quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Coisa para poucos

Ultimamente, minha maior aflição tem sido a hora de ir para a cama. Mas antes que alguém insinue que isso tem a ver com a proximidade de meus 66 anos, adianto que são as dores lombares as verdadeiras vilãs dessa novela. 


Ilustração: ChatGPT


Quase todo dia, às quatro da madrugada, minhas costas recusam qualquer tipo de colchão, por mais confortável que seja. Só aceitam de bom grado as curvas de uma rede pendurada na varanda, que se torna o refúgio perfeito, numa afronta à lógica e ao senso comum.

 

Costas, aliás, que se fazem de míopes quando saio para a caminhada matinal, diante de tantas criaturas que dormem ao relento na dureza de papelões estendidos em bancos e nas calçadas, vencidas pelas desigualdades que as ruas escancaram, ainda que a brisa morna queira adocicar a cena. 

 

Costas que reconhecem, inclusive, que na lista das melhores coisas para se fazer nessa vida, duas dependem de um bom local para se deitar. A segunda é dormir, esse deleite ainda isento de impostos, tarifas e taxas. É natural, portanto, que as dores lombares mexam com o humor de qualquer um, e não seria diferente comigo. 

 

Há quem sonhe com um príncipe encantado (ou uma princesa) que leve a sua cara-metade no colo para a cama e, depois de tudo, faça uma faxina na casa enquanto ela tira um cochilo. No meu caso, isso é impensável. A minha não perde um minuto de vigília, e eu jamais ousaria despertá-la para tais façanhas. 


Porém, antes que alguém pense bobagens, registro que considerações sobre meu peso estão educadamente dispensadas. Aliás, minhas dores podem estar com os dias contados, pelo que andei lendo sobre uma espécie de “luxo de dormir” chamada Alaskan King Size, que virou sensação nas redes sociais. 


Esse colosso industrial mede 2,74 metros tanto de cumprimento quanto de largura, fazendo as camas king size brasileiras, de apenas 1,98 m x 1,85 m, parecerem brinquedos de bonecas (nem sei se ainda existem).

 

Curioso é que os tamanhos variam ao redor do mundo, e nos Estados Unidos, levam nomes inspirados nos estados de origem – uma Texas King, uma California King e, claro, a gigantesca Alaskan King, batizada em homenagem ao território glacial no extremo norte do Planeta.


Abro aqui um parêntese: tem líder político mundial afirmando que o Alasca é território russo invadido por norte-americanos e que a Rússia tem todo direito à reintegração. É mais uma manobra para tentar reacender o orgulho em baixa de uma nação e, quem sabe, justificar novas ações colonialistas. A indústria bélica mundial esfrega as mãos, mas não perco mais meu sono com isso.   

 

Volto à cama Alaskan King. Virou curiosidade exótica entre os brasileiros. Não faltam comentários divertidos de internautas: um brinca sobre a necessidade de um Uber para cruzá-la na diagonal, outro ironiza sobre a dificuldade de encontrar lençóis, e um terceiro sugere que, pela "extensão territorial", deva ter seu próprio IPTU, martírio que, junto com o IPVA, nos lembram de que não somos donos de nada nem no capitalismo de mercado.

 

Esse “latifúndio” é vendido como item de luxo ou solução para famílias numerosas, podendo custar o equivalente a um rim ou um pedaço de fígado, especialmente se dotados de personalizações e materiais nobres. A marca Purple, por exemplo, estima que uma cama custe mais de 15 mil dólares – pequeno tesouro, convenhamos. Caso de o sujeito perder o sono, com ou sem dores lombares.

 

Mas tem gente que não se encanta com essa vastidão amazônica. Uma usuária, falando sobre suas relações poliamorosas, lamentou que a Alaskan seja grande demais até para o trisal de que participa, ironicamente refletindo uma realidade moderna onde três salários mal cobrem as contas do mês. “Ela é tão grande que para dormir de conchinha são necessárias umas cinco roladas para alcançar o outro lado”, queixou-se. 

 

Toda essa história me remeteu ao primeiro grande salto de qualidade em minha dormida cotidiana: quando troquei uma rede, num quarto sem janela nem ventilador, por uma cama de campanha dobrável, revestida em lona verde, com o bônus de uma espiral da marca Sentinela para espantar muriçocas, apesar do risco de morrer carbonizado. Inesquecível, ainda assim, mesmo porque não havia naquela época o menor sintoma de dores lombares.   

 

E enquanto pesquisava sobre um remédio sem contraindicações para a minha maior aflição ultimamente, dei de cara com a propaganda da Alaskan King Size, que foi ganhando corpo como alternativa tentadora para as minhas madrugadas insones.

 

Acontece que o recente reajuste das aposentadorias do INSS, na casa dos 3,7%, recomenda que devo continuar fiel à minha velha rede, no gozo de uma das duas grandes alegrias da vida que dependem de um lugar aconchegante para se deitar.

 

Pois se existe uma coisa que pode dar uma ideia de céu, de bem-aventurança, de paz entre as criaturas de boa vontade, é acordar de um sono profundo e restaurador sem dor alguma, nem na alma. Coisa para poucos.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Sábios populares

Deus é testemunha de que não sou de ostentar, não quero ser metido, mas sou nordestino, filho de maranhense casado com paraibana (que um dia me levaram, ainda menino, para viver em Alagoas), de quem herdei a pitada cigana que me deu a graça de ainda virar pernambucano e baiano, mais adiante, antes de mergulhar de cabeça no caldeirão cultural brasiliense. 

 

Nessas andanças todas, colecionei alguns achados incomuns – ditos populares, provérbios e outras expressões sábias que nem o Aurélio, o Houaiss ou o Michaelis explicam. Cada um mais original que o outro, anotados ao longo de décadas de ouvido atento.

 

O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação. Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.

 

Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei no fundo da mala de minhas melhores lembranças. Preparem-se, principalmente aqueles que ainda não tiveram a ventura de experimentar do Nordeste (tudo tem seu tempo, não desanimem!). 

