julho 16, 2025

O silêncio das tartarugas

O medo da insignificância social tem um papel decisivo na vida do ser humano. Na metade dos anos 1980, eu já acumulava mais de uma década de trabalho e nutria um sonho nada modesto, desses que preenchem o espaço entre a sexta-feira e o domingo: acertar na loteria esportiva. E apostava semanalmente, até perceber que estava apenas encurtando o caminho dos outros para a sorte grande. Entendi que o verdadeiro azar era insistir.

Hoje, quatro décadas depois, volta e meia me pego repassando antigos devaneios, como aquele em que, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, sou preso, por engano, durante uma viagem em férias a Buenos Aires. Confundido com um perigoso subversivo, acabo nas garras da ditadura argentina — aquela bruxa de saias engomadas e cassetete em punho que tomou o poder de março de 1976 a dezembro de 1983, de início sob a batuta e o bigode do general Jorge Rafael Videla.


E se — imagino eu —, após sessões de tortura que me deixassem cego, mudo e surdo, jamais tivesse conseguido provar minha inocência? E se, por um capricho do destino ou uma assinatura equivocada de um juiz, fosse solto agora? O que encontraria ao sair? Que Brasil me aguardaria, depois de quatro décadas de silêncio? Quem dos meus teria me esperado?


Foi assim que soube da história de outro Jorge, semana passada, num site de notícias. Não o Videla, mas uma tartaruga macho da espécie Caretta caretta, nascida no litoral brasileiro, que, em março de 1984, teve a infeliz ideia de atravessar o caminho de uma rede de pesca em Bahía Blanca, na costa argentina.



Reprodução: Redes Sociais


Capturado por acidente, acabou transferido — num misto de trapalhada logística e descaso científico — para um aquário em Mendoza, no coração da Cordilheira dos Andes. Sim, a mais de mil quilômetros do mar!


Ali, Jorge sobreviveu. Quase quarenta anos nadando em círculos, em água doce, alimentado com ovos de galinha e carne de vaca. Virou atração turística, como quem cumpre pena de prisão perpétua em cela com visitação monitorada — uma penitência disfarçada de zoologia.


Mas um dia alguém se comoveu — talvez descendente de Borges, Quino ou Mercedes Sosa. E outro alguém também, mais outro... Até que 60 mil pessoas assinaram uma petição pedindo que o animal, coitado, tivesse direito a algo melhor do que um tanque com bifes, claras, cloro e selfies. 


A Justiça argentina, sensível ao clamor, autorizou a soltura. Em 2021, Jorge embarcou num voo rumo a um centro de reabilitação em Mar del Plata.


Ali, Jorge reaprendeu o que nunca deveria ter esquecido: a caçar, a perseguir cardumes, a viver sem grades como todo quelônio que habita os mares.


Ensinaram-lhe que tartaruga que é tartaruga não pede delivery nem come na mão de ninguém. Três anos depois, os biólogos decidiram: ele estava pronto.


No dia 11 de abril deste ano, Jorge foi levado num navio militar, a 20 quilômetros da costa. E devolvido ao mar. Saiu nadando sem olhar para trás, rumo ao norte, ao Brasil. “Ele sabe pra onde vai”, disse uma pesquisadora, com um suspiro que misturava alívio e saudade antecipada.


Desde então, já passou pelo Uruguai, deu uma olhada em Floripa e agora ronda Angra dos Reis. Dizem que busca a Praia do Forte, no litoral baiano, onde provavelmente nasceu. Ou talvez só queira reencontrar um pedaço esquecido de si.


Carrega um transmissor no casco. Toda vez que emerge para respirar, emite um sinal. Como quem diz: “Ainda tô aqui.” Mas o chip tem data de validade. Vai se calar em breve. E, se tudo der certo, nunca mais saberemos de Jorge. O que, convenhamos, será uma bênção.


Não é todo dia que uma criatura sobrevive ao confinamento forçado, à dieta de gosto discutível, ao esquecimento institucional e à vitrine do entretenimento. Jorge é exceção. A maioria não volta. Nem tartaruga. Nem gente.


O próprio site de notícias pontua que, nos anos 1980, um golfinho confinado em São Vicente, no litoral paulista, foi solto precocemente. Morreu pouco depois. Nadar exige preparo, sorte. E tempo.


