A arte de viver da fé

A banda Os Paralamas do Sucesso apresentou-se no começo de outubro de 2019, pela quarta vez, no Rock in Rio. Com 37 anos de estrada, o grupo ganhou visibilidade ao participar da primeira edição do festival, em 1985, e segue até hoje com sua formação original (Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone) encantando velhas e novas gerações com uma mistura bem balanceada de rockreggae e outros ritmos latinos. 

Conheci Herbert Vianna, vocalista e líder do grupo, no final do ano 2000, depois de um espetáculo maravilhoso realizado em Salvador. Elegante e bem-humorado, tinha nas mãos quando nos recebeu (minha filha e eu) uma taça de champanhe e um acarajé, em perfeita harmonia com uma noite morna na Bahia de todos os santos “e de quase todos os pecados”, como diz um velho amigo meu. 

Acabara de lembrar à plateia que “... a cidade, que tem braços abertos num cartão-postal, com os punhos fechados da vida real nos nega oportunidades e mostra a face dura do mal: Alagados, Trenchtown, Favela da Maré. A esperança não vem do mar nem das antenas de tevê: é a arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê...”

Nem sabia que Trenchtown é uma favela jamaicana na periferia de Kingston, capital da Jamaica, onde nasceu e cresceu Bob Marley, maior ícone do reggae. Mas já conhecia bem de perto o forte cheiro de esgoto de Alagados, lugar escolhido por Irmã Dulce para iniciar seus trabalhos assistenciais.

Naquela noite, a música pulsante sacudiu de quarentões a adolescentes, tocados com ritmos e letras de canções como: “Aonde quer que eu vá”, “Alagados”, “Caleidoscópio”, “Ela disse adeus”, “Lanterna dos afogados”, “Meu erro”, “Óculos”, “Tendo a lua”, “Vital e sua moto”, entre outras.

Em menos de seis meses, numa tarde de domingo no começo de 2001, fiquei chocado com a notícia de que Herbert e sua mulher, Lucy Needhan-Vianna, haviam sofrido grave acidente com um ultraleve em Angra dos Reis, litoral sul do Rio. Ele teria perdido o controle da aeronave ao tentar executar uma manobra simples para quem era expert no assunto. Na queda, ficou paraplégico e Lucy, presa no cinto de segurança, morreu afogada.

Fui reencontrá-lo 13 anos depois, em Brasília. O semblante triste deixava nítido que as perdas ainda doíam muito. Só a desmedida paixão pelo que sabia fazer como poucos o mantinha conectado à vida. 

Traduziu bem essa conexão ao declarar numa entrevista algum tempo depois: “na música você consegue canalizar com igual intensidade alegrias e tristezas profundas. Um exemplo disso é quando eu, através de uma canção que a gente tem, digo: ‘Olhos fechados pra te encontrar, não estou ao seu lado, mas posso sonhar. Aonde quer que eu vá, levo você, no olhar’. 

Lucy, o grande amor de sua vida, deve ressuscitar nessas horas e o encoraja a sonhar, seguir adiante. É a arte a viver da fé, da crença de que ela está bem ali, só não vê quem não quer.

Toda tragédia como a que vitimou Herbert e sua mulher nos leva a pensar sobre quão fugaz é a vida. E mesmo assim, é praticamente impossível a qualquer um de nós viver apenas o presente, sem trazer os fardos pesados de ontem para a sala de estar de hoje e sem criar a falsa ilusão de que amanhã tudo poderá ser mais leve.

Penso nessas coisas e noto que pouco aprendi sobre a arte de viver da fé. Nunca me convenci, por exemplo,  de que  “querer é poder”. Para mim, isso não passa de um clichê surrado. Perguntem aos filhos da agonia que sobrevivem em Alagados, Trenchtown ou na Favela da Maré se querer é suficiente.

Eu bem queria nunca mais acordar de mau humor. Ser mais tolerante com quem pensa diferente de mim. Viajar sem pensar, desde a partida, no dia da volta. Ou discordar de quem diz que a morte nada mais é do que cair num sono profundo e não acordar nunca mais. 

Eu bem queria acreditar que o céu e o inferno não são aqui e agora, a partir do que faço ou deixo de fazer a cada momento, desde que acordo e decido se vou ao banheiro descalço ou de sandálias. Se vou caminhar logo cedo com o que trago dentro de mim da noite anterior ou se me empanturro de novas notícias na internet ou tevê.
 
Na arte de viver da fé, querer é pouco. Quase nada. 

Comentários

  1. Amigo,
    O texto é profundo, "a arte de viver da fé", cada dia vemos a fé ser mais comercializada,vende-se fé, mas a fé existe, e como diz um outro poeta " a fé não costuma falhar", a fé de verdade, claro.
    Me chamou atenção quando você disse que não acredita no "querer é poder", concordo perfeitamente, pois nesse mundo onde o diabo do dinheiro está sempre presente, pouquíssimos são os casos de querer ser poder.
    Enfim, parabéns! Um texto para muitas reflexões.

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  2. A arte auxilia na superação das dores, os poetas sabem disto como ninguém.