 

Lá estava eu, começando a carreira no setor de cadastro de um banco, onde tinha que apurar antecedentes para firmar juízo sobre a idoneidade dos clientes nos fuxicos de uma cidadezinha


Quando alguém até parecia ser boa pessoa, mas tinha fama de vagabundo ou velhaco, por causa de deslizes de maior ou menor gravidade, eu me via obrigado a buscar nos manuais de serviços termos mais polidos para conceituá-los, mesmo convicto de que seria bem mais assertivo se assentasse aquilo que ouvira:

– É cheiro de canto de unha.

– É de dar caganeira em bode.

– É pior que falta-de-fôlego.

– Não dou nele um dedal de mel-coado.

– Não vale a bufa de uma muriçoca.

– O cabra é cano-de-esgoto.

– Pense numa carne-de-cabeça.

 

Um dia, em meio a uma reunião, escutei alguém criticar o comportamento de um novato que “vivia entrando onde não era chamado” (ou “se metendo em conversas acima do seu nível”). Dizia-se que o sujeito era “atravessado que só pau-de-lata d’água”. Meia hora depois, inconformado com a “insistência” do intruso em permanecer no recinto, alguém soltou: “O cara é feio e saliente que só bico de chaleira. Parece o cão chupando manga!”. 

Ilustração: Jessier Quirino

 

Mais tarde, quando visitava comerciantes vinculados a um programa de apoio a pequenas e médias empresas, ouvi de alguns, invejosos dos “segredos” de seus concorrentes, classificarem “adversários” com frases impagáveis:

– Aquele ensina jumento a deitar com a carga.

– Ele vive dizendo que gosta de ouvir a freguesia. Escuta mais que vizinha solteira.

– Esse aí ensinou rato a tirar manteiga da garrafa com o rabo.

– O preço dele até que é bom, mas o bicho é mais grosso que pescoço de carreteiro.

– Taí um que puxa leite em cabra morta!

 

Conheci um zootecnista que demorava uma vida e meia para analisar um projeto de investimento, procurando pôr obstáculos em tudo. Nada lhe dava maior prazer do que emitir parecer contrário à liberação de uma operação de crédito. Um dia, escutei seu chefe, já sem paciência com a demora na análise de um caso, desabafar: “Esse galego é como barata; não come, mas bota gosto ruim em tudo. Vou ter que arranjar ‘Detefon’ (famoso inseticida de uso doméstico)”.

 

Sobre quem passava por dificuldades financeiras (aliás, não sei hoje em dia, mas antigamente “bancário apertado” era pleonasmo), ouvi comentários que traduziam perfeitamente o aperreio:

– Cantando coco sem saber da toada.

– Fazendo cruz na boca.

– Liso que só bochecha de anjo.

– Não tem um couro pra morrer em cima.

– Tá com o beiço no prego.

  

Já próximo da aposentadoria, estive em várias cidades do Norte/Nordeste, negociando convênios de prestação de serviços com entes da administração pública vinculados aos três poderes da República. 

 

Um secretário municipal, que morria de medo do prefeito, foi bastante sincero ao me dizer que não "daria um pio" sobre nada relacionado a sua área sem antes ouvir o "chefe". Justificou-se: “Em tempos de vassouradas, é melhor ficar do lado do cabo” 


E alguns interlocutores desses entes públicos, na ânsia de conhecerem as “novidades” oferecidas a outros estados e municípios, abriam a conversa alertando que com eles a coisa seria diferente: 

– Besta é coco, que dá leite sem ter peito.

– Bobo é sabonete, que se acaba pra limpar os outros.

– Não mamei em carreira de peitos.

– Quem tem filho barbado é camarão. 

– Quem quer mamar que carregue a mãe na garupa.

 

Louvados sejam esses sábios populares, minha gente! O linguajar de qualquer região lateja neles mais claro, curto e reto, do que se pensa. 


Pelo que escutei, dá para imaginar o que ainda existe de pepitas incrustadas por aí. Só os cegos, moucos e mudos não se deram conta disso.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Azar de quem não crê!

Sim, existem histórias tão surreais que parece que são inventadas. Como a de Manezinho, um menino cabeçudo, dentuço, míope, cerca de 12 anos de idade, que apareceu no começo do ano passado, sem documentos, vagando pelas ruas do Pontal da Barra, no entorno da lagoa Mundaú, na capital alagoana.

 

Meses depois, sofreria uma cirurgia para ressecção de um tumor cerebral. E o vidro da porta da sala cirúrgica ficou repleto de curiosos, todos querendo vê-lo falar enquanto era operado. Muitos, inclusive, diante do que ouviam, achavam que o caso se agravava com o correr dos minutos.

 

 “Eu sou minha imaginação e meu lápis – dizia ele em voz alta no leito cirúrgico, ora mirando os médicos, ora a plateia sob espanto –. “Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha... Desaprender oito horas por dia ensina os princípios... Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da estrada. Gosto do desvio...” 

 

Orientado pelo neurocirurgião, o menino matraqueva sem parar durante o procedimento, para garantir que nenhuma área do cérebro fosse afetada. “Tenho um senso apurado de irresponsabilidades… Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras...” – declamava.


A certa altura, lhe perguntaram se recordava de seu local de origem. Ele repetiu o que vinha dizendo desde que apareceu: “Não me lembro. Sei que passava o dia ali quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei... Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular tão pequena que coubesse na ponta de meu lápis. As coisas que não existem são as mais bonitas...” – pontuava.


Ilustração: ChatGPT


Uma primeira convulsão aconteceu em março. "Ele estava dormindo, acordou de repente e se estatelou no chão” – explicava “Tia” Stella, uma artesã simpática que lhe deu casa, carinho e comida –. “Chamei a ambulância e os médicos disseram que poderia ser estresse... Bastava um comprimidinho”.

 

Dois meses mais tarde, veio a segunda convulsão, que também não foi investigada. Em julho, ocorreu a terceira, da qual o menino não lembrava nada do que houve antes. Conversavam em casa, após o almoço. Ele se levantou para pegar café no fogão e acordou no hospital, internado para exames, pois caiu e ficou um tempão desmaiado. Ela o livrou de bater a cabeça no chão. 

 

No hospital, decidiram fazer uma ressonância, que revelou um tumor na região do cérebro que controla a linguagem. “Quando o doutor disse que precisaria ser operado, fiquei preocupada – disse “Tia” Stella – Só procurei saber se afetaria a voz de Manezinho. Daí a ideia do procedimento em que ele pudesse ficar acordado...” 