Fico me perguntando: e se fosse eu, agora, libertado depois de quarenta anos sem voz, sem família, sem amigos? Teria que reaprender tudo: a falar por sinais, a caminhar sem escolta, a confiar em humanos, em manhãs e amanhãs. A respirar fora do aquário.


Talvez só me restasse um chip imaginário, colado no peito, avisando de tempos em tempos: “Ainda tô aqui.” Até que o sinal se calasse. 


E eu, como Jorge, talvez sumisse sem fazer alarde — não por revolta, mas por ter entendido, enfim, que o mundo continua redondo e gira, mesmo sem a nossa presença.

28 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA16 de julho de 2025 às 05:56

    Muitos de nós, no exercício das nossas profissões, fomos a tartaruga Jorge por vários momentos. Tivemos que nos habituar comendo pequi, sagu, acarajé, xerém e tantas outras maravilhas da culinária de omde estávamos pensando nos pratos da região que nos viu nascer. Poucos tiveram a sorte de retornar ao local de nascimento.

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  2. Em Três Corações teve caso assim que virou até samba dos poetas tricordianos.

    “Viuvivo
    Usa um anel de viuva
    Pendurado em cima da lapela da blusa
    Em sinal de respeito
    Sem saber se ainda existe
    Sem saber chorar por quem
    Em tom de prece misturada com soluços faz seu pedido
    Deus proteja para sempre nosso falecido
    E reserve para ele o reino dos céus
    Tudo porque faz mais de uma semana que ele partiu
    De mulata a tira colo e todo mundo viu
    O viúvo da viúva em lua a de mel.”

    Mas esse voltou na maior cara de pau. Não 40 anos. Um pouco menos. Talvez quando acabou o amor, ou o dinheiro.

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  3. Enquanto lia mais este genioso periódico, tentava associá-lo a vida real. Na sequência vejo o comentário do Ademar trazendo a resposta de maneira precisa para quem teve uma longa jornada profissional. Era comum ouvir a frase: “tudo o que eu tenho, devo ao…”. Ou até “tudo o que eu sou, devo ao …”. Ficava imaginando o que seria da vida quando esse contrato fosse desfeito. A exemplo do Jorge era visível que a adaptação seria difícil. Lembro até de curso formatado pela matriz para tentar ajudar esse novo ciclo. Concluo que em qualquer situação temos que fazer a vida valer a pena. E em todas as fases. Acredito que a brasileira Juliana, que perdeu a vida nas montanhas de Indonésia, não aceitou o “aquário” e fez a vida valer a pena, mesmo que em curto espaço de tempo.

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  4. Bacana esse retrato de realidade. Somos Jorges, cada um com um tipo de prisão, mesmo com boas estadias, bons propósitos, mas longe da terra natal e dos costumes. Mas, quando temos a chance de voltar , os laços afetivos e culturais continuam, uns querem ficar outros só um passeio, ou…enfim , queria mesmo era ver a chegada de Jorge na Praia do Forte.

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  5. Caro Hayton.

    Voce conseguiu construir uma reflexão profunda sobre a liberdade e a passagem do tempo de uma maneira que muito interessante. A forma como entrelaçou a divagação pessoal sobre um possível aprisionamento com a jornada da tartaruga, o Jorge, é ótima.

    Essa justaposição, entre a imaginação de um drama humano e o percurso real do quelônio, conferiu uma força singular ao seu texto. É como um convite para ponderar sobre o que significa ter a vida suspensa por circunstâncias que nos são alheias.

    A história do Jorge, a tartaruga, é inacreditável. Fico a imaginar o animal, após tantos anos de confinamento, reaprendendo a viver em seu habitat natural, a caçar, a ser também caçado, a sentir o mar, a reaprender a viver é uma verdadeira lição de resiliência e adaptação para todos nós. Seu retorno ao mar é uma volta às origens, o que também o ser humano muitas vezes também faz em busca de paz, felicidade.

    O silencio do transmissor nos leva a perceber que, talvez, a verdadeira liberdade resida, por vezes, na capacidade de se integrar ao fluxo da vida, sem a necessidade de um registro constante de nossa existência. É, sem dúvida, um texto que nos convida à profunda reflexão. Parabéns uma vez mais.

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  6. Salve Jorge! Inocente não comete crime. Foi muito "flash(ado) na tortura aquática. Teve que atravessar os setes mares para alcançar a liberdade.

