência? Não. Desconfie, aliás, de quem nunca muda de opinião. Sou volúvel convicto — tendo a concordar sempre com a última opinião inteligente que escuto.


Tentaram me convencer de que nasci no “país do futuro”. Mas como esse futuro vive de costas, me resta puxar na unha as raízes do atraso. Porque, se é pra pintar uma nova realidade, que seja com os traços da utopia — ainda que tremidos.


Voltando à TV, já animado com a ideia de uma nova vida, comecei a rascunhar planos com a confiança de quem aposta que o passado pode, sim, ser retocado. Mas aí, sem aviso, o tempo me puxou de volta — não com alarde, mas com o calor da tarde seca, o zumbido distante da cidade e o peso da realidade pousando sobre os ombros.


O jogo, afinal, ainda era o mesmo: 4 a 1 pro Brasil. A história seguiu seu curso. E eu ali, entre um replay de um lance e outro, admitindo que o tempo não volta. Mas às vezes se insinua, de mansinho, e cochicha no nosso ouvido.


Não pra corrigir o que passou, mas pra lembrar que ainda há uma parte da tela em branco. E, com alguma tinta no pincel e coragem nas mãos, talvez reste algo interessante por fazer.

  



 

junho 04, 2025

Domingo em chamas

Passava das oito da noite de um domingo desses em que ainda ruminamos o almoço tardio e o corpo só quer saber de sofá com almofadas. Nisso, disparou o alarme de incêndio do prédio onde finjo viver em paz. A sirene soou como a trombeta do fim dos tempos, e as escadas viraram um formigueiro de idosos em pânico.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Os elevadores, claro, travaram. A debandada rumo ao térreo parecia remake do Titanic: senhoras agarradas a poodles e yorkshires latindo, senhores segurando as bermudas com uma mão e a dignidade com a outra. E eu, admito sem nenhum pudor, fui dos primeiros a chegar na portaria com minha mulher — ela jura ter sido bruxa noutra encarnação, queimada numa fogueira e tudo.


Em poucos minutos, formou-se uma multidão de sub-septuagenários arfantes, unidos pelo susto e separados por décadas de opiniões divergentes. Uns falavam em atentado, outros em sabotagem. Houve até quem cogitasse terrorismo doméstico por causa de uma vaga na garagem.


— Quem faz um troço desses devia ser preso, depois de levar uns tapas! — vociferou um militar reformado, cuspindo indignação e pavor.
— Cheguei a sentir cheiro de fumaça vindo da varanda, e não era cigarro! — garantiu um, ainda com os óculos embaçados.
— Isso não se faz nem com inimigos! — esbravejou a médica do sexto andar, de pijama de seda, pantufas de coelhinho e máscara de colágeno na testa, parecendo uma Lady Gaga de ressaca.
— Duas escadas! Na próxima vez, prefiro morrer queimado — resmungou um senhorzinho com os joelhos avariados, calculando quantos dias de vida a descida lhe custou.


Ninguém lembrou que, semanas antes, o síndico organizara reunião sobre protocolos de incêndio. Manual impresso, cartazes nos elevadores, passo a passo na portaria... Tudo ignorado pela adrenalina e pela memória curta.


Às oito e meia, o porteiro — já rouco de tanto ouvir queixas — alertava que devia ter sido disparo acidental: talvez vapor, maresia, ou o espírito de porco de algum ex-inquilino despejado.


E todos voltaram aos seus apartamentos, arrastando pés e resmungos como zumbis de alpercatas.


Não era nove da noite quando o caos recomeçou. Desta vez, bem mais estridente, como se o prédio tivesse sido possuído pelo vocalista de uma banda de hard rock dos anos 70.


Desta vez, minha vizinha foi a primeira a descer. Esqueceu a dentadura na cabeceira e surgiu de camisola rendada que não deixava dúvidas: uma visão prévia do purgatório pra quem ainda não pecou o suficiente.


De novo, congestionamento humano nas escadas. Gritos, tropeços, justificativas insólitas:
— Eu tenho pressão alta! — bradava um.
— E eu, bursite e refluxo! — rebatia outra.
— Ajudem! Meu amigo tá no banheiro, passando mal, lá em cima! — gritava alguém em traje de academia.
— Vai ver foi o susto com o que tinha pro jantar — ironizou uma fofoqueira, celular em punho, lendo os últimos posts no grupo do condomínio.


Novo alarme falso.


Meia hora depois, o síndico — visivelmente abatido, cabelo desgrenhado, boca seca — tentou improvisar uma reunião de crise. Explicou que o sistema era sensível: vapor, maresia, partículas em suspensão... Tudo podia enganar sensores.


Ainda fez analogias, citou a ABNT, o Código Civil e até o Apocalipse bíblico, tentando convencer as criaturas mais exaltadas de que era melhor prevenir do que ser cozida viva antes do Juízo Final. Enquanto falava, uma mocinha tatuada até nas orelhas, de piercing no nariz, tirava selfies com um extintor. Outra gravava stories com a legenda: #PânicoNoCondô.


E veio a revelação. O verdadeiro motivo não era maresia, nem sabotagem, tampouco fantasma brincalhão.


Na cobertura — em obras por causa de infiltrações nas últimas chuvas —, uma gata havia parido uma ninhada de filhotes sobre duas caixas de papelão, bem ao lado de um detector de fumaça. As câmeras mostraram a heroína se debatendo em meio às contrações, junto ao botão de emergência. O sistema, sensível como coração de mãe, não resistiu à emoção e disparou em duas oportunidades.


Ironia das ironias: enquanto o prédio vivia seu falso apocalipse, novas vidas (sete pra cada filhote) chegavam de mansinho. E entre o miado dos pequenos felinos e o chororô dos humanos, uma verdade se aninhava no coração de todos: às vezes, o maior incêndio é só o susto que a vida nos prega pra lembrar que estamos mornos — nem quentes, nem frios, apenas esperando o próximo alarme tocar.





O contrabando da liberdade

A gente se distrai e, quando vê, já viveu mais de sessenta anos e continua descobrindo obviedades. Como a de que a liberdade plena só se alc...