quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Ajoelhou? Tem que orar!

No calor das paixões que vêm de dentro, tem muita gente fazendo promessas ousadas para que seu clube alcance um objetivo como a conquista do título, o acesso à divisão superior ou a fuga do rebaixamento. A ansiedade é enorme. Conta-se, como na bela metáfora de Alceu Valença, que um novo tempo, mais brilhante, peito nu, cabelo ao vento, estaria por chegar. 

"Um homem é um homem e um cascabulho de jaca é um cascabulho de jaca!", dizia um delegado de polícia que conheci em Pernambuco. E arrematava: "Um homem não tem que prometer nada a ninguém, mas se prometer, vai ter que cumprir". 

 


Duas semanas atrás, o equatoriano Kevin Josué Mina Quiñónez, jogador de futebol que atua no Club Desportivo Real, de Santa Cruz de La Sierra, assumiu um picante compromisso quanto à situação de sua equipe no Campeonato Boliviano. Contratado para “pegar em armas, se preciso for” na guerra contra o rebaixamento no torneio, o bravo guerreiro prometeu aos torcedores que cortaria o pênis em caso de queda para a 2ª divisão. 

 

"Si yo desciendo me corto el miembro!" recitou o “poeta” numa entrevista coletiva após o dramático empate de 1 a 1 diante do Real Tomayapo. Kevin Mina, inclusive, tinha acabado de balançar as redes a favor de seu clube já nos acréscimos ao tempo da partida. Falava, portanto, embriagado pela adrenalina que sacudia o seu corpanzil de 28 anos, 1,93 cm e 90 kg. 

 

Ainda bem que poupou os torcedores de maiores detalhes sobre como se dará a automutilação. Não se sabe se pretende usar bisturi elétrico, caco de vidro, peixeira afiada ou mesmo um serrote do cabo grosso para cumprir a insólita  promessa. 


Caso resolva introduzir trilha sonora no vídeo a ser veiculado nas redes sociais, o cearense Belchior, se fosse vivo, diria que, considerando o tempo de sonho, de sangue e de América do Sul, um tango argentino vai bem melhor que uma cumbia boliviana.

 

Confiante na força de seu cajado, Mina parece seguro de que evitará o golpe fatal assinalando mais gols e obtendo novas vitórias para seu time. Não está morto quem peleia, dizem alguns galegos de olhos azuis deste meu Brasil brasileiro, terra de samba, pandeiro e preconceitos mil.

 

Não sabe o corajoso Mina que, em qualquer guerra, a paz só dá as caras quando se deixa de criar expectativas sobre o que não se consegue controlar. Que é tolice supor que a cabeça de seu centroavante cavernoso será capaz de raciocinar e mexer na marcha da história independente dos demais membros (os outros jogadores do time, bem entendido!). 

 

Note-se que o Club Desportivo Real, quando da promessa de Mina, ocupava a penúltima colocação do Campeonato Boliviano e restavam apenas dez jogos para evitar a queda. E segundo os resultados do último final de semana, a situação continua inalterada. 

 

Se fosse no campeonato nacional russo ou norte-coreano, envolvendo os times preferidos de Vladimir Putin e Kim Jong-un, Mina talvez tivesse sido mais parcimonioso. Arriscaria, se tanto, o dedo mindinho de um dos pés, que aliás hoje se presta apenas a topar com mesinhas de centro, sofás e cadeiras. 


Afinal, desde que o Australopithecus afarensis, ancestral do ser humano, vagou pela África caminhando (e não se pendurando em árvores) há 3,2 milhões de anos, o dedinho do pé só vem perdendo prestígio. Como, aliás, uma certa ave da família Ramphastidae que vive nas florestas tropicais das Américas, conhecida por ter um bico longo, duro e cortante, que já fez muito sucesso por aqui.

 

Não sou oráculo para desvendar o que está vindo por aí – se fosse, estaria dando gargalhadas dos institutos de pesquisa, tão seguros quanto aqueles que ainda acreditam no tratamento precoce da covid-19 à base de cloroquina –, mas desafio aqui algumas pessoas para que também assumam, de papel passado e com firma reconhecida, compromisso semelhante ao que motivou o destemido equatoriano.

