quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Pano de fundo: o fim do papel?

Esqueça tudo que você sabe sobre papel higiênico. O futuro (ou seria o passado?) reserva algo inesperado e preocupante para o seu banheiro.

 

Nada como um bom e confiável rolo de papel, macio e reconfortante, não é? Um marco civilizatório definitivo, separando o primitivismo da dignidade moderna. Mas, em tempos em que até a roda anda ansiosa com tanta reinvenção, surge uma nova tendência nas redes sociais: substituir o papel por panos reutilizáveis. Sim, panos. Aqueles de enxugar louça ou do lavabo agora podem ganhar status de item sanitário premium.

Reprodução/TikTok


 

Esta semana, uma família de seis pessoas viralizou no TikTok ao compartilhar sua experiência com essa alternativa. Jazmine, a matriarca da resistência ao papel higiênico, explicou que a decisão foi motivada pelo desejo de levar uma vida mais sustentável. Assim, cada membro da família tem seu kit de paninhos, que usa, lava e reutiliza. Tudo armazenado numa cesta, como quem organiza calcinhas, cuecas, meias ou pães caseiros. Um verdadeiro enxoval de alta costura para o momento mais íntimo após o café da manhã.

 

Os adeptos defendem que os panos preservam o meio ambiente e o bolso, reduzindo o desmatamento e o consumo de celulose. No entanto, a adesão à prática exige planejamento e uma rotina impecável de lavagens – afinal, ninguém quer errar na cor do pano e pegar um que já tenha antecedentes pastosos.

 

Os céticos, por sua vez, argumentam que trocar o rolo pelo retalho pode ser um convite ao caos doméstico, trazendo dúvidas acerca da higiene, logística e, principalmente, sobre aquele momento emergencial onde ninguém tem a mínima condição de esticar a conversa sobre os impactos ambientais da própria evacuação. Mas Jazmine rebate, segura de sua contribuição à posteridade: há panos de tamanhos diferentes para diferentes situações, como quem fala de um jogo de cama de luxo. E a lavagem frequente? Fundamental! Afinal, não se trata de um revezamento olímpico de dejetos humanos.

 

A polêmica reacendeu velhos métodos de higiene. Se você não sabe, antes da era dourada do papel higiênico, o ser humano já havia dado seus pulos criativos. Os romanos, por exemplo, usavam um tersorium – uma esponja presa a um cabo, mergulhada em água salgada ou vinagre. Isso nos banheiros públicos, onde podiam trocar ideias e especular sobre a vida alheia enquanto faziam o descarte orgânico. Já os vikings tinham uma abordagem, digamos, mais colaborativa: em terra, lã de ovelha resolvia o problema; no mar, uma corda pendurada para fora do barco cumpria a função – usada coletivamente, diga-se de passagem, numa folia de coliformes benzida pela boa vontade das ondas.

 

Os esquimós, acostumados ao frio polar, tinham uma solução gelada: neve. E os colonos americanos do século XVII? Espigas de milho – às vezes inteiras, às vezes só a palha ou o sabugo. No Japão antigo, um gomo de bambu prestava o serviço, limpando por dentro e por fora. Serviço completo.

 

Se existissem redes sociais na Idade Média, certamente teríamos posts entusiasmados sobre a melhor textura para um galho seco, um sabugo de milho ou um gomo de bambu.

 

A verdade é que a civilização tentou de tudo antes de inventar o rolo de papel higiênico. Meu amigo Arnaud, falecido no início dos anos 1990, defendia inclusive a ducha e sabonete, aliado ao papel. Dizia ele, entre goles e reflexões etílicas: “Experimenta passar um pouco de titica no braço e limpar só com papel, depois cheira e vê se está limpo mesmo!”. Pois é, nem tudo se resolve no seco.

 

Se você está tentado a aderir ao movimento dos panos, vá em frente. Mas lembre-se: a modernidade trouxe algumas conquistas que merecem ser protegidas com unhas, dentes e, sobretudo, um rolo de papel sempre ao alcance das mãos. O banheiro continuará sendo um espaço também reservado a leitura e reflexões filosóficas, porém ninguém deseja voltar ao tempo dos romanos e compartilhar uma esponja suspeita.

 

Mas quem sou eu para julgar esses novos (ou velhos) costumes? Se a moda pega, talvez o futuro reserve banheiros high-tech onde um braço robótico estenda um pano de microfibra e um algoritmo avalie a “eficiência do serviço”. No fundo, sem trocadilho, tudo se resume à ilusão de progresso – e ao eterno dilema de como sair limpo dessa história. O que importa não é o método, mas a garantia de que ninguém precise dar uma segunda checada pelo olfato.