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  7. A vida que escolhemos ou que nos foi imposta por necessidade de sobrevivência, nem sempre nos reserva o melhor... Os sonhos e as "aventuras" que se sucedem, podem representar preço alto, às vezes impagável. Feliz, no entanto, aquele que consegue compreender que o melhor lugar é aquele onde estamos. Aliás, todos os lugares têm seus encantos, sua cultura e seu jeito de ser... Basta entendermos que "nosso" conhecimento não é superior ao de ninguém. Diria que nesse mundo de "Jorge" tem espaço para todos... Basta encontrarmos o nosso...

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  8. Uma história para nunca perder a esperança.

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  9. A maneira que descreves a jornada de Jorge, nos leva a imaginar quais seriam as sensações da tartaruga após alcançar a liberdade e percorrer o caminho de volta para casa. Show de crônica, Hayton!!!

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  10. Que história!
    Uma tartaruga pleonástica ao nascer merece esse registro, que só não é hiperbólico porque o cronista é sóbrio.

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  11. Hayton, mais uma crônica incrível. Li daqui da varanda do meu apartamento em João Pessoa, e logo aqui na frente do meu prédio há diversos nascedouros de tartarugas. Obrigado por compartilhar mais uma peça produzida por sua genialidade.

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  12. Stoney Palmeira Melo16 de julho de 2025 às 08:20

    Hayton, depois dessa, tô pensando em botar um chip no meu casco também. Vai que um dia me soltam por engano e eu preciso avisar que ainda tô por aqui! 😂 Que crônica massa, meu amigo! Mas também um texto bonito e profundo. Você tem um jeito danado de transformar memória, bicho e filosofia numa coisa só. Jorge me emocionou. Parabéns!!

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  13. mt bom. Os leitores são um reflexo do cronista. O Ademar e o Tarcísio foram brilhantes em suas colocações. Captaram vossa mensagem, iluminado guru. Luis Antonio

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  14. Respirar fora do aquário, esse é o segredo!
    Abração,
    Gradim.

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  15. Lembrou-me Hemingway, em " O Velho e o Mar". Talvez pela tartaruga, pelo mar ou pelo passar do tempo. Quarenta anos dá tempo pra envelhecer. Parabéns, pela crônica inspirada. Dá vontade de ler, parar, pensar... reler outra vez. E ler mais uma vez. O chip com prazo de validade é uma metáfora impactante. Bela e triste metáfora. Finalizo com Hemingway: "Ninguém devia estar sozinho na velhice, pensou. Mas é inevitável."

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  16. Ter a ideia pra uma crônica dessas já é genial. Mas não é tudo! Aí vem a carpintaria literária. O trabalho exaustivo de conectar a saga real da tartaruga com uma hipótese de epopeia do autor, e fazer disso tudo uma reflexão que serve pra todos os supostos seres humanos - aí é onde reside o diferencial do cronista!
    Uma das mais instigantes que já li. Se eu fosse o narrador Everaldo Marques diria:
    - Hayton Rocha, você é ridículo!!!

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  17. Delícia de crônica! Adorei! Diniz/RJ

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  18. O final da crônica resume uma vida. Nós somos os invasores de Gaia. Mas ela não tem pressa, um dia a gente some e ficam só jorges e marias felizes.

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  19. Excelente crônica, mestre Hayton, lendo a trajetória do Jorge e apreciando a liberdade dos pássaros no grande viveiro sem telas, na minha varanda, no 15⁰ andar. Que sejamos livres, leves e soltos para apreciar, sem fronteiras, a plenitude da vida.

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  20. A vida do Jorge reflete a nossa passagem, também ficamos presos, adquirimos liberdade, vivemos momentos baixos e altos, felizes e tristes, ainda estamos aqui. Escrevendo nossa história, envolvidos em deixarmos a melhor contribuição possível.
    Vamos que vamos!

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  21. Certamente com saudades do futuro, longa vida a Jorge em seus oceanos de liberdade.

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  22. Difícil imaginar como estaria numa solitária por 40 anos. Viva, Jorge!

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  23. Enquanto nossos sinais estarem transmitindo... Assim devemos caminhar em direção às boas ações da vida e curtir a cada instante essa liberdade e tudo que aprendemos, mesmo que o aprendizado em cativeiro seja limitado ao que a vida nos proporciona aprender uns com os outros. Viva Jorge, viva cada um de nós que ainda transmitimos sinais e aprendizados.