 

Começo pelo dândi Neymar, principal jogador da Seleção Brasileira, caso frustre de novo a expectativa do povão em conduzir seus “parças” à conquista do hexacampeonato mundial no Qatar. Se topar o desafio e quiser preservar seu delicado membro (para ninfetas que o viram amiúde; o duplo sentido fica por conta do leitor), basta não exagerar no cai-cai ao menor esbarrão com os zagueiros adversários, como aconteceu na Rússia há quatro anos. 

 

Deve também evitar os chiliques típicos de sua prolongada adolescência para não ser expulso quando o time mais precisar dele. E, em caso de novo fracasso, nem pensar na terceirização da culpa, atribuindo-a ao conluio de árbitros e jornalistas comunistas e invejosos.

 

Desafio também o candidato a presidente da República que venha a ser derrotado no 2º turno das eleições, seja Bolsonaro ou Lula, a encarar o mesmo autoflagelo com coragem e resignação, assumindo em cadeia nacional a promessa de Mina: "Se eu cair, corto meu membro!" 

 

Ajoelhou? Tem que orar! Ao perdedor, restará o golpe (veja bem, leitor, falo no sentido literal, cortante e republicano do termo!) fatal. Em caso de hemorragia incontrolável, não seja surpresa se no rito de extrema-unção aparecer o prestativo padre Kelmon. Nunca se sabe.

 

Ao vencedor, coitado, já se proferiu outra dolorosa sentença em caráter liminar: juntar os cacos de uma nação à beira do rebaixamento civilizatório, no vale-tudo dos insultos trocados entre os filhos de uma pátria nada gentil ultimamente. Oremos! 

 

23 comentários:

  1. Sinais dos tempos atuais, a violência impera. Em tempos idos os jogadores cortavam a barba ou o cabelo.

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  2. Excelente, retrata os extremos atuais, incluindo o que se fala e promete. Sem qualquer reflexão, compromisso, somente o impulso.

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    1. … E o mapa de Mina pode não levar a tesouro algum, não é?

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  3. Pela primeira vez, tive a curiosidade de analisar a tabela do campeonato Boliviano. E constatei que o desafio no caminho do bravo Mina não será fácil. Espero que ele tenha boa sorte.
    Caso se aproxime um desfecho desfavorável, ainda lhe restará o recurso, nada republicano, de questionar o resultado, atribuindo culpa a alguma armação comunista imaginária. Quem sabe consiga mobilizar sua torcida a invadir o Congresso e deixe o dito pelo não dito.

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  4. Excelente reflexão! No futebol, ao menos há consenso sobre os objetivos (ganhar as partidas ou o campeonato, talvez fugir do rebaixamento), ainda que cada time os tente alcancar de forma diferente, cada qual com o seu "como" chegar lá (e viva à democracia nos gramados). Em nossa pátria pouco gentil, talvez haja alguns buscando a reducão da desiguldade social e um desenvolvimento sustentável de nossa sociedade; outros muitos, com ou sem justo motivo, lutam basicamente pela expansão de setores econômicos concentradores de renda (extrativismo, mineracão, fronteira agrícola amazônica), escondendo a pouca vergonha com pautas conservadoras e de costumes para distrair a todos. E por aí vai. Se não temos consenso nem sobre o que queremos resolver, a discussão sobre "como" resolver fica solta. Afinal, os times querem entrar em campo mas ninguém sabe se a ideia é vencer a partida, se o jogo é "na vera" ou amistoso, se fazer gol contra está de bom tamanho (tem torcida que pede gol contra...) etc.

