A falta que elas me fazem

Quando ganhei de presente de Natal minha primeira bola “oficial nº 5”, senti pelo peso do embrulho que não era uma couraça daquelas com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la de arranhões nos campinhos de terra batida ou no calçamento da rua.

Era de material plástico (vinil), grosso. Doía demais quando batia nas costelas, na boca do estômago ou nas coxas. Devo ter corrido pela calçada com a “dente-de-leite”, superando adversários imaginários, tentando fintá-los um por um até a esquina.

Finta, para quem esqueceu, é aquela jogada individual em esportes como futebol, vôlei, basquete, handebol, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do adversário. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. 

Meu irmão Dula (Hélder), baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era mestre na arte da finta, com um requinte cruel: o escárnio sobre os adversários que queriam parti-lo em pedaços após sofrerem com suas fintas e risinhos de deboche. Só não conseguiam por conta da providencial cobertura de três anjos da guarda maiores e afeitos a brigas de rua: seus irmãos mais velhos.  

Por falar em finta — que imortalizou gênios do quilate de Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, com o tempo percebi que se trata, na verdade, de uma dança lúdica que algumas crianças já nascem sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choram, dormem, mamam ou urinam. Nunca fui bom nisso!

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. Quando o sol esfriava e desaparecia no horizonte, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão a dar seu ultimato, o que obrigava a molecada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

Muitas vezes, o medo de molhar-se levava a dona da chinela — espécie de zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não da advertência de um jeito capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

Além de motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela tornou-se instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim apenas o constrangimento quando a lapada na bunda acontecia ainda na calçada, sob o riso de uma plateia de maloqueiros da vizinhança nada solidária.

Ainda assim, com todo respeito a quem pensa diferente, devo admitir que a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que todos nós guardamos na memória, um dos mais nítidos é, sem dúvida, o daquele corretivo nas nádegas. 

Sim, era necessário que fizesse o barulho clássico que todo mundo um dia já ouviu, sob pena de o corretivo não surtir o efeito desejado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível dava partida na trilha sonora do choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso materno.

Voltando a minha primeira bola, há quem jure que são necessários pelo menos quatro séculos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se essa conta for verdadeira, exerço aqui o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: onde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

Nunca ninguém me contou que fim ela teria levado. Se houve crime — furto? roubo? —, está prescrito, perdoado e vida que segue. No trem que partiu da estação de minha infância, há mais de meio século, só me deixaram trazer algumas imagens que vagam nas sombras de minhas recordações. 

Sei que uma hora dessas o trem vai chegar na última e definitiva estação. Enquanto isso — e tomara que demore bastante! —, seguirei em frente, superando obstáculos imaginários ou não, a driblar a falta que sinto de minha primeira bola e até das chineladas que por sua causa ganhei. 

Comentários

  1. Hahahaha. Boas lembranças! Imaginei a risada do tio Dula tirando onda hahaha.

    ResponderExcluir
  2. Que Bela retrospectiva, com certeza vivida por muitos dos seus Leitores. Conhecedores, saudosos deste momento histórico, de vida especial.
    Parabéns, Vamos que Vamos.

    ResponderExcluir
  3. Amigo,
    hoje voltamos a nossa infância de forma sadia e com suadades, realmente a chinelada pedagógica nos ensinou limites e respeito a quem mais nos amava, nossos pais, relembro as minhas chineladas por passar do horário, nas brincadeiras de "baleado", jogo feminino com bola, jogava com as mãos, tudo muito saudável.

    ResponderExcluir
  4. FABRICIO LUCAS DI PACE18 de dezembro de 2019 às 06:59

    Confesso que tb levei muito dessas chineladas nas nádegas, mas toda vez que a fintava eu me arrependia na mesma hora pq de bate pronto surgia uma voz ao fundo: "se eu te pegar depois vai ser pior" kkkkk então eu voltava e aceitava a chinelada do momento por não querer arriscar pra saber o que seria esse "pior" que viria depois kkkkkk

    ResponderExcluir
  5. Quem não conheceu a famosa " chinela voadora " ( que hoje poderia ser DRONE) não teve infância ! Kkkkkkkk

    ResponderExcluir
  6. Que belas lembranças, Jurema!
    Pra minha turma, ganhar uma “dente de leite” era para os mais abastados. No meu caso, o presente foi uma “canarinho”... de plástico um pouco inferior, de cor vermelha com o nome escrito em preto. Também era a causa de deixarmos parte das pontas dos dedos no asfalto, que fazíamos de quadra em frente às nossas casas... Mas, pelo visto, o apito final da juíza ao final da tarde era similar.