 

E que ninguém invente o "desafio do pano comunitário". Aí sim, talvez decretemos estado de calamidade pública: a humanidade vai precisar ser passada a limpo.


 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Anália, o banco e o bordel

Há coisa de quatro décadas, numa das regiões mais desiguais do Planeta, uma mulher chamada Anália – não aquela de Caymmi, que não foi para Maracangalha; mas outra – ousou negociar com o maior banco local e, com inteligência e sagacidade, deixou uma lição inesquecível sobre moralidade e poder.


Proprietária da boate “Naná Drinks”, ela enfrentava dificuldades financeiras quando propôs o parcelamento de suas dívidas, que somavam cerca de 4 milhões da moeda da época. Um perito foi designado para avaliar sua capacidade de pagamento e elaborou um relatório que se tornaria lendário – não pelos números, mas pelas descrições tão vívidas que quase fizeram os funcionários do banco se engasgarem de rir.

 

Um dos chefões, no entanto, considerou o relatório “incompatível com o linguajar polido e a sobriedade da Casa”. Mas a questão crucial permanecia sem resposta: Anália teria ou não condições de pagar?



Ilustração: Uilson Morais (Umor)



A “Naná Drinks”, eufemismo para suavizar expressões menos diplomáticas como bordel, cabaré ou rendez-vous, ocupava um antigo prédio de alvenaria com sete cômodos, afastado da zona oficial de prostituição. A proprietária liderava “um plantel” de seis jovens entre 18 e 21 anos que cumpriam uma jornada de trabalho ditada pela demanda. “Toda hora é hora, todo dia é dia”, registrou o perito, com um toque irônico.

 

Segundo ainda o perito, os frequentadores eram figuras influentes da região e visitantes ocasionais, atraídos não só pela localização estratégica – distante 20 km do centro da cidade, à margem da rodovia federal –, mas também pelo prestígio do estabelecimento. E não apenas isso, supõe-se. O faturamento impressionava: o rendimento mensal ultrapassava 1,2 milhão, com uma margem líquida de cerca de 400 mil após o pagamento de despesas como aluguel, água e energia, além das tarifas dos “serviços prestados pelas meninas”.

 

Apesar dos números, o histórico de Anália preocupava. Sua imagem junto ao banco não era tão boa quanto a que desfrutava no ramo explorado. As dívidas vinham de financiamentos rurais subsidiados para plantio de arroz, milho e mandioca – valores desviados para um “negócio mais lucrativo”: a boate que deu origem à “Naná Drinks”, inicialmente instalada nos arredores de um povoado próximo. Percebendo o movimento fraco naquela localidade, Anália transferiu a “operação” para a cidade onde estava sua agência bancária, um mercado em “franca evolução”.

 

O laudo do perito concluía que Anália, agora bem mais estruturada, poderia quitar suas dívidas sem os riscos de adversidades climáticas inerentes à região. Mas o chefão que torceu o nariz para o relatório, zelando pela imagem do banco (ou a própria, talvez), negou o parcelamento e encaminhou o caso para a Justiça – caminho que só agrada mesmo advogados e meirinhos.

 

Mas Anália não era mulher de aceitar um “não” sem luta. Dias depois, foi pessoalmente ao banco. O chefão, acomodado em sua poltrona de couro, tragou o cigarro sem pressa, como quem saboreia o prazer de negar: 

– Agora, a senhora deve procurar seus direitos na forma da lei. 

– Claro, senhor, mas podemos conversar olho no olho? Só um minutinho... 

– Tudo bem, mas só decidimos com base em fatos e documentos…

 

Com um gesto descuidadamente teatral, Anália abriu a bolsa e deixou algumas fotos caírem no chão, entre cartões, chaves e cheques. O chefão, intrigado, arregalou os olhos ao ver nas imagens figuras conhecidas. Entre elas, ele próprio, bem acompanhado, nu cintura acima, segurando um copo de uísque.

– O que diabo é isso? – gaguejou, sentindo o chão lhe faltar. 

– Ah, me desculpe, senhor. São recordações dos clientes da “Naná Drinks”. Um jornalista quer fazer uma reportagem sobre nossa boate e devo me encontrar com ele daqui a pouco...

