O velho José de Brito Jurema, quase um clone matuto e carrancudo do genial dramaturgo, palestrante e romancista paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014), desmontou de sua égua em frente à única agência bancária da cidade de Itabaiana-PB, dirigiu-se ao balcão de atendimento, chamou no canto um baixinho franzino que orientava alguns clientes e foi direto ao ponto:
— Vosmecê pode me dizer qual é sua intenção com minha filha?
— Calma, seu José, vamos conversar... — ponderou Agostinho, que, quatro anos mais tarde, se tornaria meu pai.
— Me disseram que vosmecê tá se enxerindo pro lado da menina. Ela só tem 16 anos, viu?
— Seu José, eu já iria mesmo procurar o senhor lá no sítio Jacaré para pedir a mão de Eudócia. Nós vamos nos casar assim que correrem os papéis no cartório.
Meu avô andava bravo com as conversas de comadres que ouvia no sítio "Jacaré", a oito léguas da cidade, dando conta de que sua filha, balconista numa loja de tecidos, namorava um bancário forasteiro (sete anos mais velho do que ela) que chegara havia pouco tempo para trabalhar com mais três amigos solteiros.
Naquele dia, ordenhou suas duas vacas antes do sol nascer, bebeu uma caneca de leite quente direto das tetas e partiu disposto a tirar a limpo inclusive o boato de que o rapaz que arrodeava sua filha era casado.
Em 1954, pouco antes de mudar para a Paraíba, Agostinho se envolvera com uma moça em Caxias-MA, cujo cunhado, delegado de polícia, ao tomar conhecimento de que ele fora aprovado em concurso público para ingresso no Banco do Brasil, praticamente o obrigou a casar. Nem que o matrimônio se desse apenas diante do padre, para que sua cunhada não ficasse “na boca do povo”.
Eu e meus irmãos mais velhos (Haydeé e Agostinho, filho) só soubemos desse episódio dali a 18 anos, em Maceió-AL, após a morte de nosso pai. Eudócia, nossa mãe, casada “de papel passado em cartório e tudo”, nos contou que poucas semanas depois de seu casamento apareceu em Itabaiana-PB uma mulher morena, bonita, dizendo a todo o mundo que Agostinho “já era dela”.
Uma tia nossa, furiosa como uma gata parida quando tem cachorro por perto, de pavio curto feito seu pai Zé de Brito, procurou a moça na pensão em que se hospedara cuspindo maribondos:
— Desapareça daqui, sua cabrita, senão eu vou lhe dar uma surra com uma correia de máquina de costura que você nunca mais vai esquecer!
Mais tarde a moça foi vista embarcando na estação ferroviária. Disseram que partiu para os lados de Pernambuco, primeira escala antes de seguir no rumo da Bahia. E dela não mais se ouviu falar na Paraíba.
Embora meu avô fosse um pequeno ruralista inculto e tosco, de quem nunca se viu um gesto de carinho sequer para com os netos — exceto com meu irmão Agostinho Filho, no dizer dele o calmo “Neninha” —, é possível que eu tenha sido o único que lhe fez perder a paciência e sacar o cinturão de couro em duas oportunidades.
Na primeira, meus pais haviam viajado até a capital paraibana, João Pessoa, deixando os filhos sob os cuidados dos avós. Curioso, enquanto meus tios escutavam pelo rádio a transmissão de Brasil e Bulgária, direto da Inglaterra, na abertura da Copa do Mundo 1966, achei de testar qual seria a reação de um peru caso inalasse a fumaça de um retalho de pano em chamas preso a uma vareta que amarrei em seu pescoço.
Ao ver o "teste", o velho Zé de Brito correu atrás de mim em torno da casa-sede de taipa do sítio "Jacaré" na inútil tentativa de me dar uma surra. Quando sentou ofegante no alpendre, eu não parava de rir de sua falta de ar, certamente reflexo do cigarro de palha que vivia no canto da boca.
Na segunda vez, meu avô já estava sob tratamento médico em Patos-PB procurando resolver sérios problemas cárdio-pulmonares. No seu jeito naturalmente descortês, pediu água num dialeto estranho para quem, como eu, já lia e escrevia com alguma desenvoltura:
— Ô minino, vigie um caneco d’água mode matar minha sede!
De novo, caí na gargalhada e ele por pouco não me ensinou a respeitar os mais velhos da forma que aprendeu a educar seus filhos. Mas não aguentou a falta de ar, tossiu e voltou resmungando para a sua rede. Morreria alguns meses depois, já de volta ao “Jacaré”, torrão natal onde sempre viveu.