 

Resolvi checar a história que me contaram e o próprio cirurgião revelou que era impossível não aplaudir o moleque ao final de cada “esquisitice” dita, ainda que incompreensível para alguns. Precisou solicitar que falasse com menos empolgação, pois mesmo com a cabeça fixa, a mesa cirúrgica se mexia com a intensidade da voz. E não parava: “Queria que a minha voz tivesse o formato de canto... Só uso a palavra para compor meus silêncios.” 

 

O médico disse ainda que o menino recebeu anestesia e ficou desacordado apenas na primeira parte do procedimento para a neuronavegação com um computador que auxilia na localização do foco, na incisão e na abertura do crânio. Na sequência, a sedação foi reduzida e ele acordou, passando a responder a perguntas e executar algumas ações, como ler, escrever e falar. 

Descobri que a técnica cirúrgica empregada com o paciente acordado existe há algumas décadas nos grandes centros e objetiva diminuir sequelas neurológicas, comprometimento funcional e agravos dos casos.  


Durante a cirurgia, os pacientes são testados em atividades básicas como responder perguntas ou correlacionar figuras. Em alguns casos, é possível fazer o mapeamento antes da cirurgia, por meio de ressonância magnética, delimitando as regiões do cérebro relacionadas à fala ou às funções motoras, como também as fibras que conectam essas áreas. 

 

No final da cirurgia, “Tia” Stella quis saber se Manezinho sentira medo. Ele balançou a cabeça negativamente e completou: “As folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes... Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora...”

 

Já era madrugada quando ele sumiu como que por encanto da UTI, para perplexidade inclusive de “Tia” Stella. Ela suspirou ao encontrar um pedacinho de papel sobre uma almofada, olhando para a janela, de onde se via, na penumbra, um pé de manga "carregado": “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina... Aonde eu não estou, as palavras me acham.” 

 

Ah, chegou a hora de dizer que esta é uma daquelas histórias inventadas, mas cem por cento verdadeiras. Azar de quem não crê! Eu só duvido de mim mesmo.


Nota: Texto inspirado na obra do poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916 – 2014), autor, dentre outros, de O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e O fazedor de amanhecer (2001).



quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Aonde iremos?

Diz o escritor Ruy Castro que frases feitas são aquelas que entram por um ouvido e saem pelo outro sem um estágio intermediário no cérebro. Mesmo assim, anote aí: tudo evolui na natureza. Tirando, claro, certas figuras que conhecemos. 

Nós, humanos, não somos exceção – ainda que alguns dos nossos hábitos façam pensar o contrário. Depois de milênios, aqui estamos, bem diferentes de nossos tataravós. Não só demos uns pulinhos na árvore genealógica, acompanhando gorilas e chimpanzés, mas também nos empoleiramos, com todo o nosso charme, no topo da cadeia alimentar.

Se nossa memória fosse um pouco melhor, talvez nos lembrássemos daquele dia em que descemos das árvores para dar uma voltinha no chão. Ficamos de pé, esticamos as pernas, encolhemos os braços e, ao longo da jornada (obrigado, fogo, roda e bússola!), nosso cérebro sofreu um upgrade que faria qualquer software de última geração corar de inveja. O resultado? Um salto enorme em aprendizagem e socialização.


Avançamos tanto que começamos a trocar ideias, domesticar animais (e alguns chefes, vizinhos etc.), criar sociedades e, veja só, regras de convivência. Cruzamos oceanos, exploramos o espaço e, vira e mexe, uns aos outros, com uma facilidade impressionante.

Mas, o que o futuro nos reserva? Será que partimos para uma versão 2.0 de nós mesmos? Além da seleção natural, que outras colheres mexem a panela de nosso caldo genético? Uma coisa é certa: assim como escalamos o pico da montanha evolutiva, há sempre o risco de um escorregão. E qualquer vascaíno pode dar uma aula sobre quedas e recomeços.

Comparados aos nossos ancestrais hominídeos, somos mais altos. Uma pesquisa de 2016 da revista eLife mostra isso: os holandeses cresceram em média 19 cm em um século, os asiáticos até 20 cm. E nós, brasileiros? Bem, ganhamos uns 8,6 cm – avanço modesto, porém melhor do que nada! Nem vou falar do crescimento lateral, para não ferir suscetibilidades após as festas de fim de ano.

Esse "viés de alta" parece estar ligado à dieta: mais proteínas, menos miojo. Mesmo enquanto uns se fartam de nutrientes, muitos ainda esperam um pedaço de pão. E ser mais alto tem seus desafios – problemas nas juntas, certos tipos de câncer. Mas os baixinhos também não vão sumir do mapa, porque, afinal, genética é importante, mas não é tudo. Guerras, fome e doenças ainda dão as cartas nesse jogo evolutivo.

As mudanças não param por aí. Estamos ficando mais franzinos e curvados – dizem que vamos acabar nos transformando em emojis devido ao uso excessivo de mensagens eletrônicas e de páginas da web. Você já viu dedos com aparência de tentáculos de polvo por causa da digitação? E a Academia Americana de Oftalmologia avisa: até 2050, metade dos seres humanos pode estar usando óculos graças à obsessão por telas.

Um estudo de 2019 da Universidade de Potsdam, na Alemanha, sugere que a virtualidade excessiva pode nos levar a uma vida sedentária e ao ganho de peso. Nosso esqueleto enfraquece, os cotovelos encurtam. E nossos pés, antes acostumados a andar descalços, agora estão mais longos, fracos e achatados por conta da rotina moderna. E ainda tem quem use sapatos altos, apertados, de pontas estreitas. 

Quanto ao crânio, também entrou na onda das mudanças. Com comidas mais macias, nossas mandíbulas e dentes deram uma encolhida. Isso facilitou a fala, mas nossa mordida anda cada vez mais frágil, se comparada a outros animais com estrutura óssea similar. Exceções para Mike Tyson e Luisito Suárez.

