Asas cortadas no ninho

Meus irmãos não me deixam mentir e podem confirmar que um dia fui eleito prefeito da rua em que morávamos. Coisa de criança. Isso aconteceu em 1966, em Patos, Sertão paraibano, pouco depois da intensa cobertura das eleições estaduais, envolvendo João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (PSD), realizada pela Rádio Espinharas.

A apertada disputa voto a voto – João Agripino venceria com menos de 1% de vantagem – no final de 1965 empolgou o município e tocou fogo na meninada da Rua Bossuet Wanderley, a disputar quem juntaria mais “santinhos” dos dois candidatos. Mais tarde, parte desses papelotes serviriam de cédulas na votação para prefeito da rua. Para fazer o quê? Não sei. O que fazer depois de eleito nunca foi importante no universo político deste país.

Ninguém queria enfrentar Lindomar, chamado de “Lindo”, moleque dentuço, brigão, metido a intimidar crianças menores, filho caçula de Seu João da perfumaria. Seria derrota líquida e certa de quem se atrevesse a encará-lo em todos os sentidos. Vivia a imitar o lutador de luta-livre Ted Boy Marino (1939 – 2012), fazendo das esquinas ringues de brigas de rua no auge do “telecatch” na tevê.

Mas se não houvesse disputa não teria graça alguma. Alguém cogitou minha candidatura e a vaidade, por certo, me fez entrar na brincadeira. Acho que só não queria perder de goleada, porque a derrota era quase inevitável. De cerca de 21 moleques eleitores, na largada uns 15 declararam apoio a Lindo.

Zé Augusto, vizinho meu, estava quieto no seu canto a observar a paisagem, sentado no meio-fio junto a um poste de madeira. Era respeitado por ser mais velho, estudioso, um líder pré-adolescente. Foi o primeiro a quem procurei. Mas dele logo ouvi que não poderia pedir votos aos amigos porque não queria encrenca com Lindo. 

Ao pé do ouvido, porém, cochichou que me ajudaria no que pudesse. Lembrava, certamente, de que eu o flagrara alguns dias antes, por cima do muro do quintal, se esfregando numa cozinheira que trabalhava em sua casa. Se sua mãe soubesse disso a encrenca seria outra. E vejam que nem existiam smartphones para registrar a ocorrência. 

Já com os irmãos Cleto e Flávio, filhos de um conhecido advogado na cidade e amigos de Lindo, com quem partilhavam o hábito de fumar tocos de cigarro atirados ao chão que encontravam pelas ruas, devo ter sido mais explícito. Vira os dois aprendendo safadezas com o vigia de uma obra numa esquina nos fundos do Colégio Cristo Rei. Devo ter dito algo assim: 
– Votem em mim e podem dizer que votaram nele; fica só entre a gente...

Júnior, filho de um dos empresários mais ricos da cidade – dono da concessionária Willys nos anos dourados da Rural, Pick-Up, Jeep e Aero-Willis – foi outro que acabou trocando de lado depois que levou uns murros de Elpídio, irmão mais velho de meu adversário. Não tive nada com a briga mas confesso que podia separá-los e cruzei os braços, a pressentir que lucraria com a troca de sopapos. 

No dia da abertura da caixa de papelão improvisada como urna para votação secreta, veio a surpresa: fui eleito por um mísero voto de diferença, para desespero de Lindo, que chegou a exigir a recontagem dos votos. Era tarde. 

No final da apuração, uns gritavam aqui e outros acolá quando  surgiu na janela Dona Eudócia, minha mãe, bastante aborrecida com a algazarra: 
– Hayton, venha já pra casa! Saia do meio desses moleques senão vou contar pro seu pai que você só quer viver no olho da rua! – esbravejou. Chorei de raiva e constrangimento mas tive que renunciar ao cargo sem tomar posse. 

Mudaria com minha família para Alagoas no começo de 1968, acompanhando meu pai em sua vida cigana como funcionário do Banco do Brasil. Nunca mais ouviria falar daquela turma até voltar a Patos, 35 anos depois, quando soube que alguns dos meninos também haviam partido... para sempre. Envolvidos com arruaças e drogas, morreram em conflitos entre quadrilhas ou com a polícia.