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  24. Há tartarugas que atravessam três séculos de vida; Jorge não é de linhagem tão longeva. A espécie dele costuma durar perto de 50 anos, com casos que chegam a 67 ou, com sorte, 70. Quarenta anos de prisão já seria uma eternidade para qualquer criatura — sobretudo para nós, humanos. Sua crônica foi novamente profunda, Hayton: tantas vezes somos nós que soterramos nossos próprios sonhos, e nem sempre a culpa é do “general”. Não precisamos bradar “ainda estou aqui” para lembrar que a liberdade — toda e qualquer liberdade — é um bem precioso.

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  25. Porreta!
    Escapar de nós mesmos é preciso.
    Parabéns!

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  26. Filosofia acima se tudo! Aplausos grande Hayton 👏 Sua crônica, nos diz da história, da ciência, da vivência e, para coroar, da filosofia de viver. Não à toa seus seguidores e admiradores lhe fazem aplausos e reverências. E eu, o menor deles, pegando o bonde para lhe saudar.
    Ave Palavra!

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  27. Texto magnético. Nos aprisiona a esse paradoxo: viver ou morrer, após anos sem existir? é profundo, nos levando a divagar se, em algum momento, nós mesmos não estivemos aprisionados? punidos pelas nossas consciências, por nossas omissões, pelos "nãos" injustos e pelos "sim" de igual monta, que distribuímos. Pelo que devíamos ter dado e não demos. Pelo que deixamos de receber e pelo que deixamos de perceber. aí vem a pergunta: ainda dá tempo de reparar os danos causados e sofridos? sempre dá, penso eu. Desde que comecemos agora. E ainda bem que nossos "chips" possuem prazo de validade razoável, para que os nossos amados consigam nos ver.
    Bela crônica. Densa.
    Abração!!!
    Mário Nelson.

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  28. FRANCISCO OITAVO PINHEIRO FERNANDES16 de julho de 2025 às 17:18

    Em o Silêncio das Tartarugas, Jorge fica restrito à sua insignificância em um aquário na Argentina por quarenta anos. Solto, botaram-lhe um chip para que ficasse mandando notícias aos seus algozes.
    Reaprendeu a nadar, ligou o radar interno, a bússola que o dirigia e o guiava e seguiu o caminho do norte.
    O cronista, já na condição de quem poderia integrar qualquer Conselho tipo “The Elders”, ele próprio, talvez, o parente importante de muitos, se vê delirando, devaneando, quase tendo um surto psicótico, percebe-se preso pela sangrenta ditadura Argentina. Um horror, mesmo em se tratando de um devaneio. Um pesadelo.
    Como o comentário pretende alcançar duas crônicas (O teatro da bajulação e o Silêncio das Tartarugas), digo:
    - chefe, se um pequeno resfriado o tivesse acometido, mesmo tardiamente, saúde. Se eventualmente tivesse conseguido fugir e por aqui passasse, como fez Prestes na clandestinidade, estaríamos todos a te esperar no aeroporto. Se telefonasse pedindo notícias de cá, poderia ligar a cobrar que pagaríamos a cara ligação internacional da época. Jamais faríamos como a Madá que só dava notícias para o Sebá que o deixava irritado e explodia com o bordão “Você não quer que eu volte!”.
    O meu devaneio de puxa-saco também é tardio. Ainda bem.
    Não é devaneio, também não é ficção. Também foi dura a realidade no outro vizinho do cone sul. A ditadura no Uruguai foi cruel, como toda ditadura. Em “Uma Noite de Doze Anos” parte significativa dessa história é contada. José Pepe Mojica, fica preso em uma solitária, parte dos quais – quase 4 anos -, incomunicável.
    Solto, não vai para o norte porque o sul e o sol são os seus lugares. Vira Senador, Presidente e vê o seu Uruguai se transformar em uma Democracia digna desse nome.
    Enquanto isso, por aqui... deixa pra lá. Não vamos borrar a sua belíssima crônica com saudosistas da ditadura.
    Chico




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O silêncio das tartarugas

O medo da insignificância social tem um papel decisivo na vida do ser humano. Na metade dos anos 1980, eu já acumulava mais de uma década de...