Para não dizer que só falei de horrores, a novidade é que recentemente alguns  cientistas descobriram que um macaco pode reproduzir a fala humana, graças ao seu trato vocal capaz de emitir os mesmos sons que nós. Essa descoberta, publicada na revista Science Advances, pode ser um sinal de que, talvez, os macacos tenham algo a nos ensinar sobre a humanidade. Se não enveredarem para o funk, o pagode ou o sertanejo universitário, tudo bem!

Já se sabia que traços de comportamento humano podem ser encontrados nos símios. Eles escolhem amizades baseadas em afinidades, se revoltam com injustiças e têm consciência da morte. Mas, falar? Opinar sobre a vida alheia ou discutir a relação com a cara-metade? Isso é revolucionário. Daí a assistir reality shows será um pulo.

Através do uso de imagens de raio-X, os pesquisadores 'desenharam' a anatomia vocal do nosso primo distante. Após examinarem as imagens, eles identificaram 99 diferentes possibilidades de expressão vocal, incluindo as cinco vogais. Já pode até arriscar compor uma nova versão do famoso “Prefixo do Verão” (Aê, aê, aê, aê... Ei, ei, ei, ei... Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô) para os adeptos do axé music.

Brincadeiras à parte, com os 'primos' entrando no jogo, quem sabe não encontraremos soluções mais inteligentes e racionais para os grandes flagelos da humanidade – doenças, fome e guerras – e adiamos o fim da aventura humana na Terra.

No fim das contas, mais do que os humanos, são os bichos que mais nos ensinam sobre o que realmente significa ser humano.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Existirmos: a que será que se destina?

Fruto da saudade que sente de um grande amigo, Caetano Veloso há quase meio século questiona o propósito da vida logo no primeiro verso de sua marcante canção "Cajuína".  

Agora, aos 81 anos, anuncia que vai tirar um período de “férias radicais". Uma pausa para descansar, por prazo indeterminado, após uma série de três shows na Bahia que fizeram parte da turnê "Meu Coco". 

Pede a "amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos" que não o incomodem. “...Não me convidem para atividades públicas, participações, conceder entrevistas ou emitir opiniões, gravar vídeos, escrever releases e outros textos ou qualquer outra atividade, sobretudo àqueles que sabem que mais me tocariam com seus chamados…”.

 

Milton Nascimento, também aos 81 anos, tem aproveitado “radicalmente” sua aposentadoria dos palcos para ver televisão, encontrar amigos e viajar. Fez a última turnê da carreira em novembro do ano passado e, desde então, vive noutro ritmo, sendo descrito por seu filho como um aposentado convicto.


Virada de ano é época de reflexão.  

  

Eu ainda não tive o privilégio de chegar aos 81, mas já gozo “férias radicais” há algum tempo, com toda convicção. E neste calorão de chamuscar orelhas às sete da manhã, saio pra caminhada sob o olhar atento de uma coruja-buraqueira e só penso na volta pra casa, no banho refrescante do jeito que Deus me mandou ao mundo, debaixo de um chuveirão próximo da aroeira-salsa do quintal. 

 

Se hoje o que prevalece é o “aqui e agora”, como pregam os céticos quanto à vida eterna, esse calorão anda derretendo sem dó, noite e dia, milhares de almas pecadoras. Tudo indica Deus baixou uma ordem de serviço, em papel timbrado e com firma reconhecida, determinando ao Tinhoso que aplique em vida as penas cabíveis aos merecedores por pensamentos, palavras e obras, aliviando a sobrecarga de trabalho no Juízo Final.

Ilustração: ChatGPT

 

Por mim, trabalho nunca mais! É triste que a única coisa que uma pessoa possa fazer oito horas por dia seja trabalhar. Não consegue comer, muito menos beber ou namorar por oito horas seguidas. Nem mesmo dormir, ainda que de barriga cheia, com as contas em dia e sem muriçocas zumbindo nos ouvidos ou crianças tossindo por perto. 

 

Mas não sou radical. Queria ser pago para dormir. Seria o emprego dos sonhos, porém nunca sequer fui convidado para uma entrevista. Confirma-se que a única coisa que uma pessoa consegue fazer por oito horas é trabalhar. O pior: para alguns, não fazer nada pode ser fatal. O tédio fica só espreitando nas sombras, sabe-se lá com que intenções.

 

Fato é que sempre desconfiei dessa coisa de que cada dia é um presente. Se fosse assim, haveria um balcão em algum lugar onde se poderia devolver segundas-feiras. Era inaceitável, para mim, que toda segunda-feira estivesse tão longe da sexta-feira e sexta-feira tão perto da segunda-feira. 

 

Quem não me conhece pode pensar que fui (ou sou) um irresponsável. Nada disso! Trabalhei por mais de quatro décadas. Portanto, não tenho nada de pessoal contra o trabalho, principalmente quando realizado, silenciosa e discretamente, por meus sucessores. 

 

Pena que só agora, após a aposentadoria, percebo que um sujeito sozinho pode ser um burro completo, mas para se alcançar a plenitude da asnice coletiva, nada supera o trabalho em equipe (o território da terceirização das culpas!). Neste ponto, começo a acreditar em reencarnação porque certos níveis de estupidez não podem ter sido acumulados numa única existência. 

 

Hoje, considero a preguiça uma grande virtude, pois é o único pecado que nos impede de cometer outros. E quando tentam me convencer de que trabalho é saúde, inclusive mental, digo que a vida toda fui solidário para com “amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos” (como classifica Caetano). Logo, se trabalho é saúde, renuncio a parte que me cabe em favor dos carentes de saúde.

 

E quando reencontro antigos colegas de trabalho ainda estressados com prazos de entregas, dou razão a Millôr Fernandes, para quem “o que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que a gente faz por ele.” Ou, como pontuou certa vez, “...quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito”.   

  

Enfim, volto ao ponto de partida. Existirmos: a que será que se destina? Penso que para cometer todos os acertos e desacertos possíveis numa breve janela do tempo, esse “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, como bem lembra Caetano noutra bela canção. Nem tudo relacionado a trabalho, claro!

 

Minha lista particular, no entanto, é tão comprida que, ao chegar aos mesmos 81 anos que ele e Milton, ainda estarei bastante atrasado. Portanto, não devo morrer tão cedo. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Bolachas e marmotas

Todos os anos, pertinho do Natal, eu esperava na estação ferroviária o som do apito e o facho de luz que trariam minha avó materna, a quem chamava de Mãe (diferente de mamãe) porque ela nunca quis o prenome de “vovó”. Ficava por duas ou três semanas no Sertão paraibano, longe do sítio onde vivia, no Brejo, a duas léguas e meia de Itabaiana, onde nasci.