 

O silêncio pesou. O chefão, antes tão seguro, agachou-se para recolher as fotos com mãos trêmulas. Conferia uma a uma, como se pudesse apagá-las apenas olhando:

– Veja como são as coisas… Como somos irresponsáveis depois de algumas doses, hein?! 

– Se o senhor quiser, pode ficar com elas. Nem se preocupe com os negativos, eles estão bem guardados no meu cofre.

 

O chefão ajeitou o colarinho e, sem encarar Anália diretamente, abreviou a conversa: 

– Bem… Podemos rever a decisão. Tudo dentro das normas, é claro!

 

Meia hora depois, Anália tinha em mãos o novo contrato, assinado, e uma lição a ser compartilhada com suas colegas de trabalho sobre hipocrisia e moralidade seletiva: certos homens só enxergam aquilo que ameaça a seriedade que fingem ostentar. E no mundo dos que pregam a virtude, o verdadeiro poder está com quem conhece as regras – e ousa usá-las a seu favor. 

 

Os tempos mudaram, mas a essência humana, não. Anália saiu satisfeita. Na porta do banco, respirou fundo, ajeitou o vestido e sorriu. No teatro da moralidade, afinal, quem manda não é quem veste terno e gravata, mas quem conhece os bastidores.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O silêncio entre notas e palavras

Esta semana, revisitando as memórias de um verão distante, bateu de novo aquela inveja artística ao ouvir “Luiza”, de Tom Jobim, e “Carolina”, de Chico Buarque. Não a inveja mesquinha, mas a admiração inquieta, quase resignada, por não encontrar resposta para uma pergunta que me persegue: por que nunca criei algo tão arrebatador? Algo capaz de fazer alguém fechar os olhos e balançar devagar numa rede, como fazia meu tio Enoch na varanda de sua casa na tórrida Caxias (MA), embalado pela poesia de “Marina”, de Caymmi.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Talvez o que mais me fascine na música seja justamente o que ela não diz, mas insinua. O silêncio que cochila entre as notas é o mesmo que encorpa as palavras na escrita – um espaço onde a imaginação encontra abrigo e as emoções criam raízes.  

 

Mas a realidade é dura. Nunca compus nada que chegasse perto de uma canção. Para ser justo comigo mesmo, talvez isso se deva ao fato de ser praticamente nula minha relação com instrumentos musicais. Nem pandeiro, nem reco-reco, nem sequer um tamborim. É como se as notas me evitassem, conspirando para preservar o silêncio absoluto na partitura da minha vida.

 

O que me consola é saber que figuras como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini também nunca tocaram um instrumento. Adoniran, o mestre das crônicas cantadas, não precisou dedilhar um violão para criar "Saudosa Maloca" ou "Trem das Onze". E Vanzolini? O silêncio das madrugadas paulistanas bastou para transformar em poesia os dramas urbanos de "Ronda" e "Volta por Cima". 


Talvez porque eles, geniais que eram, soubessem que o extraordinário é feito do corriqueiro, como a grama seca que rebrota sem barulho ao primeiro chuvisco. Eu, sempre obcecado por algo maior, ignoro que o sublime, tantas vezes, se camufla no simples – no rangido do armador de uma rede na varanda ou no chiado de um velho disco de vinil. Não é a falta de talento que me paralisa, é minha mania de desprezar o que já está ao meu alcance, em busca de um horizonte inalcançável.


Lembro do álbum duplo "Há sempre um nome de mulher", uma homenagem a figuras femininas fictícias e inesquecíveis. Era janeiro de 1988 quando dei esta obra de presente ao tio Enoch. Comovido, ele a recebeu com a gratidão que só a música inspira. Mais do que uma celebração às mulheres, era um tributo ao talento incomparável de Caymmi, Chico e Tom – compositores que encontraram na música um caminho para a eternidade. 


E é essa eternidade que me fascina e me tortura ao mesmo tempo. "Luiza", com sua letra carregada de imagens poéticas, como o “raio de Sol nos teus cabelos” que explode em “sete cores”. Talvez o que a torne tão inesquecível não seja apenas a beleza das metáforas, mas a habilidade do autor em transformar uma saudade comum em algo extraordinário. E "Carolina", com seus olhos fundos que guardam “a dor de todo este mundo”, imóvel sob uma árvore melancólica enquanto tudo gira ao seu redor? É a glória eterna em forma de melodia.


Essas canções têm algo em comum: são histórias que transcendem o papel e a melodia, alcançando uma universalidade que eu, apenas um presumido cronista, só posso invejar. Mas sem desistir, que fique claro!