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  5. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES12 de outubro de 2022 às 06:49

    Promessa impossível de se executar, salvo como advertência ante atitudes inconcebíveis de atores que só querem se vangloriar diante do fracasso iminente.
    Parabéns por mais um belo trabalho executado. (E este foi longe)

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  6. Ótimo passeio por diferentes realidades fáticas. Iniciando pelo promitente vizinho ensandecido. Que demonstrou destemor ou pouco caso com suas partes íntimas. Que promessa maluca. Há um rol inumerável de opções, para ele escolher logo a mais radical. Mais que isso só o suicídio. Lembrei, de imediato, do meu glorioso Náutico Capibaribe. Cuja colocação na série B nacional é pior que a do Clube Desportivos. Depois, vem o dedo midinho, com sua história ao longo dos tempos: serventia e evolução. Passando por Neymar e sua responsabilidade na Copa que se aproxima. Teve, também, a máxima de delegado Pernambucano, muito ponderado por sinal. E concluiu com os presidenciáveis, que ora se digladiam pelo posto de dirigente nacional. Nisso o autor demonstra ecleticismo e capacidade de dar corpo àquilo aparentemente diverso. Pura maestria. Excelente leitura.

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  7. Fantástica a alfinetada aos tucanos , uma espécie em extinção na política brasileira...

    Luiz Andreola

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  8. Dezessete parágrafos de excelente construção da narrativa. As sugestões de promessas derivadas das de Mina são de um deleite à parte, embora, com certeza, jamais as veremos por aqui, somente na ficção criativa. Sinto que a crônica terá uma parte dois, ao fim do campeonato boliviano. Esperemos que não seja com respingos de sangue.

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  9. Excelente!! Estou concluindo que a culpa é do povo. Sim, porque, como tudo é para o povo e pelo povo, ele deve ser o culpado. Vamos acabar com o povo e tudo estará resolvido. Não acham?

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    1. É… Povo – ente abstrato também conhecido como “massa”, “consumidor” ou “contribuinte”, muito lembrado sobretudo nos períodos pré-eleitorais.
      Parece uma bola sendo chutada pra lá e pra cá por crianças, mas se sair do campo, a brincadeira acaba. A não ser quando anoitece. Mas aí é outra história.

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  10. Por partes, como diria o finado Jack. A expressão que intitula o texto permite-me, ao menos, duas interpretações: uma, jocosa (se a imaginação fluir, até mesmo licenciosa!) e a outra, um quê de autoritária (e, só por isso, causa-me repúdio). Concordo que promessas precisam ser cumpridas. Mas, alto lá! Há promessas e "promessas". O contexto salvará o cumprimento destas ou daquelas. Um pai, uma mãe ou um(a) responsável prometer a seu rebento proteção, carinho e cuidados é das promessas sem aspas, ressalvados impeditivos de força maior. Outras, como as que o tal jogador, movido por instintos os mais primitivos (aka Rob Jeff) ejetou de seu orifício fonador, vão para o campo dos memes e, quiçá até de forma impensada, no imo de sua massa cinzenta, tenha tido essa finalidade! Também é igual ao caso de um certo prefeito, de uma certa cidade que, recentemente, prometeu ficar certo tempo sem tomar certo refrigerante, em apoio a certo político para as eleições do 2ª turno. Bom, por mais que o ser dito humano seja capaz do sublime e do infame, estou apto a "prometer" cortar o 11º dedo do pé - que não possuo - caso o jogador leve a cabo o "prometido". Em se tratando do pelintra do neymar (assim mesmo, em minúscula), tenho, infelizmente, uma aversão intestina em relação a essa criatura. Para mim, o brilho do talento futebolístico desse jogador é ofuscado, obliterado por seu comportamento desprezível. E há tantos exemplos nos quais ele poderia ter-se inspirado! Penso que, se subo na escala socioeconômica, preciso me prometer igualmente subir nas escalas de responsabilidade, empatia, respeito e outras escalas humanísticas, pois o que faço e/ou o que digo pode(m) impactar ou influenciar a vida de dezenas, centenas e talvez milhares de pessoas, para o bem ou para o mal. Há quem pense que se trata de uma grandeza inversamente desproporcional e afunda o pé na lama, espargindo imundícies enquanto vai degraus acima. Ontem, li sobre um conceito de "Necessidade de caos", publicado pelo neurologista Dr. Ricardo Teixeira, do Instituto do Cérebro, aqui de Brasília (artigo pode ser lido aqui: https://tinyurl.com/Need4Chaos. Trata-se de um tema que não é novo. Em fevereiro de 2021, a "The Royal Society" publicou artigo (com forte prevalência psicossocial, neurocognitiva e política) tentando destrinçar o motivo pelo qual muitas pessoas (e grupos), ainda que desarticuladamente (ou não?), queiram a refundação da sociedade (à sua maneira, claro!) e por isso nutrem um profundo sentimento (junto com ações) de "Need for chaos", resumido na frase "Algumas pessoas querem, exatamente, ver o mundo queimar" (o artigo e as referências podem ser obtidos neste link: https://doi.org/10.1098/rstb.2020.0147). Extremismos e intolerâncias de todo espectro (político, religioso, de raça, de cor etc.) que grassam diuturna e atualmente parecem beber dessa fonte, no mais escuro, escondido e (im)penetrável dos órgãos humanos: a mente e seus desejos (bons ou ruins). Que o futuro nos reserva? A ver!