Ao passar na praça Getúlio Vargas, onde fica o Hotel JK, lembrei que fora ali, numa escapulida de casa na boca da noite, enquanto todos jantavam, que os amigos de rua me convenceram a "ser macho" e beber pela primeira vez uns goles de ”cuba-libre“, mistura de rum Bacardi, Coca-cola e gelo que me dá ânsia de vômito até hoje.

Disse outro dia, e repito neste instante, que estaria até agora sob penitência se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão. Dei sorte. Pais farejam no ar certas coisas – como cheiro de terra molhada em plena estiagem – e tratam de cortar as asas de seus filhotes ainda no ninho. Parecem bruxos.


Comentários

  1. Meu Amigo Hayton, Mais uma bela crônica. Descobri mais algo em comum entre nós. Nunca me candidatei a prefeito, mas a danada da “cuba-libre”, também não posso nem passar perto. Abraços.

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  2. Eita! A cada dia revelando mais uma " traquinagem"!! Já vi que o bichinho bem merecia as " piabadas" que levava!! Vivia " solto na bagaceira"!! Só Deus mesmo pra livrá-lo de um " descaminho"!! Quero saber quando vai contar as " fugidas" em União pra andar no cavalo de " Seu Jorge" e tomar banho no Rio Mundaú, pelado ( pra não chegar em casa com a roupa molhada) .

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    1. Você aproveitou pouco ficando em casa a brincar de com suas bonecas. Nem imagina como era bom perambular pelas ruas, ainda que sobrassem algumas lapadas de cinturão vez por outra.
      Do rio Mundaú com suas lavadeiras depois eu conto.

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    2. Primos, essa eu quero ver, faça logo essa crônica. Ainda bem que tem sua mana para sugerir mais estrepolias, pois como toda boa infância daquela época, você aprontou bastante, não é? Ficaremos na expectativa, Hayton.

      Abraços

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  3. Na terra de Ernani Satiro uma carreira política morreu ao nascer. Seria sem dúvida um "estadista". Valeu de novo e novamente.

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  4. Depois reclama que apanhou muito.Era o santinho da rua

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  5. Triste fim de alguns dos teus amigos, Hayton. Infelizmente escolheram o caminho das drogas.

    Patos me traz boas lembranças, pois, foi na AABB de Patos que a nossa gloriosa AABB Maceió, no ano de 2009, fez barba e cabelo na Jornada Esportiva Regional de AABBs - JERAB, ao levantar o troféu de campeã das modalidades de futebol minicampo adulto e master.

    Na viagem de volta a Maceió veio a cereja do bolo para a maioria dos integrantes da delegação, a vitória do Flamengo sobre o Grêmio e a consequente conquista do hexacampeonato brasileiro de futebol, comemorada em um bar na beira da rodovia em território paraibano!

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    1. Que coincidência, Jezrel! Quanto lá estive pela última vez, próximo ao São João de 2002, foi para inaugurar o complexo esportivo que batizaram de Agostinho Torres, homenagem da AABB a meu pai. Serginho Riede, então presidente da Fenabb, estava comigo.

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    2. Justa e reconhecida homenagem, Hayton. As instalações da AABB, notadamente, o complexo esportivo “Agostinho Torres” saltam aos olhos da comunidade local!

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  6. Você foi muito traquino , te vendo hoje não da para imaginar o quanto fostes danado. Valeu muito!

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  7. Rapaz.....conhecendo você ja adulto, jamais imaginaria quão traquino você foi . Bela infância, muita história pra contar.

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  8. credo, mas aprontava o guri. É verdade, a danada da Cuba livre...

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  9. Quer dizer que foi numa noite sem festa, sem gelo e cuba libre, sem vitrola e sem Whisky a Go Go, sem meia luz, sem som de Johnny Rivers, aquela tarde em que você sonhou, ser o prefeito da sua Rua,cuja posse não se consumou. Graças ao "chamado" de sua sábia mãe. Eita minino danado de arteiro.

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  10. Muito boa Hayton. Gostei da descrição do seu oponente e da sua estratégia de campanha!