Talvez o meu maior obstáculo, repito, seja a incapacidade de aceitar o simples. Perseguindo o inalcançável, esqueço que o sublime não se escreve – ele se sente. Mas, se dizem que os sonhos nunca envelhecem, a luta continua.


Se bem que ontem, enquanto ouvia "Luz do Sol" ("Que a folha traga e traduz em verde novo em folha...”), de Caetano Velloso, e "Aquarela" (..."O futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar..."), de Toquinho, quase me convenço de uma vez por todas de que minha missão não é compor, mas traduzir o que a música deixa em nós. Porque o silêncio não é vazio. É nele que as notas se preparam para nascer e onde as lembranças se aninham.


Se nunca conseguir criar algo que habite o espaço invisível entre as notas, que minhas crônicas, ao menos, sejam capazes de revelar o silêncio cheio de sentidos que a música deixa em nós. Porque é nesse vazio que os verões renascem, as saudades despertam, e o eterno nos apanha, desprevenidos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Não deu certo, Brigitte

Há duas semanas, publiquei neste espaço uma crônica sobre Brigitte, ou melhor, Abigail Alves dos Prazeres. Lenda viva dos casarões do bairro portuário de Jaraguá, em Maceió, reinou como diva do cabaré Night and Day. Generosa e irreverente, ela deixou uma marca inapagável em quem teve o privilégio de conhecê-la. No início deste ano, aos 91 anos, Maceió se despediu dela com um cortejo único: lágrimas e celebração, embalados pela canção "Pagu", de Rita Lee e Zélia Duncan.

Entre as lembranças, emergiu o seu principal legado: uma carta escrita há três décadas, um manifesto irônico e sagaz sobre envelhecer com dignidade. Nela, Brigitte disparava conselhos mordazes: aceite a velhice sem drama, cuide da educação e da higiene e evite excessos – de maquiagem, minissaias ou nostalgias. Gastar sem culpa também fazia parte do roteiro, pois, segundo ela, heranças às vezes premiam a ingratidão. “Leia, trabalhe e viva sua vida”, pontuava, com a leveza e o humor que sempre a definiram. Sua despedida foi uma celebração de tudo o que ela foi e inspirou: rir de si mesmo e seguir em frente, sem arrependimentos, é o luxo mais acessível e transformador.


Minutos depois da publicação da crônica, tive que explicar a alguns leitores que o texto não era autobiográfico nem baseado em fatos. Tudo pura ficção. Mas não adiantou. Alguns insistiram que realidade e imaginação não poderiam andar tão próximas. Um deles até me fez uma proposta inusitada: descrever o encontro, no plano espiritual, entre Brigitte e Benedito Alves dos Santos, mais conhecido como Biu Mossoró, ou simplesmente Mossoró.



Ícone da noite maceioense, Mossoró foi proprietário do cabaré Tabariz – mais tarde, transferido para a parte alta da capital, rebatizado de Churrascaria e Boate Areia Branca –, um dos principais redutos da "cadeia produtiva do prazer" entre os anos 1950 e 1980. Seu estabelecimento atraía autoridades, boêmios, coronéis de engenho e estrangeiros de todos os recantos, sob regras inflexíveis: nada de contrabando ou drogas ilícitas. E sempre foi questão de honra sua pontualidade, tanto como contribuinte de impostos quanto no pagamento de duplicatas e outros compromissos bancários.


Ele também se orgulhava de nunca ter ocorrido um assassinato em sua casa noturna. Nem subornava ninguém, apenas lubrificava relações: uma dose de uísque aqui, uma água de coco ali, e a vida seguia seu curso. Suas “colaboradoras” eram escolhidas a dedo, com seu olhar clínico para beleza e comportamento. Em troca, oferecia moradia, comida e até assistência médica. Pai Véio, como também era conhecido, tinha sua ética particular: nunca transgredia a lei. Segundo ele, apenas a contornava, com jeito e todo respeito.


Muitas histórias. Conta-se que, em certo carnaval, ele adquiriu uma mesa para o baile de terça-feira em um famoso clube alagoano, para premiar três de suas funcionárias mais esforçadas. Resolveu acompanhá-las, mas foi barrado pelo porteiro, que alegou ordens da diretoria por conta das “acompanhantes suspeitas. Mossoró reagiu: “Peraí, meu filho, suspeitas são as que estão aí dentro. Essas aqui são putas legítimas, e das melhores...”.