 

Ela chegava com o coração dividido, não entre a esperança e a razão, como na canção Borbulhas de Amor, cuja versão brasileira recebeu letra de Ferreira Gullar e imortalizada na voz de Fagner. Dividida, isto sim, entre matar a saudade da filha e dos netos e deixar para trás seu primo e marido, meu avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada no mundo. 

 

Devia lhe doer também afastar-se do ti-ti-ti (espécie de aboio para galináceos) com que espalhava milho e xerém ao redor da casinha de chão batido. Ainda era tempo de galinhas, pintos e pardais, de verde nos quintais, em que havia frutos num pomar qualquer de se tirar do pé, como Sivuca, seu vizinho de cerca durante a meninice, e Paulinho Tapajós diriam mais adiante noutra bela canção.

 

Ela não podia dar presentes caros aos netos, mas nunca deixou de levar uma sacola de broas escuras e cheirosas, embrulhadas num papel grosso, a que chamava de bolachas de leite. Evitava outros nomes pelos quais se conhecia a iguaria na região: bate-entope, bolacha preta, engasgador, mata-fome, soda ou sorda. 



Imagens: álbum de família 

Os anos sessenta passaram ligeiros. Queiramos ou não, tudo passa. Coisas ruins, devagar. 
 

Do moleque de ontem, buliçoso, chorão e contador de histórias (em que nunca se sabia onde acabava a realidade e começava o sonho), sobrou quase nada, exceto o gosto pelo exagero ao contar o que via ou ouvia, o que levou sua avó, certo dia, a questionar: 

– Repare, minha filha, esse menino é cheio de marmotas! A quem será que puxou? 

– Não sei, Mãe, só sei que ele é assim... – arremedou, sem saber, Chicó, personagem da peça teatral O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

 

Marmota, no caso, não era o mamífero roedor comum na América do Norte, Ásia e Europa, que vive em tocas no subsolo e hiberna durante o inverno. Era uma gíria usada para se referir a alguém atrapalhado, esquisito, presepeiro, dado a artimanhas. Nada a ver comigo, mas quem "desrespeitaria" a opinião dos mais velhos?

 

No Natal de 1976, elegantemente penteada, vestida e cheirando à colônia Contouré, lá estava Mãe na Capela do Bom Pastor, em Maceió/AL. Assistiu da primeira fila ao neto ajoelhado aos pés da Santa Cruz com a namorada, que tentava esconder a barriga com um buquê de flores. Poderia ter dito: “Eu não falei que ele era cheio de marmotas?”. Mas silenciou.

 

Doze anos mais tarde, eu já morava em Brasília/DF, vi meus filhos aos beijos e abraços com minha sogra, a avó deles, ganharem alguns brinquedos eletrônicos. E me dei conta de que a felicidade não era maior do que a minha quando diante das bolachas de leite.

 

Em pouco tempo, chegou a notícia de que Mãe falecera de repente (uma forma antiga de não determinar a causa). Já fora até sepultada. O travo na garganta e duas ou três lágrimas não preencheram o vazio que se instalou dentro de mim. Mas passou. Queiramos ou não, tudo passa. 

  

Outro dia, descobri na Feira de Ceilândia – espaço criado no Distrito Federal, em 1971, para reduzir a ocupação de áreas próximas ao Plano Piloto – que as bolachas que tornaram bem mais doces meus primeiros dezembros ainda são fabricadas artesanalmente no Nordeste e não levam uma gota de leite sequer. São feitas de farinha de trigo, mel de rapadura, manteiga e especiarias (cravo, canela e gengibre). 


Já na primeira mordida, a mesma sensação de quase seis décadas atrás, com um ingrediente adicional: a lembrança do gesto largo com que Mãe, com seu olhar cintilante sob duas respeitáveis sobrancelhas e seu sorriso iluminado, abraçava cada neto na fronteira entre a expressão de um amor incondicional e a fratura de costelas inocentes.

 

Chega um dia em que a nossa lista de desejos para o Natal se reduz a cada ano, até que tudo aquilo que queremos é alcançar o próximo dezembro com as dores e os rancores sob controle, o que não se consegue no shopping nem parcelando no cartão de crédito.

 

É quando nos damos conta de que não existe amor mais despretensioso e puro do que o de uma avó por seus netos. Por isso, Mãe, o meu único desejo agora é bem modesto: que a senhora, de onde estiver, possa ver o quanto uma bolacha de leite ainda é capaz de mexer com o coração de um neto já cheio de netos, e ainda cheio de marmotas.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Certas perguntas

 “Atenção, tripulação, preparar para o pouso!”. Mais uma vez, acordo com este velho anúncio, vindo da cabine de comando do avião que iniciava a manobra de aterrisagem. 

Volta e meia querem saber de mim como alguém que nasceu na Paraíba, foi criado em Alagoas, morou em Pernambuco e na Bahia, gosta tanto de Brasília. 


Digo que não sei. É o tipo de questionamento que pressupõe que as pessoas costumam se sentir mais felizes quando moram perto do mar, com o benefício da umidade e de alguns espaços associados ao prazer e à preguiça. 


Certas perguntas não devem ser feitas! Sobrevoando Brasília, essa miragem de curvas, retas e mistérios debaixo do céu do Cerrado, volto sem gravata, paletó nem sapatos, para fazer o que mais gosto ultimamente: nada, exceto contar histórias, tateando na nebulosa fronteira entre o testemunho e a fantasia.

 

“Meu Deus, mas que cidade linda!”, cantava Renato Russo em sua épica “Faroeste Caboclo”, quando aqui cheguei pela primeira vez, em 1981, para participar por 100 dias de um curso de aperfeiçoamento profissional. 

 

Fotografia: Dedé Dwight

Daqui de cima, revejo a ponte sobre o Lago Paranoá, ligando o Setor de Clubes ao Pontão do Lago Sul, e me vem à memória a figura risonha e robusta de Luiz Arnaud, que morava por perto e com quem convivi nos primeiros dias de trabalho sete anos mais tarde, em 1988.