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  11. Adorei, a rua levou o nome do tio de minha mãe, minha avó tinha nome de solteira Dulce Nóbrega Wanderley, e parte da família morava entre Patos, Serra Negra e Caicó. A forma como relatou a eleição foi hilária, contudo a mais hilária cena foi da impugnação materna da posse. Bom demais. Mãe é mãe e sou filho de família matriarcal. Sei bem o que foi aquele: sai da rua menino! Estas crônicas nos fazem tão bem. São cheias de humanidade, peraltices, humor, e sacadas do bem viver. São crônicas terapêuticas. Obrigado por não parar de debulhar estas letrinhas pra nós nos alimentarmos delas.

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    1. “...Obrigado por não parar de debulhar estas letrinhas pra nós nos alimentarmos delas...” Ao ler o seu comentário, lembrei minha avó materna, Mãe de Jacaré, no seu carinhoso tititi a distribuir xerém no quintal da casa dela. Muito bom!

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    2. Ti ti ti ti... e as letrinhas vão se juntando, produzindo sentidos, sentimentos, emoções e nos elevando, e levando, a outras dimensões. Algo que a arte faz conosco, quando quem a produz, tem o anjo do talento esculpido dentro de si.

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    3. Gostei muito do "debulhar estas letrinhas para nós nos alimentarmos delas..." e o ti, ti, ti para chamar as galinhas!
      Abraço

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  12. É, perdemos um político nato (pelas práticas só agora confessadas rsrsrs), mas ganhamos um excelente colega e amigo.
    História deliciosa!
    Parabéns!

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    1. Só não conseguia comprar votos, Zé. Acho que ninguém aceitava aquelas cédulas feitas de maços de cigarros. Se topassem, talvez fosse capaz de abarrotar uma mala como aquela do Geddel Vieira Lima. Rsrsrs

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  13. Sua fama de quietinho não é à toa , já sabia que vc não era flor que se cheire., afinal deu apelido a todos os seus irmãos ,mais assim já é demais !!!

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  14. Então foste prefeito de rua sem nunca ter sido! Muito boa essa história. Com o sexto sentido de mãe não se brinca!
    Agora, Hayton, percebi que pela segunda vez vc fez referência à sua primeira comunhão como também sendo a única! Fiquei intrigado. Será que tem uma boa história por trás desse acontecimento?

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    1. Tem sim, Beto. Uma hora eu conto.

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    2. Hayton, pois cuide contar logo, para amenizar nossa curiosidade. Vamos aguardar e que seja logo. Abs

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  15. Como diriam nossas mães: tu num tem jeito não, né, menino?? E você era daqueles!kkk Criança tem que ser assim mesmo. Levada e sempre aprontando! O importante é se tornar, como também diriam nossas mães, um homem honrado! E o nosso quase prefeito(graças a Deus) sempre foi!

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  16. Rapaz, você já gostava de uma confusão, hein!?
    Ainda bem que, ao que parece, o cinturão corretivo do Sr. Agostinho funcionava bem e a tempo!
    Melhor assim... rsrs

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    1. Se o mundo fosse perfeito, Matias, chocolates não engordavam.

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  17. Delícia de texto. Impressionante os detalhes. A leitura meio que nos transporta para a cena. 10!

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  18. Hayton, mais uma crônica que nos leva de volta a anos que hoje denominamos como "dourados", porque mesmo as "maldades" infantis daquela época, hoje são apenas motivos de recordações gostosas de se ter.

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  19. Mais uma vez vc pública uma excelente crônica. Parabéns Hayton...político nato! Hahahahha

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  20. Hayton, sua crônica de hoje faz a gente resgatar as memórias de infância de uma outra época e que traz uma saudade danada

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  21. Pense num santinho! Hahaa

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  22. Agostinho Torres da Rocha Filho23 de outubro de 2019 às 10:30

    Como diria o grande filósofo grego Aristóteles, "a política não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça." Embora mais novo, sou testemunha de que, aos oito anos de idade, o candidato aclamado prefeito já desenvolvera seu próprio método de fazer política, caoaz de causar inveja aos caciques do cenário nacional, a exemplo de Vargas, Tancredo, Brizola, Arraes e ACM. Refiro-me aos atributos de liderança carismàtica, inteligência, coragem, perspicácia e justiça próprios dos grandes personagem da história da humanidade. Pena que a "ditadura" tenha cassado o seu mandato antes mesmo da posse.

