Esta semana, revisitando as memórias de um verão distante, bateu de novo aquela inveja artística ao ouvir “Luiza”, de Tom Jobim, e “Carolina”, de Chico Buarque. Não a inveja mesquinha, mas a admiração inquieta, quase resignada, por não encontrar resposta para uma pergunta que me persegue: por que nunca criei algo tão arrebatador? Algo capaz de fazer alguém fechar os olhos e balançar devagar numa rede, como fazia meu tio Enoch na varanda de sua casa na tórrida Caxias (MA), embalado pela poesia de “Marina”, de Caymmi.
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Ilustração: Uilson Morais (Umor) |
Talvez o que mais me fascine na música seja justamente o que ela não diz, mas insinua. O silêncio que cochila entre as notas é o mesmo que encorpa as palavras na escrita – um espaço onde a imaginação encontra abrigo e as emoções criam raízes.
Mas a realidade é dura. Nunca compus nada que chegasse perto de uma canção. Para ser justo comigo mesmo, talvez isso se deva ao fato de ser praticamente nula minha relação com instrumentos musicais. Nem pandeiro, nem reco-reco, nem sequer um tamborim. É como se as notas me evitassem, conspirando para preservar o silêncio absoluto na partitura da minha vida.
O que me consola é saber que figuras como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini também nunca tocaram um instrumento. Adoniran, o mestre das crônicas cantadas, não precisou dedilhar um violão para criar "Saudosa Maloca" ou "Trem das Onze". E Vanzolini? O silêncio das madrugadas paulistanas bastou para transformar em poesia os dramas urbanos de "Ronda" e "Volta por Cima".
Talvez porque eles, geniais que eram, soubessem que o extraordinário é feito do corriqueiro, como a grama seca que rebrota sem barulho ao primeiro chuvisco. Eu, sempre obcecado por algo maior, ignoro que o sublime, tantas vezes, se camufla no simples – no rangido do armador de uma rede na varanda ou no chiado de um velho disco de vinil. Não é a falta de talento que me paralisa, é minha mania de desprezar o que já está ao meu alcance, em busca de um horizonte inalcançável.
Lembro do álbum duplo "Há sempre um nome de mulher", uma homenagem a figuras femininas fictícias e inesquecíveis. Era janeiro de 1988 quando dei esta obra de presente ao tio Enoch. Comovido, ele a recebeu com a gratidão que só a música inspira. Mais do que uma celebração às mulheres, era um tributo ao talento incomparável de Caymmi, Chico e Tom – compositores que encontraram na música um caminho para a eternidade.
E é essa eternidade que me fascina e me tortura ao mesmo tempo. "Luiza", com sua letra carregada de imagens poéticas, como o “raio de Sol nos teus cabelos” que explode em “sete cores”. Talvez o que a torne tão inesquecível não seja apenas a beleza das metáforas, mas a habilidade do autor em transformar uma saudade comum em algo extraordinário. E "Carolina", com seus olhos fundos que guardam “a dor de todo este mundo”, imóvel sob uma árvore melancólica enquanto tudo gira ao seu redor? É a glória eterna em forma de melodia.
Essas canções têm algo em comum: são histórias que transcendem o papel e a melodia, alcançando uma universalidade que eu, apenas um presumido cronista, só posso invejar. Mas sem desistir, que fique claro!
Talvez o meu maior obstáculo, repito, seja a incapacidade de aceitar o simples. Perseguindo o inalcançável, esqueço que o sublime não se escreve – ele se sente. Mas, se dizem que os sonhos nunca envelhecem, a luta continua.
Se bem que ontem, enquanto ouvia "Luz do Sol" ("Que a folha traga e traduz em verde novo em folha...”), de Caetano Velloso, e "Aquarela" (..."O futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar..."), de Toquinho, quase me convenço de uma vez por todas de que minha missão não é compor, mas traduzir o que a música deixa em nós. Porque o silêncio não é vazio. É nele que as notas se preparam para nascer e onde as lembranças se aninham.
Se nunca conseguir criar algo que habite o espaço invisível entre as notas, que minhas crônicas, ao menos, sejam capazes de revelar o silêncio cheio de sentidos que a música deixa em nós. Porque é nesse vazio que os verões renascem, as saudades despertam, e o eterno nos apanha, desprevenidos.