 

Certa manhã, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo, ele me dizia da preocupação de sua esposa, Valéria:

– Olhe só, Arataca, ela quer saber com quem ando aprendendo este vocabulário de jardineiro – disse, numa óbvia alusão ao palavreado e ao sotaque do novo colega.

– Porra, bicho! Ela não pode ser injusta assim com o coitado do jardineiro, que já ganha uma mixaria e ainda querem que fale como se tivesse nascido com trancelim de ouro! – devolvi, recorrendo à interjeição mais usada pelos nativos das nações de língua portuguesa, a quarta mais falada no mundo. 

 

Ele passava horas contando das descobertas de sua escadinha de filhas: Juju, Bebel e Didi. Falava da casa hipotecada no Lago Sul, onde aos sábados lambia os dedos roliços enquanto preparava a galinhada numa panela de barro. Da loja de vinhos que abrira com um parceiro no ainda despovoado Lago Norte. Do tanto que tudo mudara desde que virou bancário em Conceição do Mato Dentro (MG). 

 

Todo dia, às oito, já folheava os classificados do Correio Braziliense em busca de “achados” (oferta de compra ou venda de veículos, imóveis, linhas telefônicas etc.). E gargalhava lendo anúncios de garotas de programa, que atendiam em quitinetes ou em prédios comerciais com áreas adaptadas ao exercício de uma das mais antigas profissões.

 

Demorou pouco a aprontar comigo, que havia comentado sobre a intenção de adquirir um carro usado. Numa tarde, depois do almoço, ele sumiu por alguns minutos da sala onde trabalhávamos, após colocar furtivamente um bilhete sobre a minha mesa dizendo: “Não quis deixar recado. Pede retorno pelo telefone…”. 

 

Disquei supondo que fosse o dono de um Passat em que eu estava de olho. Tive então que ouvir insultos e ofensas partindo de uma jovem morta de sono que passara a madrugada de terça para quarta-feira trabalhando duro, envolvida de alma e corpo com a inesgotável demanda do submundo parlamentar.

 

Ano e meio depois, retornei para o Nordeste (Porto Calvo, interior de Alagoas). Trocávamos cartas e telefonemas. Não havia e-mails nem videochamadas. Um dia, ele riu quando lhe contei de um rebanho de cabras com chocalhos, salivando, que invadira a sala de visitas de minha casa, atraídas pelos cachos de uvas verdes artificiais que enfeitavam a mesa de centro. 

 

De repente, muda o tom de voz e se queixa:

 – Nem sei por que estou rindo tanto. Se você me encontrar não vai me reconhecer...

– O que houve?!

– Tá difícil... Perdi metade do peso. O Arnaud que você conheceu não existe mais. O tratamento tá acabando comigo.

– Puta que pariu! – gritei, mesmo sem saber ao certo da extensão da doença – Mas você é novo, forte, tem plano de saúde e quatro “meninas” pra cuidar. Vai resistir, sim! 

– Só elas me fazem continuar na briga...

 

A briga não demorou. O nocaute foi inevitável.

 

Quase 10 anos depois, em 2000, voltei a morar em Brasília, mas nunca mais soube do paradeiro de Valéria, Juju, Bebel e Didi. Nem o Google, que surgiria entre nós a partir de 2005, me ajudou.

 

E agora me pego pensativo, revendo Luiz Arnaud a caminho de casa, atravessando aquela ponte sobre o Lago Paranoá. Como teria sido sobreviver por suas "meninas" de lá até aqui? Do que estaríamos rindo agora, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo? 

 

Certas perguntas não devem ser feitas nem a mim mesmo. Nunca sei as respostas.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Novas noites tropicais

Há 20 anos, quando li “Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais”, obra do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta, fiquei só imaginando como teria acontecido um duelo doido, emocionante e técnico, no Festival de Jazz de Montreux, na França, em 1979. Bem depois pude ver as imagens, com a criação da plataforma de vídeos YouTube.

 

A gaúcha Elis Regina era a grande estrela da “Nuit brésilienne”. Ao lado do maestro paulista César Camargo Mariano e de um grupo de músicos, ela montou sua apresentação com grandes sucessos, embora quase nada de cunho político e, apenas por conta da exigência dos organizadores do festival, um pouco de Bossa Nova (a sua voz forte não batia com cantar baixinho e suave do movimento criado pelo baiano João Gilberto).   

 

Hermeto Paschoal, alagoano de Lagoa da Canoa, arranjador e multi-instrumentista reconhecido nos meios jazzísticos até por Miles Davis (um dos mais influentes músicos do século XX), fez a abertura do evento. E arregaçou: foi aplaudido de pé por vários minutos. 

 

Meia hora depois, Elis entrou no palco. Cantou com a categoria de costume, mas sem ousar muito. Para os experts no assunto, o repertório era conhecido, os arranjos discretos, a performance com técnica apurada, mas de emoção contida. Ainda assim, todos ficaram encantados com sua afinação e seu timbre de voz. Muitos aplausos também, menos, é verdade, do que aqueles oferecidos a Hermeto. 

 

Hermeto, aliás, que assistira ao show de Elis na coxia, voltou ao palco, atendendo aos apelos vindos da plateia. Recebido com uma espetacular ovação, sentou-se soberanamente ao piano. Elis sabia que o brilho do “bruxo” fora bem mais intenso. Aparentemente frustrada, ela também retornou, disposta a provar quem de fato era a grande estrela no céu da “Nuit brésilienne”. 

 

“...Silêncio total, piano e voz. Hermeto começa a tocar Corcovado e, quando Elis começa a cantar, suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis – ou para qualquer cantor do mundo – se manter dentro da tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe... E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não ensaiada. Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreira... Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, a cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso... Foram delirantemente aplaudidos...”, assim escreveu Nelson Motta.

 

Quando Hermeto veio de Garota de Ipanema (que a gaúcha não gostava e dizia que jamais a cantaria), Elis acusou a pancada. “Mas logo se recuperou e cantou, com todo vigor, como se fosse a última música de sua vida, improvisou como uma negra americana, virou a música pelo avesso, provocou Hermeto, voou com ele diante da plateia eletrizada...”, garantiu Nelsinho.