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    1. kkkkkkk, mais outro primo a escrever muito bem sobre o mano mais velho. Parabéns à família maravilhosa de cronistas. Abraços

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  23. Amigo Hayton,
    Que leitura prazerosa, trazendo o retrato da vida. Desde de garoto já demonstrava sua característica de Líder, influenciando nas pessoas de forma simples, influente e determinante.

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  24. Como regra geral as mães são sábias e tem visão de longo alcance. Sabem que é melhor podar as asas do que permitir voos antes do tempo certo. Belo texto. Abraço

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  25. Rapaz, se eu acreditasse em predestinação teria certeza de que você é um predestinado, pois assim se explicaria uma vida tão cheia de aventuras - você teria sido escolhido pela capacidade de narrá-las depois de forma a encantar seus privilegiados leitores.
    Como executivo você foi brilhante, deixou marca indelével por onde passou. Mas, mesmo tendo tido tanto sucesso, o executivo aínda fica devendo ao escritor, tenho absoluta convicção.
    Como o nosso Tostão, que tendo brilhado tanto no futebol achou pouco e mostra-nos agora um talento ímpar como cronista.
    Não é só o livro que você nos deve, procure também qualquer órgão da grande imprensa que qualquer um deles vai querer de imediato publicar seus escritos.
    Aqui é Volney, grande abraço.

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  26. Marília, Araçatuba, ambas no Estado de São Paulo, e Patos, Estado da Paraíba, tão distantes no espaço, mas tão semelhantes no tempo.

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  27. Que delícia de crônica .Então quer dizer que, desde lá, você já era um excelente negociador, hein?

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  28. Caro Hayton, como é difícil definir em suas excelente crônicas, qual delas é a melhor, pois todas elas se constituem num rol de textos maravilhosos, cada um com cada detalhe interessante, mas que embora vivamos em estados diferentes e sendo da mesma família, acredito que seu pai, meu tio Agostinho Tôrres, tenha levado para bem longe seus costumes e regras, as quais conheço muito bem. Nossas mães e pais, não são diferentes, mudam apenas de endereço. Naquela época como diz seu amigo, anos dourados, vivemos cada aventura e peripécia com intensidade. E como foi bom, apesar das cintadas, dos cocorotes, dos castigos e demais sansões. O mais legal de tudo isso, é que ao ler suas crônicas tão "saborosas", segundo a figura de linguagem sinestesia, nos leva imediatamente ao nosso tempo maravilhoso de infância. Continue a nos presentear com suas crônicas maravilhosas!

    Um abraço
    Lêda Tôrres

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  29. Essas histórias deviam virar um filme. Impressionante como um momento crucial pode fazer toda a diferença.

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  30. Parabéns, amigo Hayton, por mais esse belo texto com que nos brinda.

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  31. Tá vendo como são as coisas? Poderíamos hoje ter um político de respeito ocupando uma cadeira do senado ou, quiçá, de presidente da república... bastava que a iniciativa política tivesse continuado... afinal coragem existia...

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  32. O conteúdo do texto é interessante. Relembrar o passado é sempre bom, principalmente, a infância.

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  33. Se fosse no bairro da minha infância, a desavença seria resolvida na briga. Garotos civilizados, usam o instrumento da democracia: o voto. Kkkkkk
    Mais uma da lavra do livro ...

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  34. É verdade que os pais são bruxos mesmo. Possuem um instinto infalível. E também é verdade, ainda hoje, que os políticos não sabem e não se importam nem um pouco para o quê são eleitos.Você não sabia, mas pelo menos não tomou posse!

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  35. Junto-me aos outros leitores em seus elogios. O espírito de escritor que ficou adormecido enquanto trabalhavas no Banco do Brasil despertou para encantar aos que amam a leitura de crônicas. Parabéns da amiga de infância de União dos Palmares.

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