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  11. Mais um excelente texto, Hayton. Parabéns! E seus comentaristas abrilhantam ainda mais sua rica produção literária.

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  12. “Falo no sentido literal, cortante, republicano…”.
    Sei não! Melhor não checar!

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  13. Vejo que, mais uma vez, você conseguiu atiçar seus fiéis leitores com a promessa do jogador Mina e, ao mesmo tempo, fez com que todos "viajassem", por vários caminhos, onde personagens encenam, num palco um tanto virtual, suas histórias e suas façanhas que, para o espectador, nem sempre são merecedoras de aplausos. Daí, dá para imaginar que esses "atores", em boa parte das vezes, pouco se importam com os espectadores e os aplausos...
    Parabéns. Ganhamos nosso dia...

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  14. Excelente crônica! Crônicas que nos levam a reflexão.

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  15. Excelente crônica que sempre nos levam a refletir. Abs, Canindé

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  16. Genial Hayton!!!
    Entre a diversão e a reflexão no dia da criança, fico com a diversão. Pq dia 30.10 é dia de botar a mão na consciência e decidir o futuro democrático que queremos deixar para as futuras gerações. Beto Barretto

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  17. Sim, nossa pátria está com cabeça, tronco e membros decepados. Cabe um cirurgião que consiga juntar os poderes da República para refazer esse corpo que é nosso, e que pulsa, e que vive, e que espera.

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  18. Se eu fosse Mina, utilizaria o "pingulão" três ou mais vezes por dia até chegar no famigerado rebaixamento ou na salvação da lavoura. E aproveitar o que resta do tempo...

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  19. Sem qualquer surpresa pelo brilhantismo do texto, fico refletindo incansavelmente sobre como realizar algum comentário.
    Sim, pois se o tema, da forma como é exposto, nos provoca incontidas risadas - o parágrafo onde você faz ilações sobre o instrumento a ser utilizado pelo Mina pra realizar o cumprimento de sua promessa é verdadeiramente transcendental - , também nos remete a refletir e se indignar com o momento que estamos vivendo, em função da situação a que chegou o Brasil, resultado das sandices produzidas pelos que estão a disputar o poder com selvageria talvez nunca vista nem entre animais ditos irracionais.
    Enfim, sua crônica merece entrar e ocupar lugar de honra em algum "panteão" que se queira construir para eternizar as mais marcantes aqui produzidas.
    Efusivos parabéns e mãos à obra...

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  20. Bem, alguns podem até apostar que perderão o que já não vale mais nada. Jogador de futebol, porém, nunca foi confiável. Chuta a bola pra fora e jura que foi o adversário que o fez. Comete falta e briga com o juiz dizendo que não foi... daí pra cortar um membro, com certeza irá ser da comissão técnica...

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  21. Trazendo as últimas notícias do campeonato Boliviano, parece que a crônica do grande Hayton está fazendo milagre: O glorioso Deportivo Real Santa Cruz venceu as duas últimas partidas e (por ora) está fora da zona do rebaixamento. Isso vai evitando a tragédia anunciada. A situação ainda preocupa nas 7 rodadas finais da competição.

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