Ele ousou até na publicidade, com um comercial exibido na extinta TV Rádio Clube de Pernambuco, cujo sinal alcançava Maceió. O anúncio, direto e inesperado, confundia inclusive turistas: "Churrascaria e Boate Areia Branca – a continuação do seu lar”. E nos fins de semana, vira e mexe era visto circulando devagar em um Ford Galaxie, acompanhado de jovens bem-vestidas e perfumadas, anunciando “novidades” à clientela. Morria de rir do cinismo de alguns de seus clientes que, limpando os óculos, fingiam não o ver passar.


Outro caso famoso envolveu sua ida ao dentista, que recomendou uma nova dentadura superior e outra inferior. Mossoró bateu no bolso e retrucou: “Tá vendo isso aqui, doutor? É dinheiro! Na minha boca só entra coisa superior...” E a fama do “Pai Véio” inspirou até o famoso Martinho da Vila, que, numa de suas turnês pelo Nordeste, criou um samba com um refrão incontestável:

"Só em Maceió, 

Só em Maceió
É que se pode vadiar
Com as meninas do Mossoró…”


Quase aos 80 anos, em 1995, ele ainda reinava na varanda de sua residência no bairro de Pajuçara, refletindo sobre uma vida em que cultura talvez tenha faltado, mas sabedoria nunca. Partiu levando consigo segredos que ninguém mais ousaria contar.

 

Voltemos à proposta que recebi para descrever o encontro entre Brigitte e Mossoró, no plano espiritual. A ideia é sedutora, ę poderia começar com ele estendendo os braços para recebê-la: “Minha filha, ver você só pode ser imaginação, porque não me recordo de seu perfume...”

 

Mas não daria certo. São estrelas de constelações distintas. Ela, leve como uma pluma que desafia o tempo. Ele, destemido como um timoneiro que não se dobra aos caprichos do vento. São fachos de luz que nunca se cruzam na eternidade da noite, embora iluminem o mesmo horizonte: a beleza e as contradições de sermos humanos, imperfeitos e, ainda assim, inesquecíveis. 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Vendaval de ilusões

Você já deve ter ouvido falar dos infames três “P” presentes nos ensaios sociológicos: pobre, preto, da periferia. Antonio Domingos, ou simplesmente Tonho, baiano da gema, daqueles que conhecem cada pedra das ladeiras de Salvador, carregava esse estigma como uma segunda pele. Nascido em 1964, emergiu da barriga da miséria para o mundo em plena “revolução redentora” de um país que falava em milagre econômico e pregava o “ame-o ou deixe-o”.

Ainda menino, Tonho foi apresentado à amargura da exclusão social. Sua mãe, Dona Flor, costureira, equilibrava-se entre agulhas, dívidas e dúvidas para garantir o básico. Ele cresceu ouvindo que o futuro era luxo reservado a outros e que seu lugar no mundo era tão minúsculo quanto o cubículo de sonhos limitados de onde espiava, pela fresta da imaginação, os luxos que nunca experimentaria.

 

No início da adolescência, enquanto o Brasil se debatia entre a censura e a criatividade, a novela Pecado Capital arrebatava as telas. Escrevendo a trama às pressas para substituir a censurada Roque Santeiro, Janete Clair apresentou ao país as contradições do dinheiro fácil. Carlão, um taxista que encontra uma mala de dinheiro roubado, enfrentava o dilema moral entre devolvê-la ou sucumbir ao sonho burguês de resolver a vida da noite para o dia, em um golpe de sorte.

 

“Dinheiro na mão é vendaval”, advertia Paulinho da Viola no samba-tema da novela. Uma lição que Tonho aprenderia da forma mais literal possível. Aos 19 anos, em 1983, ele quebrou o estigma dos três “P” ao acertar sozinho na loteria: R$ 33 milhões em valores de hoje. Para um jovem que sobrevivia ao sabor da fome, a fortuna chegou como um milagre – ou uma maldição.

 

Há quem diga que todo ser humano é a soma não das suas decisões, mas do que, pensando melhor, opta por não fazer. O primeiro ato de Tonho foi exorcizar um trauma antigo. Expulso algumas vezes, pelos seguranças, das cercanias do hotel mais caro de Salvador, resolveu ali ocupar a suíte presidencial por prazo indeterminado, pagando à vista. “Agora é a minha vez de pisar no tapete macio”, teria dito. Mas a conquista não bastava. Como todo vendaval, sua nova vida varreu tudo à frente, deixando um rastro de excessos.