    ResponderExcluir
  7. É, o tempo a tudo ameniza, até a “arte” de apanhar! Kkkkk

    ResponderExcluir
  8. Este texto realmente me fez viajar pelo tempo, Hayton. Não tem como esquecermos das peladas na Rua enladeirada, onde jogávamos dois tempos, um subindo e outro descendo a ladeira. Sem falar nos campos de barro batido ou de areia da praia de pajuçara. Não lembro de minha primeira bola de couro, mas não esqueço de minha alegria quando recebi de minha mãe a primeira bola “dente de leite” novinha em folha, que me renderia muitas chineladas.

    ResponderExcluir
  9. Voltei nos anos 60.... quem não passou por isto naquela época????

    ResponderExcluir
  10. Você fez com a crônica, Hayton, um verdadeiro passeio-pensamento coletivo. Quem lê-la e não se transportar para sua infância é porque não vivenciou essa época que hoje a classificamos como maravilhosa. A chinela, hoje traduzida como politicamente "incorreta",formou tantos comportamentos exemplares, sem nenhuma visita ao divã. Parabéns por mais uma junção de palavras com capacidade de fazer-nos embarcar nesse mundo imaginário das nossas lembranças.

    ResponderExcluir
  11. Eu me senti como Dula. Talvez uma coisa que demore mais a se decompor do que sua dente-de-leite seja a raiva de quem foi driblado. Eu sou muito grato por você sempre ter defendido Dula, ter me defendido e defendido a arte.
    Você é um porreta! Embora lasque a gente com essas memórias que fazem um pobre velho como eu chorar de alegria antes do café.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você também pega pesado com o tom poético de seu comentário. De quebra, encoraja-me a seguir escrevendo essas bobagens.

      Excluir
  12. Chato era parar a brincadeira para tomar o famigerado banho. Kkk

    ResponderExcluir
  13. Difícil dizer quem não viveu essa experiência e morre de saudades desse tempo. Valeu, Hayton!!

    ResponderExcluir
  14. Que viagem na nossa estória esse texto nos remeteu. Aqui estou com lágrimas, não pelas sábias e corretivas chineladas, mas por tudo a que elas trazem na minha memória. Ah e a primeira bola então...essa ninguém se esquece!

    ResponderExcluir
  15. Eita que farra ...
    E as "cabeça" de dedos estropiadas???
    Muito boa, Hayton!!

    ResponderExcluir
  16. Bom dia pessoal. Aqui, no Maranhão, terra do pai do Hayton, morrendo de rir de todo esse cenário, viajando literalmente a uma infância inesquecível, recheada dessas peripécias saudáveis. Como você Hayton, é bom nisso! Logo no café da manhã, consegues nos fazer gargalhar! Valeu mesmo essas lembranças da juíza e da ferramenta tão pedagógica e tão bem conhecida por todos nós. Ah, essas crianças e adolescentes de hoje, não sabem o que é infância de verdade! Valeu mesmo. Um abraço

    ResponderExcluir
  17. A primeira couraça, eu ganhei colecionando figurinhas num álbum de futebol. Foi assim que comecei a torcer pelo Vasco de Barbosa, Haroldo e Augusto; Eli, Danilo e Jorge; Friaça, Maneca, Ademir, Ipojucã e Chic Daí para as chineladas, foi um passo.

    ResponderExcluir
  18. Belas lembranças!
    Tenho saudades só de ver meu pai correr atrás dos netos com uma chibata quando iam ao campo jogar bola e ele era quem se estará leva no chão depois de uma bela carreira. Eu, como sempre fui quietinha e não fazia essas travessuras, corria mas pra me esconder com medo de apanhar também.
    São boas lembranças que nos reportam à juventude. Abraços...Cristina

    ResponderExcluir
  19. Uma de suas melhores crônicas entre muitas muito boas. O que sofremos com a aspereza da bola de couraça e com a dureza pétrea das dentes de leite, só nossas canelas podem testemunhar. A pedagogia da sova é que não coincide entre nós. Quem me batia era o Velho, com a escova de engraxar sapatos, 12 bolos, seis em cada mão, e alternados. O forte abraço do Sidney.

    ResponderExcluir
  20. Quem tinha mais dinheiro comprava a bola Pelé os demais a bola canarinho. O chinelo era de marcas diversas.