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    1. Veja, Ademar, o que escreveu Herbert em uma de suas canções:
      “ Sua vida, seu amor, seu lar
      Cuide tudo que for verdadeiro
      Deixe tudo que não for passar
      Palavras duras em voz de veludo
      E tudo muda, adeus velho mundo
      Há um segundo tudo estava em paz”

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  3. A arte de viver da fé...fé em Jesus! Aquele que venceu! Tudo posso naquele que me fortalece!

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  4. Que crônica linda, Hayton! Sem palavras! Também acredito nisso: querer faz muita diferença, mas não é poder. Principalmente para os menos desfavorecidos e para as vítimas do destino.

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  5. Você está cada vez melhor, meu amigo... impressiona sua versatilidade de estilos e como "brinca" com as palavras. Sua narrativa fluida de belas histórias, recheadas de filosofia, metáforas e, por vezes, poesia em prosa, são envolventes e cativantes. Você tem feito de suas memórias e do gosto pela escrita não apenas um hobby, mas um verdadeiro diário aberto de sua vida e da sua forma de vê-la, com uma perspectiva diferenciada (para nosso deleite). Sigo acompanhando todas e aguardando o lançamento do livro de coletâneas.

    E o "querer é poder" talvez seja exatamente isso - a arte de viver da fé. Ainda que de fato muitos não "possam", enquanto "querem" estão seguindo em frente, na (vã) esperança de dias melhores.

    É sempre um prazer lê-lo. Forte abraço!

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  6. Pensei que não fosse chegar esse dia, mas vou discordar. Numa boa. Querer e poder. Talvez exista uma forma certa e uma errada de querer, e a primeira seja muito sutil.

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  7. Excelente! Esta bela crônica nos faz refletir dentre outras como é fugaz nossas vidas. Abs

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  8. Quem vive da arte voa com os pensamentos em um patamar superior. Mas o chão é real. Na hora de se agarrar em alguma coisa, ainda que seja a fé, o "pé no chão" tem que existir... sobre fé, parece que comungamos de pensamento idêntico.

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  9. FABRICIO LUCAS DI PACE30 de outubro de 2019 às 06:57

    Em 1997 fui ao meu primeiro show dos Paralamas no extinto Galpão 4 aqui em Maceió e todos saíram maravilhados com a energia que vinha do palco, saí de lá com a sensação de ter visto o melhor show da minha vida. A banda só voltou a tocar por aqui já após o acidente e, apesar ser um excelente show, a sensação era de que ele ainda a carregava no olhar como mencionado no excelente texto acima. A arte, a fé, a crença no amanhã melhor ou no que se propõe acreditar ou se agarrar é o que impulsina o ser humano a tirar forças para continuar nessa estrada da vida.Parabéns por mais essa bela reflexão.

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  10. Meu tio agora é escritor!!! Excelente iniciativa... Trazendo reflexões profundas para repaginar a vida como uma poesia... Muito bom encontrar o seu talento e não enterrar, mas fazer florescer e trazer mensagens de esperança para amigos e familiares!

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  11. Gostei. A frase correta seria "querer é do poder". Quem quer e pode, consegue. O resto é viver da fé.

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  12. O que posso dizer, sensacional e marcante!

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  13. Como sempre, uma excelente crônica. Marcante pela triste história do Hebert Vianna, e muito forte pela sua reflexão no final.

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  14. Boa! Muito boa ! Mas eu prefiro continuar acreditando que " Dias melhores virão "... e piores também( como alguém já falou).��

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  15. Mais um excelente texto, Hayton. A escolha do tema e os versos musicais que dão sustentação a ele ficaram muito bem trabalhados. Li a crônica como que ouvindo um fundo musical dos Paralamas a embalá-la. Parabéns por mais esta.

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  16. Assim como acredito que tudo o que a gente faz de bom ou de ruim um dia volta para nós, acredito que o céu e o inferno sejam aqui e agora - mas acredito em Deus. Parabéns pela crônica, real e verdadeira!

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    1. Eu também, primo!
      Se Ele não existisse também não existiria o Ateísmo, pois esse existe em função daquEle. Se Deus não existisse, o Ateísmo perderia sua razão de ser e deixaria de existir. O Ateísmo, ou seja, a necessidade de negação de uma divindade, acaba sendo a maior prova da existência de Deus. Simples assim.

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  17. É... já diria outra poeta: "A VIDA É TREM BALA, PARCEIRO. E A GENTE É SÓ PASSAGEIRO PRESTES A PARTIR".
    Sr. Lica deixou de herança em meu sangue que nada deve ficar pra depois. Amanhã pode ser tarde!

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  18. Excelente narrativa Hayton.

    O grande problema da frase: _Querer é Poder_, está no "querer". Homens são insaciáveis e, por conta disso, essa possibilidade seria absurda e intangível.
    Porém, *JESUS nos ensina:
    "_Mateus Cap. 21. 22 E tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis._"

    Agora não somente há o "querer", mas o PEDIR, acreditando nEle.
    PS: Falo por experiência própria. ELE FAZ !!!
    Forte abço.