 

O que se seguiu foi uma saga digna dos três “B”: bacanais, bebidas e beldades. Festas barulhentas, repletas de loiras, morenas e ruivas, incomodavam até os hóspedes mais tolerantes. O gerente do hotel, pragmático, se fazia de mouco: “os azarados que se mudem!”. Roupas de grife, usadas apenas uma vez, descartadas e uma busca desmedida por prazeres efêmeros. 

 


Em uma noite particularmente solitária, Tonho encarou o travesseiro de penas de ganso como se ele pesasse toneladas. Pensou em Dona Flor, ainda curvada sobre a máquina de costura, sob a luz fraca de uma lâmpada, sustentando a mesma realidade de que ele fugira, mas não transformara. Enquanto ele flanava em tapetes macios, ela seguia pisando no pedal da máquina.


Lembrou-se do dia, ainda menino, em que Dona Flor esticou o tecido mais caro da loja para cortar um vestido de festa para uma cliente. Enquanto a tesoura dançava, escapuliu: “Um dia ainda iremos vestir coisa boa, meu filho”. Mas a promessa ficou presa entre a fita métrica e a tesoura, como tudo o que ela nunca teve para si.

 

E, como todo vendaval, o dinheiro passou. Com a devolução do primeiro cheque sem fundos veio a ressaca. A fonte secou e, com ela, refluíram os delírios de grandeza. Sobraram não apenas os olhares de reprovação, mas também o eco das oportunidades desperdiçadas. Milhares de meninos continuavam marginalizados nos becos e morros da Bahia. O milagre que os orixás concederam a Tonho evaporou como chuvisco no asfalto quente.

 

Questionado sobre o desperdício, ele retrucava: “Gastei e dei alegria pra muita gente, menos pra quem esperava que eu fosse salvar o mundo”. Mas o peso do travesseiro nunca desapareceu. Dona Flor não teve a casa que sonhava, enquanto seu filho transformava o curto reinado em um desfile de excessos.


Hoje, aos 60 anos, Tonho vive de bicos, inclusive como garçom em festas onde conta sua história com graça e leveza. “Já estive dos dois lados da bandeja”, brinca. Mas a sombra de Dona Flor, agora aos 96 anos, pesa mais que qualquer travesseiro de penas.


Tonho perdeu quase tudo, menos o que o luxo não pode comprar: a certeza de que, durante algum tempo, foi o rei e o bobo de sua própria corte de ilusões. Sua história, que poderia ter sido um ponto de virada, tornou-se um eco abafado na Baía de Todos-os-Santos. Restam o brilho no olhar e o riso fácil – não de quem venceu, mas de quem ousou sonhar.

 

 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Brigitte não morreu

Quem me contou esta história foi um velho parceiro de trabalho, frequentador assíduo, na juventude, dos becos da Rua Sá e Albuquerque, no bairro de Jaraguá, em Maceió. Na primeira semana do ano, ele parecia flutuar no tempo, relembrando os casarões do bairro portuário, onde a vida pulsava muito antes das luzes frias dos postes modernos. Ali, as boates pareciam cenários de romances noir, com o eterno vai-e-vem da profissão mais antiga do mundo – numa época em que influencers ainda nem existiam. E a mais célebre delas era a lendária boate Night and Day.

Ele riu ao recordar o descompasso do coração sempre que alguém gritava: “Tintureira à vista!”. Não era peixe graúdo da Praia da Avenida da Paz, mas a viatura preta que patrulhava a zona portuária. Moleques com hormônios em ebulição, pegos bebendo, comendo (literalmente!) ou apenas absorvendo a vertigem do recinto, tinham destino certo: uma noite na cadeia, com ressaca e cigarros compartilhados com os detentos.


No meio daquela efervescência, reinava Brigitte – ou, como foi batizada ao nascer, Abigail Alves dos Prazeres. Diva dos casarões, decidiu rebatizar-se em homenagem à estrela francesa que brilhava nos sonhos de muitos jovens pelo mundo afora. Brigitte era generosa e vaidosa, dispensando o pagamento de alguns sortudos bem-apessoados, deixando atrás de si um rastro de suspiros e lembranças inesquecíveis.


Semana passada, Maceió deu seu último adeus a Brigitte. Aos 90 anos, ela foi internada após um infarto, mas não resistiu. No cortejo, organizado por meu amigo e alguns contemporâneos, uma Kombi com alto-falantes tocava Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan. Um verso, em especial, ecoava como prece à diva: “Minha força não é bruta, não sou freira nem sou puta...”.