    ResponderExcluir
  21. Seus textos, além de irretocáveis, são sempre mais que prazerosos. E sempre nos levam às melhores - às vezes também a algumas dolorosas, quem não as tem?? - recordações da vida.
    Do futebol também sou acompanhante apaixonado, conquanto jamais destrate alguém ou sequer arranhe amizade em função de preferência por time.
    Quanto à prática dele na infância e juventude, também fui um quase viciado. E nunca esqueci da primeira bola de couro que ganhei de um médico recém chegado na minha querida Itaberaba - ele um verdadeiro craque da pelota se entusiasmou vendo-nos jogar um "baba" em um campinho que ficava do lado da casa de meus pais, em uma das visitas que fez a minha mãe enferma. Ficou a nos assistir e trouxe-me uma bola de presente ao retornar de uma viagem a Salvador. Tornou-se ele um grande amigo de meu pai e meu, por toda sua vida. Há dois anos nos deixou e eu levo esta saudade e reconhecimento comigo.
    Aqui é Volney, grande abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Uma crônica puxa a outra, meu caro Volney. Tem coisa melhor do que fazer os leitores lembrarem de suas próprias histórias? Você me honra com a atenção que sempre dá a meus textos, amigo!

      Excluir
  22. É, meu amigo, não há um de nós que não tenha tido a honra de ter passado por tudo isso. A bola, não sei se presente ou afago, a gente ganhava porque nossos pais sabiam que não ficaríamos em casa sem ela. O chinelo, bem, psicólogo famoso, esculpiu personalidades maravilhosas, e a gente conhece muito disso. Pena que o mundo gira rápido demais e com ele alguns conceitos esvaem... maravilhoso o texto.

    ResponderExcluir
  23. E já ia me esquecendo... quantos problemas aprendemos e soubemos contornar com o jogo de cintura adquirido desde criança.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Por isso que digo, Mazine, que uns já nascem escolados na arte de driblar as adversidades e marcar seus gols. Outros, como eu, acabam aprendendo. No fim desse jogo, amigo, todos somos vencedores. Afinal, ninguém nasce com vocação para derrota.

      Excluir
  24. Foram muitas as negociações que fiz com o açougueiro da rua onde eu morava, para que ele sempre reservasse para mim pedaços de sebo que eu também utilizava para deixar em ponto de bala as bolas de capotão, como a gente costuma chamar. E como um grande zagueiro (1,88 de altura) que fui, boa parte daquele sebo, invariavelmente, ia para na minha cabeça, tantas eram as rebatidas de testa... E aí, o banho era sempre mais do que necessário.

    ResponderExcluir
  25. Com uma bola debaixo do braço e um par de kichute nos pés, com sol ou com chuva, também me vi retratado nessa maravilhosa história.

    ResponderExcluir
  26. Kkkkkkk. Posso ouvir a risadinha do Tio Dula

    ResponderExcluir
  27. Bom dia Hayton!
    Lendo suas crônicas, nos remete à nossa infância. O chinelo voador, a palmatória e tb o chicote.
    Concordo com a Poetisa, quando ela diz:
    " Ah, essas crianças e adolescentes de hoje, não sabem o que é infância de verdade "
    Nasceram na era da tecnologia.
    Valeu primo!
    Abraços,
    Maria de Jesus A. Rocha.

    ResponderExcluir
  28. Quando pensamos que lemos a melhor... você melhora!!!!

    ResponderExcluir
  29. Quem diz que não é possível viajar no tempo nunca leu suas crônicas. Apanhei muito de chinelo e cinto na minha infância, marcas que rapidamente esquecia assim que a bola começava a rolar nas peladas travadas diariamente nas ruas e quadras públicas de futsal. Rasguei muitos tênis e calças jeans no exercício da árdua posição de goleiro durante o intervalo das aulas e ao final delas. Claro que esse prejuízo justificava novas chineladas e o ciclo se reiniciava...

    ResponderExcluir
  30. São estas imagens, que açoitam as lembranças de uma infância a juventude, as reminiscências mais preciosas que temos. Desde o sebo pra fazer a bola durar mais, até o couro quente, após massagem de havaianas que tomou. Tudo faz sentido quando mais tarde, folheando o livro de nosso viver, já com tantas páginas sábias de amarelados em branco trechos aos apagados, ao virar pra próxima aparece um fragmento de uma bola, de uma finta. Onde está aquela bola? Está nas crônicas que evoca e nos brinda com elas. Está nos comentários de tantos, como eu, que com elas se identifica. As boas lembranças são dádivas que do nada aparecem e nos acariciam com vida. Quem escreve sobre elas faz um pacto com a imortalidade, fazendo-as ecoar nos campos do infinito. Isto é o que tem feito, e com mestria.

    ResponderExcluir
  31. A bola de futebol e as chinelas eram as terapias da época. Eficientissimas, por sinal. Depois criaram os psicólogos e a graça se acabou. Nunca tive uma bola, mas estava sempre por perto de um feliz proprietário.
    Parabéns pelo texto.
    ACCampos.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Que chato, não?!

Perfume raro

Abacaxi de ponta-cabeça