Na flor dos 69 anos de idade, o marido de uma amiga minha, morador do Lago Norte, em Brasília, no mês passado escorregou de uma escada apoiada no muro que dá para o quintal do vizinho, estatelou-se no gramado e fraturou a clavícula, além de sofrer uma forte pancada no rosto. Tentava de forma sorrateira afanar um suculento caju para presentear a amada.
Inegavelmente, mais que carinho com segundas intenções, ficou claro para mim, de novo, que a criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas. Cheguei a temer pela estrutura óssea do pobre gatuno de meia-idade, apaixonado, que felizmente só amargou alguns dias de tipóia, cama e anti-inflamatórios.
Como uma coisa puxa a outra, lembrei-me do que aconteceu comigo por volta das quatro da tarde de um domingo, quando morei pela primeira vez na Bahia. Na época, no começo dos anos 90, aos 33 anos de idade, ocupava o cargo de superintendente estadual-adjunto do Banco do Brasil, até ali o maior desafio profissional de minha vida.
Voltávamos eu e meus dois filhos maiores (de 13 e 10 anos) para o estacionamento depois de um raro dia em que o sol resolveu fazer greve na praia de Vilas do Atlântico, em Lauro de Freitas (BA). Eles estavam exaustos dos mergulhos e da comilança à beira-mar; e eu, no agradável torpor de incontáveis cervejas desde as onze da manhã, andava feliz até com domingo chuvoso.
De repente, se tanto a trezentos metros de onde estava o carro, não me lembro por qual motivo bateu a vontade de aprontar uma inocente molecagem, incompatível, óbvio, com o que se espera de um pai mentalmente são: tocar a campainha de uma mansão daquelas do condomínio e sair correndo. De longe, assistiria ao morador, que relaxava na pérgula da piscina, vociferar palavrões enquanto não encontrasse quem lhe chamara ao portão.
Nada falei para meus filhos porque também queria surpreendê-los. Apertei a campainha e corri morrendo de rir, a imaginar o susto que tomariam com minha atitude inesperada. No mesmo segundo, teriam que desabar na carreira se não quisessem ser acusados pela insensatez paterna.
No corre-corre, segundos depois topei numa pedra saliente no meio da rua que quase me arrancou a cabeça do dedão, com unha e tudo. Levantei-me às pressas, com o pé esquerdo em petição de miséria, sangrando, e fui como pude até o estacionamento onde o restante da família me recebeu com cara de quem pensou mas não perguntou: “Isso é papel de pai?”
Não precisava. Mais tarde, antes de dormir, ouvia a vinheta sem graça de um antigo programa de tevê a decretar a iminente chegada da segunda-feira e não sabia o que latejava mais: o dedo esfolado ou a ressaca moral após a molecagem, com o agravante de que logo cedo teria que vestir terno, gravata, sapato no pé direito e sandália no outro, por conta da liturgia do cargo.
Na primeira reunião pela manhã, ainda tentei convencer alguns colegas de que o curativo teria sido consequência de uma pelada (baba) com os pés descalços, no sábado. Um deles com falsa cara de espanto — participara comigo da farra e sabia de tudo — até cogitou emprestar um par de chuteiras para os próximos rachas. Na maior cara de pau! Cheguei a ver óleo de peroba escorrendo no riso sórdido do miserável!
Mas tudo acabaria bem. Dias depois a ferida estava cicatrizada e nunca mais se falou nisso. Se não fosse o que aconteceu com o marido de minha amiga, talvez nem lembrasse dessas coisas que perturbam o sono leve da criança que cochila dentro da gente e que, às vezes, basta um caju para despertá-la.
Kkkkkkk. Isso é coisa de pai?
ResponderExcluirHahahahaha. É muita peraltice.
ResponderExcluirEita amigo traquino! Esta não sabia. Kkkk
ResponderExcluirMuito bom. Vez ou outra faz parte alguma traquinagem.
ResponderExcluirSeremos eternas crianças, amigo. Basta um pequeno gesto ou atitude para despertar esse sentimento de pura inocência que dorme dentro de nós!
ResponderExcluirConsegui até projetar mentalmente a cena... kkkkkkkk
ResponderExcluirKkkkkk! Excelente história!
ResponderExcluirQuem topa qualquer parada, para em qualquer topada!!!
Que texto lindo
ResponderExcluirNo dia que o menino traquino morrer dentro de nós é sinônimo que a felicidade se foi. Vamos traquinar gente!
ResponderExcluirKlkkk, nem acredito que vc teve a capacidade de fazer isso !!!
ResponderExcluirKkk, foi o típico caso do "feitiço virar-se contra o feiticeiro".
ResponderExcluirMARMININO!!! O estoque de presepada é grande !!
ResponderExcluirTodos nós, vamos dizer assim, maduros, temos esses pequenos "grandes" momentos. Um forte abraço.
ResponderExcluir"A criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas." E farão parte das melhores lembranças que levaremos da vida, estas peraltices sapecas, de adultos que não se deixaram envelhecer. Afinal, a juventude é uma conquista do tempo da alma. Engana-se que ela se dá aos 20 e poucos anos. Ela ocorre mesmo é na gerontolescência. Adorei um sapato nun pé e um chinelo no outro. Mais uma vez, parei tudo para degustar tuas narrativas, tão cheias de vida.
ResponderExcluirA rigor, de livre e espontânea vontade nenhum de nós quer virar o que chamam de adulto, essa mistura de sonhos, medos e ressentimentos em que as crianças se transformam para o resto da vida. Mas a fila anda, Ricardim.
ExcluirEta, ainda bem que tropeceu, ainda mais chato é chutar aquela pedra escondida em uma caixa de papelão............