Curioso com tamanha reverência, perguntei a meu amigo o motivo da homenagem. Ele sorriu, abriu um envelope pardo e revelou o maior legado de Brigitte: uma carta-manifesto escrita há mais de três décadas, endereçada às antigas colegas da velha guarda das boates – muitas delas, agora, matriarcas respeitáveis.


Enquanto organizava o cortejo, ele encontrou a carta, guardada com zelo durante anos. Era como se Brigitte estivesse presente, conduzindo a despedida com sua irreverência e sabedoria. Ele me mostrou o texto, dizendo: “É isso que ela queria que fosse lembrado. Não os casarões ou as festas, mas o que ela aprendeu e quis dividir com a gente”.


A introdução da carta era uma aula de estilo:
"Peço desculpas às destinatárias destas linhas – putas, como eu, aposentadas ou quase – que ainda acham que a velhice é só um estado de espírito. Digo logo: não é. Gostem ou não, velhice é um estado de acelerada decomposição do corpo e da mente..."


O restante do texto era um manual direto, irônico e prático, com dicas úteis a todas as pessoas que desejam envelhecer com dignidade:

  1. Aceite que dói menos. Nada de eufemismos como “melhor idade”. Velhice não é crime, só é constrangedora em alguns momentos.
  2. Ao telefone, nunca diga: “Ah, lembrou que tem mãe, hein?!”. A linha pode ficar muda para sempre.
  3. Boa educação é essencial. Nada de sons, cheiros e gestos desagradáveis.
  4. Chiclete? Só em casa. Nada de parecer uma vaca ruminando no caminho do brejo.
  5. Cirurgia plástica? Se quiser virar uma caricatura, vá em frente.
  6. Coma, beba e fale menos. Velhas sóbrias e magras são menos chatas e mais saudáveis.
  7. Cuidado com nostalgia e otimismo excessivos. Velhas tristes são insuportáveis; alegres demais, tolas.
  8. Evite maquiagem pesada. Já parecemos velhas; ninguém precisa exagerar na caricatura.
  9. Gaste com critério, mas gaste. Herança, quase sempre, premia ingratidão.
  10. Higiene impecável. Nem o diabo aguenta velha fedorenta e peluda.
  11. Jamais pergunte: "Estou gorda?" ou "Você me ama?". Você já sabe as respostas.
  12. Leia. Livros são aliados quando a conversa fica sem graça.
  13. Minissaias? Nem pensar. Isso vale também para blusas tomara-que-caia ou curtinhas, com o umbigo de fora. 
  14. Não custa lembrar: ter cara de rica envelhece.
  15. Netos? Ame à distância. Criar, só na ausência dos pais.
  16. Poupe os outros de histórias antigas. Elas só interessam a você.
  17. Sobrancelhas. Se fizer qualquer coisa de errado nelas, acaba com seu rosto.
  18. Trabalhe, se puder. Colegas de trabalho te toleram melhor que sua família.
  19. Viajar é bom; descrever viagens, não. Diga apenas destino e duração. Se alguém quiser saber mais, responda “sim”, “não” ou, no máximo, “depende”.
  20. Viva só a sua vida. Aceite que dói menos. Filhos e netos têm suas próprias jornadas.


O texto encerrava com um toque de mestre:
"Sei que minha capacidade de explicar termina onde começa a de vocês entenderem, mas já me dou por satisfeita em tentar."


Brigitte não morreu. Continua viva em uma lição que transcende a sua história: quando a maquiagem da vida desbota, o verdadeiro luxo é rir de si mesmo e seguir devagar, leve, sem eufemismos ou arrependimentos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Radares da alma

Faça chuva ou sol, todo começo de ano é sempre a mesma coisa: estradas lotadas, imprudência, pressa – e o número de acidentes dispara. Culpa de quê? De tudo um pouco: excesso de álcool, de carros, falta de paciência, desrespeito às placas de sinalização, entre outros. Em tempos de radares cada vez mais sofisticados, me pergunto: será que eles já começaram a enxergar além do asfalto? Será que, enquanto monitoram nossos carros, não acabam detectando também outros impulsos que aceleram dentro de nós?

Esses novos vigias eletrônicos deixaram de ser simples “caça-velocidade” para se tornarem uma espécie de “radares da alma”. Estão mais atentos do que sogra desconfiada: viraram "super fiscais" rodoviários, prontos para corrigir não só os apressados, mas qualquer criatura que ouse desafiar as sagradas leis do asfalto. E, ao fazer isso, parecem querer mais do que apenas reduzir acidentes: corrigem comportamentos, como mestres severos do trânsito. 