 

Com o público em transe, as duas estrelas partiram para a apoteose de Asa Branca, “o baião de Luiz Gonzaga em ambiente free-jazz... harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmo e de andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizadas por dois virtuoses”, concluiu Motta. 

 

Passados 44 anos da “Nuit brésilienne” em Montreux, circula agora um vídeo nas redes sociais, reproduzido por vários sites noticiosos, que está causando furor entre os internautas. Nele, a cantora paulista Linda Mel, criada em Pernambuco, vocalista da banda Top do Brasil, aparece “servindo” cachaça coada na peça mais íntima de seus trajes.
 
Ilustração: Umor

 

Em resumo, a artista chama para perto do palco uma fã que assiste ao show, abaixa a calcinha, filtra e derrama sobre ela a bebida destilada, em meio a uivos e urros do público, cantando a trilha sonora da hora: o hit “Cachaça na Calcinha”.

 

Segundos antes, ansiosa pelo momento em que tomaria o néctar de cheiro e sabor discutíveis, a fã partira com tudo para cima de sua deusa, que pediu moderação: “...Tem que ser com calma! Você quer tirar minha calcinha?”. E a criatura se mostrou ainda mais empolgada, preocupando Linda Mel: “Esta mulher vai me rasgar toda, segurança!”, queixou-se, de maneira não muito convincente, claro.

 

Trecho do fundo musical cita uma certa funkeira que se popularizou por shows com performance nos limites da irresponsabilidade cristã: "Eu e a Pipokinha somos diferenciadas, na hora de fazer amor 'nós gosta de uma lapada'. É uma pancada que nos deixa excitada, bate na nossa bunda. Linda Mel e Pipokinha topa qualquer parada, dá cachaça na calcinha, virote na madrugada...”. 

  

Noves fora o julgamento de cada leitora ou leitor, dinossauros como eu não compreendem bem os meandros dessas novas noites tropicais, suas exultações e seus desvarios. 


A certeza da finitude, no entanto, nos traz o consolo de que seremos poupados de certos asteroides, de algumas cenas grotescas. Mas às vezes não dá tempo. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ô mundão desigual!

Deu nos jornais, semana passada, que o presidente Lula concedeu o mais alto grau da Ordem do Rio Branco à primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja. 

 

Reprodução/Redes Sociais 


A Ordem de Rio Branco foi instituída em 1963, pelo então presidente João Goulart, em homenagem ao Patrono da diplomacia brasileira. A maior condecoração dada pelo Governo Federal é destinada àquelas pessoas que, por benemerência, trabalhos meritórios ou virtudes cívicas, se tornaram merecedoras da honraria.

"Acho que medalhar a esposa é uma forma de Lula mostrar a ela o quanto ela tem valor como parceira dele de todas as horas... Ele não pode confiar em ninguém. É ela quem dá o ombro para ele. Além disso, ela tem capacidade e discernimento intelectual. Eu acho justo esse reconhecimento!", escreveu a gaúcha Gaya Becker no Painel do Leitor da Folha de São Paulo. 

 

Depois de ruminar a notícia na Barbearia do Onofre, uma das mais tradicionais da Asa Norte, em Brasília, enquanto aparava o resto de fios grisalhos de sua avantajada cabeça, meu amigo Chico Caixa d'Água foi de uma sinceridade constrangedora com os amigos presentes no recinto: “Sem querer ser injusto, nem negar minha origem de esquerda, não entendo como um cidadão acorda certo dia e, do nada, resolve conceder uma comenda deste calibre a alguém com quem divide a alcova e a escova matinal”.  

 

Estranhei o tom, mistura de desencanto e indignação, pois o noticiário trouxe também a condecoração de outras mulheres de vulto sob o céu tropical: Lu Alckmin (casada com o vice-presidente), as ministras Anielle Franco (Igualdade Racial), Aparecida Goncalves (Mulheres), Esther Dweck (Gestão e Inovação), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Margareth Menezes (Cultura), Simone Tebet (Planejamento) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas). E não somente elas, também se concedeu a honraria, de forma póstuma, às cantoras Elza Soares, Gal Costa e Rita Lee.

 

Puxei conversa para entender melhor o raciocínio, quando ele me saiu com um inusitado ângulo de observação do fato: a desigualdade de meios para se alcançar o cessar-fogo num conflito conjugal. Coisa de diplomata em tempos de guerra! 

 

Ele foi bem didático, por sinal. Começou dizendo ser natural que todo mundo um dia pise no tomate, vacile perante sua cara-metade. Mas adiantou que não se referia àquela situação em que o sujeito, até de modo pueril, vai a uma cerimônia e compara o vestido de sua mulher com o de outra no local, argumentando que preferia vê-la de forma menos espalhafatosa, mais elegante e sóbria.

 

Nem àquela em que o marido, desligado de nascença, entulha roupa suja no chão do banheiro e deixa toalha molhada em cima da cama. Se bem que, para Caixa d'Água, toda esposa sabe desde o início da relação que a maioria dos homens um dia morou com mãe, tia ou mesmo avó, quando as roupas podiam ser largadas em qualquer lugar da casa até aparecerem cheirosas e bem passadas na gaveta do armário.

 

Disse ainda que não falava do companheiro que, ao menor espirro ou filete de coriza, transforma uma virose numa tragédia sem precedentes na evolução humana sobre a Terra, por conta, de novo, da mãe (tia ou avó) que, só de ouvir um gemido, seguido de uma expressão facial de quem estaria prestes a se acabar, cobria de mimos a criatura fragilizada, em vias da extrema unção.

 

Foi além. Também não se referia àquele camarada que, sem noção do quanto viver segue perigoso demais, esquece que circula de mãos dadas com a namorada (ou a esposa) e não consegue segurar o giro do pescoço – por si, um movimento antinatural para cabeçudo como o meu amigo, o que já caracteriza a infração – quando se vê diante de um decote generoso ou de um short estilo embalagem a vácuo, ainda que a cobiçada não lhe tenha reservado nem um olhar de desdém.

