Eu seria capaz de jurar que ganharia um par de tênis Bamba para jogar futebol de salão se, na União dos Palmares (AL) do final de 1968, fosse aprovado no 4º ano primário da professora Rosário, do grupo escolar Jorge de Lima, e no temido Admissão, espécie de “vestibular” de que participei aos 10 anos, também preparado pela professora Lindinalva, para acesso ao ginásio Santa Maria Madalena.
Pedir eu pedi, mas não deu certo. Éramos seis irmãos em idade escolar e, claro, não faria sentido premiar apenas o êxito de um. Acostumado a bater bola descalço com a molecada da cidade (Dudu, Toinho, Mano, Betinho, Zé Carlos "Rane", Geraldo, Loínho, Robinho, Pelé, Paulinho Baía, etc.), o jogo da vida seguiu, embora vez por outra o sangue fervesse quando sofria um pisão de alguém calçado.
Vinte e dois anos depois, em 1990, conheceria Carlos Roberto Rebouças na Bahia, com quem trabalhei poucos meses e que me contou uma história parecida que aconteceu com ele. Na ocasião, eu lhe antecipava que ele deveria ser nomeado chefe de gabinete na superintendência estadual do Banco do Brasil.
Responsável pela administração do aeroporto de Salvador (era funcionário do BB cedido à Infraero), Rebouças impressionava pelo modo ágil, cortês e bem-humorado com que resolvia os problemas cotidianos de passageiros e companhias aéreas, mas queria retomar a carreira bancária em sua empresa de origem.
Ele sorriu amarelo ao me contar que, quando criança, sua madrinha, viúva de um rico fazendeiro no interior baiano, ficara encantada com sua dedicação aos estudos, bem diferente dos filhos dela, seus colegas de turma. Em reconhecimento, prometeu-lhe uma bicicleta de presente caso fosse aprovado por média, desobrigando-se das provas finais. A mãe, por tabela, queria assim estimular os próprios filhos.
Se já era quase certa a aprovação por média sem aquele prêmio, para o menino Carlinhos virou “uma mão na roda”. Dias depois, com o boletim azul de ponta a ponta, tomou coragem e foi até a única loja especializada que havia na cidade avaliar qual a bicicleta que melhor se adaptaria a um desajeitado pré-adolescente.
Como não havia bicicleta intermediária, testou primeiro uma pequena, que lhe deixou porém com as sandálias arrastando no chão. Partiu então para a de adultos, mas era grande demais e nem na ponta dos pés ele alcançava os pedais. Indeciso sobre qual escolher, foi convencido pelo dono da loja a aguardar o novo lote de bicicletas que estaria chegando do fabricante para as vendas de fim de ano.
Dali em diante, a ansiedade tomou conta de Carlinhos. Todo dia, mesmo debaixo de chuvas, deslocava-se à periferia da cidade. Como estudava à tarde, ficava até a hora do almoço sentado numa pedra à margem da estrada, a conferir de longe a carroceria de cada caminhão que trafegava.
Certa manhã, ao ver o furgão que trazia a esperada bicicleta apontar no trevo na entrada da cidade, saiu correndo feito um louco no rumo da casa de sua benfeitora para contar a novidade e convencê-la a ir à loja o mais depressa possível.
Caiu no choro, entretanto, quando ouviu da madrinha que não mais havia condições para cumprir a promessa feita. O excesso de chuvas naquele mês devastara as lavouras justamente na hora da colheita, frustrando a safra e o dinheiro apurado não dera nem para pagar o que devia ao banco. Quem sabe no ano seguinte, se as coisas melhorassem.
Por isso mesmo, anos depois, ao me ouvir adiantar que deveria ser nomeado, sorria sem graça:
— Pois é... Vamos aguardar. Nunca mais acreditei em nada antes da hora. Cheguei a sentar no selim, dei umas pedaladas em "minha" Monark e a danada não chegou lá em casa!
Na semana seguinte, rimos quando lhe convidei para tomar um café em minha sala e abri a conversa em tom de brincadeira:
— Dê um “ciente” aqui neste ato de nomeação e pode buscar sua bicicleta na loja que agora você tem como pagar sem depender da madrinha.
Meses depois fui-me embora da Bahia, perdi contato e não soube mais do paradeiro dele. Nem depois que voltei a trabalhar por lá, uma década adiante. Mas desde então, quando me deparei no trabalho com pessoas ansiosas em demasia, com a cabeça e os pés nas nuvens, terceirizando a realização de suas próprias expectativas, não resistia e perguntava:
— Você conhece a história das pedaladas de Rebouças? Não? Tem um minutinho?
Já se passaram quase 30 anos desde aquela nossa conversa. Soube outro dia, via Google, que o Dr. Carlos Roberto Rebouças agora administra a Sinart, empresa privada que cuida do aeroporto de Porto Seguro, no sul da Bahia. Tentei três vezes falar com ele, por telefone, mas não consegui. Deve andar muito ocupado nessa época do ano, com a chegada do Verão.
Nas horas vagas, imagino, é possível que relaxe pedalando uma Mountain Bike Caloi – aro 29, câmbio 27 marchas, pelas estradas, trilhas e praias da chamada Rota do Descobrimento, que vai de Prado a Arraial d’Ajuda, região que pouco mudou desde que Pedro Álvares Cabral e sua esquadra aportaram por lá há pouco mais de cinco séculos.
Ou não. Com o tempo, uma bicicleta (ou um par de tênis) que não nos chegou lá atrás vira fumaça, poeira. Fica apenas a lembrança fugaz dessas pequenas decepções infantis.
Mais tarde, a vida empurra-nos goela abaixo, em seco, frustrações bem mais encorpadas. A gente faz de conta que acostuma e vai em frente, pedalando a bicicleta nossa de cada dia.