quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Segue o jogo...

Nesta quarta-feira, 26, celebro 67 fevereiros, início de uma nova página na minha existência. Uns dirão: “um menino, ainda!”, enquanto outros, com os pés fincados na realidade, comentam: “descendo a ladeira, hein?!” Millôr Fernandes diria: “Qualquer idiota consegue ser jovem. É preciso talento pra envelhecer.”

Alguns me perguntam: por que escrevo? Escrevo porque preciso conversar com amigos e amigas, mesmo que virtualmente, e deixar rastros de momentos em que pensei, senti e vivi com intensidade. E você? Já refletiu sobre o que tem deixado de si?


Ilustração: Álbum de família


Em 1970, em Maceió, ao lado do meu irmão Agostinho – ou Nena, pois minha língua não acertava “nenê” –, antes de brincar com as palavras, mergulhávamos numa outra arte: fabricar botões para o futebol de mesa. Nossa alquimia usava ingredientes simples e, ainda assim, perigosamente poéticos. Numa panelinha de leite em pó, untada com sabão, misturávamos pedaços de plástico rígido – tampas de remédio, retalhos de cano, lanternas quebradas – e, sob o fogo tênue de uma lamparina, o ordinário se transformava em pura magia. Depois, políamos com folhas de cajueiro bravo e, com flanela e fragmentos moídos de azulejos, fazíamos brilhar o que fora descartado.

Antes dessa alquimia, em União dos Palmares, experimentamos uma breve temporada dos botões de quengo de coco, logo após a fase passarinheira em que engaiolávamos canários, curiós e galos-de-campina, como se a beleza e o canto pudessem ser aprisionados. Depois surgiram os botões de capas de relógio e de acrílico – o mítico “vidro inquebrável”, que parecia imune ao tempo.

Aprendemos juntos, então, que viver é um eterno aprender e desaprender. Hoje, duvido que ousássemos arrancar um pedaço daquela janela de acrílico rachada do ônibus da linha Ponta da Terra – Ponta Grossa, desembarcando às pressas, sem pagar passagem, mesmo com o passe estudantil amassado no bolso.

Nem com uma serra de canos nos atreveríamos a recortar quadradinhos, arredondar as quinas do batente do quintal e, entre dois discos meticulosamente alinhados, fixar a foto de um craque recortada da “Placar” – um batismo laico de ídolos. Quem não se lembra do número 10 dos grandes clubes – Pelé, Tostão, Rivellino, Ademir da Guia? Em seguida, Zico e Roberto Dinamite inaugurariam uma nova era, enquanto nós, artesãos do futebol de mesa, lutávamos para tornar o “10” o adversário mais temido. Com palheta ou pente em punho, olhar fixo e respiração contida, alertávamos: “Coloque-se!” E, em resposta, o adversário implorava aos deuses do futebol que seu goleiro – uma caixa de fósforos recheada com grãos de chumbo – evitasse o gol.

“Dez segundos pra acabar... Último chute!”, avisava o árbitro imaginário. E o mundo aguardava o apito final.

Às quartas-feiras, nossa rotina nos levava ao mercado público da Levada, onde comprávamos carnes, frutas e raízes, movidos pelo desejo quase sagrado de garantir a nova edição da “Placar”. Da lista de compras, separávamos o trocado que sustentava nossa dose semanal de futebol impresso. Nossa mãe, imersa no desafio de cuidar de nove filhos, não notava o pequeno confisco; enquanto nosso pai, com olhar cúmplice, compartilhava o entusiasmo silencioso pela leitura.

O cheiro da revista ainda pulsa em nossas narinas, evocando não só uma revista, mas o elo que unia os rachas nos campinhos, as noites de domingo diante da TV esperando os gols do final de semana e as épicas disputas de botão.

Numa dessas idas ao mercado, um camelô, com sua banca improvisada, revelou-nos um segredo quase mágico: bastava espalhar, com um chumaço de algodão, uma mistura de álcool e gasolina sobre uma folha de papel para que as imagens da “Placar” se transformassem num passe de encantamento. Assim nasceram nossos jornais – eu editava o “Destaque”, que apenas Nena lia; ele, o “Jortebol”, exclusivo para mim.