 

Na verdade – garantiu, como faz todo mundo que abre um comentário negando o que antes fora dito por outras pessoas –, ele se refere a casos mais complexos, com reflexos nas semanas e até nos meses seguintes. Como o da madame que, após relutar meses diante do espelho, decide cortar cinco dedos das madeixas e o maridão (que já não se senta frente-a-frente com ela nem no jantar, poupando-se do constrangimento do olhos nos olhos) nada percebe. 

 

Pronto! O caminho até o portal do inferno está pavimentado, desde ouvir mágoas requentadas ou novas, até virar alvo da desconfiança de que existe um possível rabo de saia na área, com iminente disputa territorial à vista.

 

“Vai por mim, é nessas horas que o homem perde a paciência e, buscando apaziguar a encrenca, acaba fazendo um sacrifício sobrenatural para provar à mulher que ela está sendo injusta, maldosa, precipitada!” – disse Caixa d'Água.

 

E confessou que foi assim que ele se viu obrigado, numa manhã dessas, a levar a “patroa” a uma liquidação de rodos e vassouras na feira do Paranoá, com a gasolina, o calor e a secura pela hora da morte!

 

Na impossibilidade de conceder uma comenda à companheira com quem divide a alcova e a escova matinal, não lhe restou alternativa. “Ô mundão desigual!” – protestou.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Duro na queda

Outro dia procurei um otorrino para remover o excesso de cera nos ouvidos, além de avaliar a progressão de uma leve deficiência auditiva que, a rigor, considero até conveniente, pois me poupa de ouvir aquilo que não me interessa.

 

Duvidei quando uma educada atendente, na recepção do ambulatório médico, me pediu a carteirinha do plano de saúde e o braço para colocar uma pulseira rosa (nada contra a cor!), com a curiosa ressalva de que faria parte do protocolo interno: indica que o paciente tem risco de queda.

 

Ilustração: Umor 

Quase sofro uma queda, sim, mas de tanto rir. Achei que estava diante de uma daquelas brincalhonas que adoram as bobagens, postagens e tatuagens de Gabigol e outros dândis. Pensei: talvez ela viu meu prontuário e imagina que as linhas tortuosas dos últimos eletrocardiogramas estão associadas ao sobe-e-desce do Vasco. 

 

Sobre futebol, aliás, há pouco mais de uma década, escutei por acaso (com estas fábricas de cerúmen que seguram meus óculos) uma conversa na fila de embarque do Aeroporto JK, em Brasília/DF, envolvendo dois atletas vascaínos por quem nutria grande admiração desde a vitoriosa campanha da Copa do Brasil 2011: o atacante Éder Luís e o lateral direito Fagner. 

 

Em três minutos, a enxurrada de tolices que entrou pelos meus ouvidos poderia ter acabado com a incerteza que persiste em mim sobre se faz sentido continuar sofrendo ou vibrando com o chamado esporte bretão. A coisa é mais grave do que imagino.

 

Mas isso é assunto para outro momento. Eu não deveria cobrar deles a capacidade de desenvolver pensamentos e ideias com a linguagem falada, ainda que, se assim agissem, os dois teriam uma boa chance de contar suas experiências com clareza e algum grau de complexidade. Devo admitir, no entanto, que o mais importante era que continuassem formando uma boa dupla pelo lado direito do Vasco.

 

Não poderia também esperar que os jovens atletas refletissem sobre a própria existência, trocando perguntas do tipo: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Seria bom refletirem sobre os objetivos pelos quais faziam o que faziam. Seria ótimo terem consciência de que jogar (ou torcer) por um clube com a grandeza do Vasco é olhar para os outros e dizer a si mesmo: “sim, eu sou melhor que ele!”.  

 

Mas volto à recepção do ambulatório médico. Não vejo motivo, pelo menos por enquanto, para que uma moça tão simpática olhe para mim e tema uma queda relacionada, por exemplo, a piso escorregadio, atrapalhar-se com sapatos e gatos pelo chão, trombar noutras pessoas, subir e descer escadas ou simplesmente cair da cama sem uma explicação etílica ou sexual (nunca se sabe, não é?). 

 

Não posso aceitar que alguém que me vê pela primeira vez, desconhecendo as minhas queixas da hora e sem prévia consulta a um repositório de informações a meu respeito, possa deduzir que estou velho, escorado em meia dúzia de muletas químicas que me ajudam desde o controle da pressão arterial até o tratamento da próstata aumentada e seus reflexos sobre uma bexiga preguiçosa, com vontade própria. 

 

Deus me poupe de ficar velho e rabugento como certas pessoas que conheço, mas, pensando bem, desconfio de que isso um dia será inevitável. Volta e meia já ouço uns e outros me chamarem de “senhor” e isso não ocorria com tanta frequência, nem mesmo vindo de filhos, noras, genro e netos. 

 

Agora, se vou ao supermercado, até o fiscal de prevenção de perdas (eufemismo infame para designar o dedo-duro responsável pela escolha aleatória dos torturáveis acusados de furto famélico), querendo ser gentil, me encaminha ao caixa de atendimento exclusivo a idosos onde existe uma placa com um desenho estilizado de um velho corcunda com uma das mãos no quadril e a outra numa bengala (quem foi o “gênio” que criou aquilo?).

 

Logo eu, que já fui comparado por minha mãe a ninguém menos que Antonio Fagundes – reconheço, toda mãe é um tanto cega, muda e surda, mas, claro, fala apenas a verdade. Só que, hoje, obrigado a dormir com uma máscara nasal para encarar a apneia do sono e o ronco, além de um protetor bucal para evitar que o bruxismo destrua o que me resta de dentes, entendo quando minha mulher, no meio da madrugada, se assusta ao acordar do lado de Darth Vader, o vilão da saga Star Wars.

 

Sei não. Há possibilidade de que, em breve, minhas fotos estampem catálogos de fornecedores de medicamentos e utensílios voltados para a saúde em geral. 


Fazer o quê? Da próxima vez que me pedirem o braço para colocar uma pulseira me identificando como paciente sob risco de queda, ficarei calado. Não posso sair por aí distribuindo a torto e a direito bengaladas verbais. 

 

Se a queda for inevitável, vou relaxar e aproveitar, como ensinava uma vetusta sexóloga. Tem sido assim desde que deixei de engatinhar e aprendi a andar, cair e me levantar.