Em cidades como Curitiba e Salvador, esses xerifes digitais operam com sensores de alta precisão e inteligência que detectam infrações mais rápido que motoboy com pressa de ir ao banheiro. Monitoram tudo: desde o que você faz ao celular até aquele olhar enviesado para quem passa na calçada. E não basta uma paradinha na faixa para evitar o avanço no sinal vermelho. Agora, eles sabem quantas pessoas estão no carro, se você desafina cantando sua música favorita, se usa regata (sete pontos na carteira de habilitação!) ou, quem sabe, se limpa o nariz com os dedos.

No passado, para os imprudentes era bastante decorar os pontos críticos e dar aquela freada estratégica antes do flash. Hoje, os radares ajustam os limites de acordo com o fluxo e, nos horários de pico, até toleram o famoso “grudado no para-choque alheio”. Mas não se engane: continuam implacáveis com os afoitos que se acham a reencarnação de Ayrton Senna.

 

Essas maravilhas tecnológicas cobrem um raio de até 100 metros, flagrando quem ignora a faixa de pedestres, avança o sinal, faz conversões proibidas (de time ou religião, ainda pode!) ou exibe aos “adversários” o dedo médio (enquanto os outros são contidos pelo polegar) em um dos gestos de insulto mais antigos que se tem notícia. 

 

E não para por aí. Agora, parte dos radares calculam a velocidade média entre dois pontos. Se você completa o trecho mais rápido que o esperadoparabéns: além da multa, levará de brinde pneus desgastados pelo susto na freada. Na BR-050, em Minas Gerais, por exemplo, onde o sistema também está em teste, a concessionária promete mais segurança e uma “gestão” do trânsito – ou, pelo menos, mais arrecadação. 

 

Até a instalação desses espiões sofisticados sofreu uma repaginada. Esqueça os velhos sensores que exigiam quebradeira no asfalto. Agora, câmeras de alta definição fazem o trabalho sujo, registrando infrações, fluxo e até perfis de comportamento no trânsito. Um verdadeiro Big Brother rodoviário.

 

Os chefões da Velsis, empresa responsável por esses equipamentos, dizem que estão trazendo mais precisão à gestão do tráfego. Por enquanto, os radares só podem monitorar, já que multar por velocidade média ainda depende de ajustes no Código de Trânsito. Mas, com a fome insaciável de toda máquina pública, não se surpreenda se a regulamentação chegar antes que os motoristas se adaptem.

 

O avanço tecnológico é fascinante, mas o que realmente importa é o simbolismo por trás disso. Estamos vivendo uma nova era de fiscalização, onde os radares não apenas vigiam infrações. Eles moldam comportamentos, exigem autocontrole e, de certo modo, tentam “educar” o motorista. É como se esses mentores digitais estivessem ali para nos ensinar não só a dirigir, mas a viver melhor. Pense: superar impulsos, ser paciente e incorporar a direção defensiva como um estilo de vida – pelo menos até onde o saldo bancário aguenta.

 

E se essa lógica fosse além do trânsito? Já imaginou radares éticos instalados nos corredores do serviço público, flagrando ultrapassagens nos limites da moralidade, contratos fantasmas cruzando sinais vermelhos e promessas vazias estacionadas na mesmice secular de nossas desigualdades sociais?

É claro que radares éticos enfrentariam desafios. Quem garante que esses “superfiscais” não seriam manipulados por aqueles que já deveriam estar com a carteira de moralidade cassada? Talvez fosse preciso algo mais profundo: uma tecnologia que não apenas vigiasse, mas que despertasse a consciência individual de cada um. Porque, a rigor, o radar mais implacável ainda é aquele que carregamos dentro de nós.

Nossa consciência – silenciosa, inescapável – não cobra multas, mas também não aceita “jeitinhos”. Ela não desvia o olhar diante de infrações morais ou aquelas pequenas trapaças cotidianas. Gostemos ou não, está sempre ali, piscando, nas estradas que escolhemos seguir. 

Se os radares do asfalto nos ensinam a frear, talvez o seu maior legado seja nos lembrar de que precisamos dirigir nossas vidas com maturidade e sabedoria – mesmo quando ninguém está olhando.


Pano de fundo: o fim do papel?

Esqueça tudo que você sabe sobre papel higiênico. O futuro (ou seria o passado?) reserva algo inesperado e preocupante para o seu banheiro. ...