Nena tornou-se um fanático são-paulino, embalado pelo bicampeonato paulista de 1970-71, enquanto eu, contagiado pelo entusiasmo do nosso pai e pelo título carioca do Vasco, forjava minha seleção com Buglê, Valfrido e Silva. As partidas eram intensas e, logo, a guerra de narrativas se instaurava: cada um redigia sua versão do jogo, alinhando à régua as notícias escritas com esferográfica, enquanto as imagens da “Placar” serviam de pano de fundo. O resultado era o mesmo, mas os fatos se desdobravam em três versões: a minha, a dele e a verdadeira.

O tempo passou. Mudamos e o mundo se transformou. Não nos tornamos escritores, jornalistas ou “game designers” (ainda nem existiam Microsoft, PlayStation ou Xbox). Viramos bancários, como nosso pai. Aprendemos que cada escolha traz ganhos e perdas – e que, enquanto o apito final não soa, o jogo continua. 

Hoje, aos 67 anos, sigo em campo. Já marquei gols, perdi pênaltis, ganhei abraços e levei pontapés, mas a bola ainda rola nos gramados da vida. E, quem sabe, o próximo chute, a dez segundos do fim, seja o mais memorável de todos. Coloque-se! – porque o jogo ainda não acabou.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Irmãos de além-mar


Quase toda noite, eles brilham sobre as águas da Baía de Todos-os-Santos. Jorge Amado e Dorival Caymmi são irmãos na amizade e na fé nos orixás. Seus talentos se entrelaçaram como raízes fincadas no coração da Bahia, gerando romances e canções que traduzem a essência da terra afro-brasileira.




Reprodução/Acervo da Fundaçao Jorge Amado

O destino os separou algumas vezes. Ora exilado por questões políticas, ora perambulando por razões profissionais, Jorge vagou pelo mundo durante certo tempo, enquanto Caymmi, no Brasil, curtia a saudade que um dia traria o amigo de volta. 

 

Um dia, em 1976, enquanto escrevia “Tieta do Agreste”, lançado no ano seguinte, Jorge recebeu em Londres uma famosa carta, que, resumidamente, dizia:

 

Jorge, meu irmão…

    Terminei de compor uma linda canção pra Iemanjá, inspirada no reflexo do sol na Pedra da Sereia. Nem sei quantas já compus pra Janaína. Stela talvez saiba, essa mulher é um milagre. Manda beijos pra Zélia. Eu, saudade. Quando vierem, tragam um pano africano bonito. Quero um blusão de respeito.

    Ontem, Carybé e eu encontramos Camafeu na Rampa do Mercado. Sentimos cheiros, vimos cores, contamos quinze tons de azul e um ocre de arrepiar. Fiz um quadro: baiana, tabuleiro, gente em volta. Simples, mas bonito que só. Carybé ficou mordido. Se eu tivesse tempo, virava pintor e ganhava uma fortuna. Mas cadê tempo? Tenho que visitar dona Menininha, saudar Xangô, ouvir Carybé mentir, andar à toa e fazer nada. Isso me toma o dia inteiro.

    A Bahia segue viva. No Axé, Stela de Oxóssi agora é iyalorixá. Perguntaram por você na festa: "Cadê Obá Arolu que não veio ver sua irmã rainha?" Saí pra te procurar, mas não te achei. Que fazes tão longe se teu lugar é aqui? Londres, Jorge? Me diga: o que foste buscar aí? A lua daqui é que é a lua.

    Vendi a casa da Pedra da Sereia. Construíram um edifício horroroso e botaram meu nome nele. Fiquei retado e me mudei pra Pituba. Agora sou vizinho de James e João Ubaldo. Mundo virado, hein? Mas antes da mudança, fiz outra pra Iemanjá. Sempre Bahia, sempre o mar, sempre mulher. E sempre Stela, minha eterna musa, com quem me casei tendo você como padrinho.

    A bênção, padrinho. Oxóssi te proteja por essas inglaterras. Um beijo pra Zélia. Tragam meu pano africano e voltem logo. Aqui é tua casa, e eu sou teu irmão... Caymmi.


 

Ninguém garante que Jorge respondeu, mas, recorro a fragmentos de sua vasta obra e tomo a liberdade de imaginar algo nesta linha:

 

Caymmi, querido amigo.