A vida seguiu e, com o passar do tempo, percebi que Dona Eudócia esquecera por completo que havia compartilhado com alguns filhos a história do casório no religioso por parte de meu pai.
Eu já morava na Bahia, no começo dos anos 90, quando, em férias, ao visitá-la em Alagoas, provoquei:
— A senhora não vai acreditar no que me aconteceu! Outro dia fui procurado em Salvador, no trabalho, por uma mulher bonita, bronzeada, cabelos grisalhos, que jurava ser minha mãe. Tomei um susto danado! Não é que me achei parecido com ela...
— É mentira daquela sem-vergonha! Você é meu filho e nasceu um ano depois de Haydeé — atalhou Dona Eudócia.
— Calma, mamãe, é gaiatice minha! Esqueceu que nos contou que papai era casado no religioso quando se mudou para a Paraíba?
Ela ainda quis pegar no cabo da vassoura para me botar pra correr da sala de jantar, mas, digamos assim, percebeu que tinha agora diante de si um pai de família sério, trabalhador, que já contribuía com sua parte para o nosso belo quadro social.
Do moleque de antigamente restara apenas o que minha avó, Dona Carmelita, “Mãe de Jacaré”, questionava nos meus primeiros anos de vida:
— Repare mesmo, Doça, esse menino é cheio de marmota! A quem ele puxou?
— Não sei, só sei que ele é assim... — diria Chicó, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, se visse a cena.
— Não sei, só sei que ele é assim... — diria Chicó, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, se visse a cena.
Excelente crônica, Hayton, de inclusão obrigatória no próximo livro. Abraço do Sidney.
ResponderExcluirTudo novidade para mim, menos as peraltices do autor.
ResponderExcluirDona Eudócia, nossa mãe, me ligou hoje cedo dizendo que esqueci de contar uma parte importante da história.
ExcluirSegundo ela, “você esqueceu de falar da surra que eu levei de meu pai porque foram dizer a ele que eu estava conversando com Agostinho na porta da igreja, depois da missa, às 9 horas da manhã. Me bateu com cipó de joá e deixou minhas costas roxas. Mas o coitado me pediu perdão antes de morrer.”
��
ExcluirParabéns pela bela crônica amigo! Recordar é viver. Abs
ResponderExcluirSempre gaiato, nem o avô escapou ... kkkk
ResponderExcluirImagine os netinhos hoje em dia, Susy. O caso é mais sério do que se pensava no começo de tudo!
ExcluirAdorei a descrição da Sede. E a ludicidade com tua mamãe. Acho que o humor é uma porta que se abre para uma conexão maior, talvez a mais refinada e humana das atitudes perante a vida. Muito gostosa recordação, embora perigosa de ser pego pelo seu avô e levar uma surra de cipó de aroeira no lombo. Mas, pensando bem, já daria outra crônica. Então, como diz a poesia, nada é pequeno quando a alma é enorme. E a tua o é.
ResponderExcluirKkkkkkkk. Muitas histórias para contar ainda!
ResponderExcluirPelo que ouvia meu pai contar, era assim mesmo que os casamentos de antigamente eram marcados, especialmente aqueles cujos namoros demoravam um pouco mais... o pai da moça logo procurava o rapaz para saber suas intenções... “o que você pretende com minha filha, é pra casar ou pra que é?” Alguns descomprometidos e metidos a engraçados ainda arriscavam responder: “é pra que é!”
ResponderExcluirkkkkkk. eu sorrio o tempo todo com as peraltices do meu primo. Sou aqui do maranhão, da terra do tio Agostinho, primo legítimo de meu pai, filhos de dois irmãos. Mas o autor é demais!
ExcluirAbraços
Que história! Kkkkkkk
ResponderExcluirÉ, você gastou depressa sua cota de peraltices...
Com o estilo impecável, novo relato com gosto de nordeste.
ResponderExcluirEu fiquei curioso pra saber o que aconteceu com a Cabrita que fugiu pra Bahia. Minha avó, dona Onédia, dizia rabugenta que lembranças são como um novelo de lã, que só ficam organizadas se não as desenrolamos.
ResponderExcluirAcompanho desde que este espaço era só um brilho em seus olhos e fico muito feliz em acompanhar a prosa de seu desenrolar.
Dedé Dwight
Deve ter encontrado outro cabrito, quem sabe bancário como nós, Dedé. E dona Onédia estava coberta de razão.
ExcluirGrandes e boas lembranças. Tão distantes e, só mesmo tempo, tão próximas.