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  19. Eita paraibano que sabe das coisas. Parabéns Hayton. Show de coluna.

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  20. Sonhar não custa nada; o importante é tentar transformar o sonho em realidade, se esse for o objetivo.

    Mais uma daquelas crônicas que lemos de um fôlego só, simples e bela. Parabéns!

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  21. Prezado amigo Hayton

    Vc me pareceu mais reflexivo nesta crônica. Para mim, fã do cronista e leitor assíduo de seus escritos, me chamou a atenção, neste texto, não encontrar o tom otimista e divertido que caracteriza suas narrativas.

    Na verdade, achei muito pertinente esse convite que faz a crônica para pensarmos sobre a efemeridade da vida, a eternidade dos sentimentos e a banalidade das verdades provisórias.

    Forte abraço, à espera da próxima.

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  22. A arte de viver da fé é verdadeiramente uma arte. Você e eu sabemos disso. Excelente crônica!

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  23. Realmente, muito boa crônica! Profunda... mexe com fé! Parabéns... ��������

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  24. Li e reli seu texto. Fã que sou do Paralamas viajei no seu texto ao som das canções da Banda que vi nascer em BsB. Mas, uma coisa me cutucou e intrigou. “Querer é poder” é um clichê surrado? Sei não... Sonhar, acreditar e realizar basta querer? É mais do que isso! Talvez seja a centelha que gera o fim da inércia. Talvez seja o início do caminho...

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  25. A tragédia dele marcou demais a todos nós. A arte da fé é sempre melhor cantada quando as coisas dão certo ou tem ao menos chance de dar certo, que não é o caso dos excluídos.

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  26. Que lindo, Hayton. Homenagem e sensibilidade, que né tocou profundamente.

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  27. Interessante...
    Escritor quando é amigo, provoca na gente situações que, a mim, me parecem inusitadas.
    Levam seus leitores a comentar cada publicação com entendimentos e incursões pessoais interessantes.
    Ao mesmo tempo em que promovem um tipo (não sei se é o caso e/ou se isto é possível) de complementação do texto – registrando aspectos pessoais, vivências, concordâncias, discordâncias e dissonâncias relativas ao tema do dia – levando a nós, leitores, a também degustarmos desses depoimentos.
    E olha que eles vêm de parentes e não parentes. Dentre estes últimos, amigos e colegas que tiveram ou têm algum contato com o autor, que com ele compartilharam alguma vivência no âmbito familiar ou profissional.
    Isso só melhora, e cada vez mais, o prazer da leitura, complementado com esse componente extra igualmente prazeroso e valoroso que são os comentários e as diversas nuances que abrangem.
    Então... escrevi... escrevi... e pouco ou nada acrescentei – destoando do conjunto de comentários desta crônica e objeto destas minhas “mal traçadas linhas” (riso). Ou não. @braço a todos e Parabéns, Hayton !

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  28. Meu caro Jurema!
    Por coincidência, morava em Salvador, na primeira ocasião, e em Brasília, na segunda.
    Eis mais uma ótima crônica!
    Mas, querer pode até não ser determinante do poder, mas desejar, querer muito, acordar cedo e trabalhar intensamente na direção desejada... ah sim, se não se chegar lá, chegará muito perto...
    Tenho um guru que certa vez, em uma das suas passagens pela Bahia, disse-me: “faça a sua parte que a vida fará a dela”! Se não aconteceu aquilo que eventualmente eu desejei, certamente é porque não fiz por merecer... rsrs, não!?

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    1. Pois é, Seu Matias, este seu guru sempre foi metido a entender das coisas que existem entre o céu e a terra. Erra na maioria das vezes, mas vez por outra acerta. Se não perde a confiança da meia dúzia de fiéis seguidores que amealhou durante a vida.

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  29. Este comentário foi removido pelo autor.

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  30. Ótimas reflexões em mais uma bela crônica. Concordo com você, amigo Hayton: querer não é suficiente. Se assim fosse, meu Furacão jogaria a final da Libertadores neste mês. Mas não bastou querer. Era preciso passar pelo Boca... Talvez a negativa esteja mais perto da realidade: não querer é praticamente garantia de não poder. Vou continuar acreditando em muitas coisas, mas sem me deixar levar por esses clichês que assolam o País (e o mundo).

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  31. Amigo Hayton,
    Texto inspiradissimo, como sempre de ótima qualidade. Demonstrando que a Vida vale a pena, deve ser vivida, aceitada degustada, saboreada.
    Parabéns

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  32. Querer é poder? Para mim, a resposta é "depende". Usam esse mantra para superação de desafios tidos como "impossíveis". Quero "roubar" os anéis de Saturno (talvez a Rita Lee o possa!). Não vejo como esse querer será possível, em alargado futuro. Quixotesco que estou hoje, fico com Cervantes (com o perdão da cacofonia): "Busco na morte a vida,
    saúde na enfermidade,
    e na prisão liberdade,
    no que é fechado saída
    e no traidor lealdade.

    Do meu destino porém
    vão é esperar algum bem:
    uniu-se ao céu no castigo
    que, se o impossível persigo,
    nem o possível me dêem."

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