    Volto, sim. Não hoje, nem amanhã, que exílio tem lá suas vantagens, mas volto. Voltar sempre foi o destino dos que partem e o consolo dos que ficam. E se a Bahia segue viva, como dizes, é porque nela há o mar, o dendê, a fé e amigos como tu, que sabem contar os tons de azul como ninguém neste mundo.

    Tu me contas que compuseste outra canção pra Iemanjá. Claro que ficou linda, como todas as tuas, porque tua música, meu irmão, não é feita só de notas, mas de alma, de cheiro de maresia e da boa preguiça – aquela que transforma o tempo em contemplação.

    Aqui, deste lado do oceano, penso em nossa terra e na sina de quem nela nasce sem sobrenome. O Brasil, meu velho, visto daqui ou daí, segue como sempre: grande demais pro bolso do povo, pequeno o suficiente pra caber nos caprichos de uns poucos. Mas deixa isso pra lá, que o dendê e a pimenta ainda temperam a resistência, e a fé segue viva entre os que contam estrelas na beira do cais. Já pensaste na sorte? Tanta miséria e, ainda assim, sobra poesia até nas curvas dos acarajés abaulados.

    Quero mais é saber de ti, da casa nova na Pituba e de teus vizinhos. James, João Ubaldo… Olha só, virou quarteirão de colhudos! E eu aqui, do outro lado do Atlântico, sem um cantinho quente pra repousar as palavras.

    Zélia manda beijos. Diz que sente falta dos dias em que Stela ensinava os segredos do candomblé. Já eu, meu caro, sinto falta do Axé, de Mãe Menininha, das noites na Ladeira da Montanha e das manhãs de ressaca no Mercado Modelo. E de ti, claro, que nunca te cansas de olhar o mar e fazer cantigas de ninar.

    Ah, sim, levarei teu pano africano. Escolhi um de azul profundo, quase negro, da cor dos mistérios de que somos feitos. Logo estarei de volta pra entregá-lo em mãos e brindar contigo ao que nunca muda: a Bahia, o mar, as mulheres e a nossa amizade.

    De teu irmão, Jorge.

 


Agora, quando anoitece e a lua dança sobre a Baía de Todos-os-Santos, há quem diga que os dois velhos amigos-irmãos ainda trocam cartas de luz. O mar, cúmplice a vida toda, leva as palavras e guarda os segredos. O resto, Caymmi canta e Jorge conta. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Pano de fundo: o fim do papel?

Esqueça tudo que você sabe sobre papel higiênico. O futuro (ou seria o passado?) reserva algo inesperado e preocupante para o seu banheiro.

 

Nada como um bom e confiável rolo de papel, macio e reconfortante, não é? Um marco civilizatório definitivo, separando o primitivismo da dignidade moderna. Mas, em tempos em que até a roda anda ansiosa com tanta reinvenção, surge uma nova tendência nas redes sociais: substituir o papel por panos reutilizáveis. Sim, panos. Aqueles de enxugar louça ou do lavabo agora podem ganhar status de item sanitário premium.

Reprodução/TikTok


 

Esta semana, uma família de seis pessoas viralizou no TikTok ao compartilhar sua experiência com essa alternativa. Jazmine, a matriarca da resistência ao papel higiênico, explicou que a decisão foi motivada pelo desejo de levar uma vida mais sustentável. Assim, cada membro da família tem seu kit de paninhos, que usa, lava e reutiliza. Tudo armazenado numa cesta, como quem organiza calcinhas, cuecas, meias ou pães caseiros. Um verdadeiro enxoval de alta costura para o momento mais íntimo após o café da manhã.

 

Os adeptos defendem que os panos preservam o meio ambiente e o bolso, reduzindo o desmatamento e o consumo de celulose. No entanto, a adesão à prática exige planejamento e uma rotina impecável de lavagens – afinal, ninguém quer errar na cor do pano e pegar um que já tenha antecedentes pastosos.

 

Os céticos, por sua vez, argumentam que trocar o rolo pelo retalho pode ser um convite ao caos doméstico, trazendo dúvidas acerca da higiene, logística e, principalmente, sobre aquele momento emergencial onde ninguém tem a mínima condição de esticar a conversa sobre os impactos ambientais da própria evacuação. Mas Jazmine rebate, segura de sua contribuição à posteridade: há panos de tamanhos diferentes para diferentes situações, como quem fala de um jogo de cama de luxo. E a lavagem frequente? Fundamental! Afinal, não se trata de um revezamento olímpico de dejetos humanos.