ResponderExcluirTempo bão.
Vamos que Vamos!
As traquinagens não cessaram com a idade. Muito bom
ResponderExcluirCada crônica mais interessante. Estou só colecionando na memória para se um dia nos encontrarmos pessoalmente novamente tentarmos rever e rir juntos.
ResponderExcluirQuem diria que um grande homem com tantas responsabilidades na vida teve uma vida de tantas peraltices e continua firme nas suas atitudes de homem! Parabéns! Um abraço.
Em 1977, nos meus 7 para 8 anos, lembro de uma crônica de Chico Anysio que me ficou indelevelmente marca n'alma: "Nascer velho e morrer criança". Em tom de fino humor e em meio a claques, abordava um tema que assombra as existências, a minha em particular. Nunca me esqueci disso e essa tônica permeia minha vida. Em 2008, "O curioso caso de Benjamim Button" trouxe, através da sétima arte, o mesmo assunto da crônica anysiana. Só depois tive a curiosidade de pesquisar que o filme se baseia em um conto de mesmo nome, de 1922, do mesmo criador de "O Grande Gatsby". A impossibilidade das duas "propostas" (a da crônica e a do conto-filme) só revela a grande angústia que é viver, com seus ônus constantes/crescentes e bônus circunstanciais, nestes incluído o tentar acoplar atitudes juvenis a uma alma já di(lapidada) pelo passar dos tempos. E para sanar o mistério da existência, peço vênia ao Chicó para fazer uma pequena alteração em seu famoso bordão, em "O auto da compadecida", que tudo explica: "Num sei, só sei que é assim..." Deliciosa crônica, que me fez buscar reminiscências recônditas, contidas em meu DNA mitocondrial. Obrigado!
ResponderExcluirDiz o ditado que Deus protege bêbado e criança... e isso é verdade. Porém, quando se tenta retornar no tempo, a regra do ditado já passou... mas poderia estar valendo para a primeira hipótese, desde que devidamente configurada. Da próxima vez capriche mais na cerveja...rsrs
ResponderExcluirNaquele dia, Mazine, Ele deve ter prorrogado o expediente. Teve um bêbado agindo como uma criança a dar trabalho. Rsrsrs
Excluirkkkkkk
ExcluirSó acredito porque você está falando. Eu já fiz isso quando menina quando ia para educação física lá em Itambe, pregando esparadrapo na companhia das casas. Mas era menina viu? Kkkk
ResponderExcluirHAYTON,
ResponderExcluirNão tem como não sorri com suas aventuras, e realmente se conclui que a criança que há dentro de você, nunca cresceu; e não tem como não ler suas crônicas, sorrindo e imaginando as cenas, pode crê. Eu resumiria sua bela crônica, na seguinte frase já dita aqui pelos seus amigos: "“Quem topa qualquer parada, para em qualquer topada!!!”kkkk
Um abraço
Lêda Tôrres
Excelente texto!
ResponderExcluirMuito boa, Hayton! A criança nunca envelhece nos caras que vivem! Mas... e teus meninos naquele momento, o que foi maior, o susto ou o riso?
ResponderExcluirtiberio
Dizem que o cão atenta, mas eu acho que não procede. O que ele faz mesmo é incentivar o "espírito de porco" - o único de cuja existência tenho certeza - que tem dentro da gente. E o teu parece ser mais inquieto que os demais.
ResponderExcluirTexto irretocável, como sempre...
Aqui é Volney.
hahaha Tem coisas que a gente faz pensando num final legal, mas que no final só nos faz passar vergonha e dor, como o caso do nobre primo. Lendo e pensando nas cenas ri sozinho da estripulia do pai querendo se igualar aos moleques que costumam fazer isso. Crônica excelente e divertida!
ResponderExcluirEssa sua criança não vai morrer nunca!! Graças a Deus!!kkk
ResponderExcluirFiquei imaginando o tamboque do dedo arrancado! Coisa de menino! Arretado!!
Kkkkkkkk Já não tenho o direito de me surpreender com mais nada!
ResponderExcluirPeraltice de velho - já ando pela casa dos 70, mais perto dos 80 - é pior do que de criança. Há poucos dias avistei no quintal de minha casa do Francês um lindo e pendente caju da vizinha. Como era perto do almoço deu aquela vontade de tomar uma lapada com o delicioso fruto. Era uma boa hora de espalhar o sangue e abrir o apetite. Não tive dúvidas, joguei a escada torta no muro e me estiquei para arrancar o caju, e puft, caí. Sorte que na grama; o futebol dos aposentados da AABB perdeu um craque por cerca de duas semanas ...
ResponderExcluirmas dos males o menor...
Excelente texto, que todos nós, ainda crianças, fazemos parte da narrativa.
Que trapalhada! kkkkkkk Mas como é bom ser criança de vez em quando!
ResponderExcluirÀs vezes, sozinho, me vejo diante de uma reta deserta, então piso fundo no acelerador até topar.
ResponderExcluirDe repente desacelero e respiro, lembrando dos rachas da minha adolescência!
Acho que as cinco multas de trânsito que levei na minha ida pra União dos Palmares para reunião da família Veras, em novembro, tem alguma coisa a ver com isso!!! Meninice perigosa!!!
Epa!! Isso é mais perigoso do que revólver carregado na mão de macaco! Perto de você sou um santo, moço!
ExcluirEnquanto não aparecer um trem na minha frente, tudo bem!!!!
ResponderExcluirMas a viajem não foi perigosa não, o governo que foi astuto por esconder os radares. Não vi nenhum!!!
ResponderExcluirAgora, minha leitura é pouca pra contar os pontos na carteira!
ResponderExcluirera muito capeta...
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