ResponderExcluirÓtima crônica, Hayton!
ResponderExcluirOlhando, hoje, esse senhor calmo, tranquilo, quem diria que em criança foi o raio da silibrina.
Grande abraço.
Marival.
Muito bom ler cada crônica, e ver a desenvoltura do autor com as palavras. Maravilha, amigo.
ResponderExcluirKkkkkkkkkkkkk. Tio Hayton! Você está se superando. Principalmente nas peraltices.
ResponderExcluirEita meu DEUS! Enganou-se o seu amigo JOSÉ MARIA RABELO quando disse que sua quota de peraltices acabou... Não faz idéia de quantos relatos ainda vão pintar por aqui... Ainda com audácia de sentir-se " injustiçado" nas "piabadas" que levou!! MARMININO!!!
ResponderExcluirQue saborosa história! Vc é privilegiado por ter tido um avô por perto mesmo com toda rabugice. Creio que o balanço dessa relação é muito positiva e estão aí a aguçar sua memória. Eu como não tive avôs - já tinham falecido quando nasci - fico imaginando o que poderia ter vivido sem nunca ter tido!
ResponderExcluirDeliciosa essa crônica. Tem pouco de "Grande Sertão Veredas" esse "...vigie um caneco d'água mode eu matar minha sede ". E o minino mangando do avô é cena digna de filme de Glauber Rocha. Viajar nessas crônicas-histórias é andar pelos recantos desse país. Muito legal!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAcrescentando, Hayton, e como disse sua mana Haydeé, sua cota de peraltices tá é longe de esgotar! E bote peraltices nisso!kkkk
ResponderExcluirAbs
Blz de crônica, Haylton! Esse é vc,nunca perdeu uma oportunidade de "atanazar", mesmo que seja a própria mãe!
ResponderExcluirQuem disse que é um senhor sério , calmo e tranquilo , continua aprontando coitados dos netos !!!
ResponderExcluirNossas fabulosas lembranças. Que bom que tenhamos fatos para lembrar, quer de gaitices, quer reais, mas que nos trazem felicidade em lembrá-los. Parabéns pela crônica, amigo.
ResponderExcluirInteressantíssima. Remete a todos às próprias lembrança da infância no belo solo nordestino.
ResponderExcluirVocê e suas histórias! Muitos dos termos que você usa me são familiares, pois como você sabe minha origem é do RN e vovó
ResponderExcluirusava todos eles. Adoro
Já fico esperando a próxima edição.
Vou propor uma mudança no seu nome para Haytoriano Juassuna da Rocha... Você tá escrevendo cada dia melhor. Ariano que se cuide, lá onde ele está... E cabe destacar o Chicó que existiu em vc, quando adolescente peralta.
ResponderExcluirQuem diria que o Hayton que conheci era tão cheio de marmota. Gostei dessa história, mas fiquei curioso pra saber quem é esse Jacaré.
ResponderExcluir“Jacaré” é o sítio às margens do rio Paraíba, zona rural de Pilar-PB, onde brotou a rama da Juremada toda. Nada a ver com a bocarra cheia de dentes grandes de determinados curiosos.
ExcluirKkkk
ResponderExcluirEspetacular!!!! Tão interessante está crônica da vida real, que qdo começamos a ler, ficamos na torcida que na verdade seja um livro, que o final esteja bem longe.
ResponderExcluirBelas lembranças - cuidado com as peraltices dos netos. 😄😄😄
ResponderExcluirAbraços
Ótimo texto, permite conhecermos a história. Enchemos os olhos de brilho, o coração de amor, o nosso dia, do retrato da vida.
ResponderExcluirGostaria de ver a reação do Seu Agostinho quando o velho Jurema perguntou-lhe quais suas intenções com Eudócia. Do jeito que ele era todo certinho, deve ter ficado da cor de camarão, ou branco como um papel.kkkkkk.
ResponderExcluirPelo jeito, esse seu livro vai ser volumoso.
Muito bacana recordar dos momentos vividos com nossos avós, Hayton. Tive sorte com meus avôs e avó paterna. Já a minha avó materna era estilo “mão de ferro”.
ResponderExcluirMuito boa...
ResponderExcluirCoitado de seu avô , com falta de ar e você rindo...
Estava pesquisando o nome do meu bisa e achei o José de Brito Jurema provavelmente são irmãos. Meu bisa é João de Brito Jurema e era de Jacaré. Eu nasci em Itabaiana e sou neta de Gilberto Geronimo de Brito, filho do João.
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