 

A polêmica reacendeu velhos métodos de higiene. Se você não sabe, antes da era dourada do papel higiênico, o ser humano já havia dado seus pulos criativos. Os romanos, por exemplo, usavam um tersorium – uma esponja presa a um cabo, mergulhada em água salgada ou vinagre. Isso nos banheiros públicos, onde podiam trocar ideias e especular sobre a vida alheia enquanto faziam o descarte orgânico. Já os vikings tinham uma abordagem, digamos, mais colaborativa: em terra, lã de ovelha resolvia o problema; no mar, uma corda pendurada para fora do barco cumpria a função – usada coletivamente, diga-se de passagem, numa folia de coliformes benzida pela boa vontade das ondas.

 

Os esquimós, acostumados ao frio polar, tinham uma solução gelada: neve. E os colonos americanos do século XVII? Espigas de milho – às vezes inteiras, às vezes só a palha ou o sabugo. No Japão antigo, um gomo de bambu prestava o serviço, limpando por dentro e por fora. Serviço completo.

 

Se existissem redes sociais na Idade Média, certamente teríamos posts entusiasmados sobre a melhor textura para um galho seco, um sabugo de milho ou um gomo de bambu.

 

A verdade é que a civilização tentou de tudo antes de inventar o rolo de papel higiênico. Meu amigo Arnaud, falecido no início dos anos 1990, defendia inclusive a ducha e sabonete, aliado ao papel. Dizia ele, entre goles e reflexões etílicas: “Experimenta passar um pouco de titica no braço e limpar só com papel, depois cheira e vê se está limpo mesmo!”. Pois é, nem tudo se resolve no seco.

 

Se você está tentado a aderir ao movimento dos panos, vá em frente. Mas lembre-se: a modernidade trouxe algumas conquistas que merecem ser protegidas com unhas, dentes e, sobretudo, um rolo de papel sempre ao alcance das mãos. O banheiro continuará sendo um espaço também reservado a leitura e reflexões filosóficas, porém ninguém deseja voltar ao tempo dos romanos e compartilhar uma esponja suspeita.

 

Mas quem sou eu para julgar esses novos (ou velhos) costumes? Se a moda pega, talvez o futuro reserve banheiros high-tech onde um braço robótico estenda um pano de microfibra e um algoritmo avalie a “eficiência do serviço”. No fundo, sem trocadilho, tudo se resume à ilusão de progresso – e ao eterno dilema de como sair limpo dessa história. O que importa não é o método, mas a garantia de que ninguém precise dar uma segunda checada pelo olfato.

 

E que ninguém invente o "desafio do pano comunitário". Aí sim, talvez decretemos estado de calamidade pública: a humanidade vai precisar ser passada a limpo.


 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Anália, o banco e o bordel

Há coisa de quatro décadas, numa das regiões mais desiguais do Planeta, uma mulher chamada Anália – não aquela de Caymmi, que não foi para Maracangalha; mas outra – ousou negociar com o maior banco local e, com inteligência e sagacidade, deixou uma lição inesquecível sobre moralidade e poder.


Proprietária da boate “Naná Drinks”, ela enfrentava dificuldades financeiras quando propôs o parcelamento de suas dívidas, que somavam cerca de 4 milhões da moeda da época. Um perito foi designado para avaliar sua capacidade de pagamento e elaborou um relatório que se tornaria lendário – não pelos números, mas pelas descrições tão vívidas que quase fizeram os funcionários do banco se engasgarem de rir.

 

Um dos chefões, no entanto, considerou o relatório “incompatível com o linguajar polido e a sobriedade da Casa”. Mas a questão crucial permanecia sem resposta: Anália teria ou não condições de pagar?



Ilustração: Uilson Morais (Umor)



A “Naná Drinks”, eufemismo para suavizar expressões menos diplomáticas como bordel, cabaré ou rendez-vous, ocupava um antigo prédio de alvenaria com sete cômodos, afastado da zona oficial de prostituição. A proprietária liderava “um plantel” de seis jovens entre 18 e 21 anos que cumpriam uma jornada de trabalho ditada pela demanda. “Toda hora é hora, todo dia é dia”, registrou o perito, com um toque irônico.

 

Segundo ainda o perito, os frequentadores eram figuras influentes da região e visitantes ocasionais, atraídos não só pela localização estratégica – distante 20 km do centro da cidade, à margem da rodovia federal –, mas também pelo prestígio do estabelecimento. E não apenas isso, supõe-se. O faturamento impressionava: o rendimento mensal ultrapassava 1,2 milhão, com uma margem líquida de cerca de 400 mil após o pagamento de despesas como aluguel, água e energia, além das tarifas dos “serviços prestados pelas meninas”.

 

Apesar dos números, o histórico de Anália preocupava. Sua imagem junto ao banco não era tão boa quanto a que desfrutava no ramo explorado. As dívidas vinham de financiamentos rurais subsidiados para plantio de arroz, milho e mandioca – valores desviados para um “negócio mais lucrativo”: a boate que deu origem à “Naná Drinks”, inicialmente instalada nos arredores de um povoado próximo. Percebendo o movimento fraco naquela localidade, Anália transferiu a “operação” para a cidade onde estava sua agência bancária, um mercado em “franca evolução”.

 

O laudo do perito concluía que Anália, agora bem mais estruturada, poderia quitar suas dívidas sem os riscos de adversidades climáticas inerentes à região. Mas o chefão que torceu o nariz para o relatório, zelando pela imagem do banco (ou a própria, talvez), negou o parcelamento e encaminhou o caso para a Justiça – caminho que só agrada mesmo advogados e meirinhos.

 

Mas Anália não era mulher de aceitar um “não” sem luta. Dias depois, foi pessoalmente ao banco. O chefão, acomodado em sua poltrona de couro, tragou o cigarro sem pressa, como quem saboreia o prazer de negar: 

– Agora, a senhora deve procurar seus direitos na forma da lei. 

– Claro, senhor, mas podemos conversar olho no olho? Só um minutinho... 

– Tudo bem, mas só decidimos com base em fatos e documentos…

 

Com um gesto descuidadamente teatral, Anália abriu a bolsa e deixou algumas fotos caírem no chão, entre cartões, chaves e cheques. O chefão, intrigado, arregalou os olhos ao ver nas imagens figuras conhecidas. Entre elas, ele próprio, bem acompanhado, nu cintura acima, segurando um copo de uísque.

– O que diabo é isso? – gaguejou, sentindo o chão lhe faltar. 

– Ah, me desculpe, senhor. São recordações dos clientes da “Naná Drinks”. Um jornalista quer fazer uma reportagem sobre nossa boate e devo me encontrar com ele daqui a pouco...

 

O silêncio pesou. O chefão, antes tão seguro, agachou-se para recolher as fotos com mãos trêmulas. Conferia uma a uma, como se pudesse apagá-las apenas olhando:

– Veja como são as coisas… Como somos irresponsáveis depois de algumas doses, hein?! 

– Se o senhor quiser, pode ficar com elas. Nem se preocupe com os negativos, eles estão bem guardados no meu cofre.

 

O chefão ajeitou o colarinho e, sem encarar Anália diretamente, abreviou a conversa: 

– Bem… Podemos rever a decisão. Tudo dentro das normas, é claro!

 

Meia hora depois, Anália tinha em mãos o novo contrato, assinado, e uma lição a ser compartilhada com suas colegas de trabalho sobre hipocrisia e moralidade seletiva: certos homens só enxergam aquilo que ameaça a seriedade que fingem ostentar. E no mundo dos que pregam a virtude, o verdadeiro poder está com quem conhece as regras – e ousa usá-las a seu favor. 

 

Os tempos mudaram, mas a essência humana, não. Anália saiu satisfeita. Na porta do banco, respirou fundo, ajeitou o vestido e sorriu. No teatro da moralidade, afinal, quem manda não é quem veste terno e gravata, mas quem conhece os bastidores.

Trocando em miúdos (até o rim)

Poucas cenas me entristecem tanto quanto o crepúsculo de uma relação amorosa. Pior quando envolve amigos queridos — aqueles que, mesmo a gen...