Ô mundão desigual!
Deu nos jornais, semana passada, que o presidente Lula concedeu o mais alto grau da Ordem do Rio Branco à primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja.
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A Ordem de Rio Branco foi instituída em 1963, pelo então presidente João Goulart, em homenagem ao Patrono da diplomacia brasileira. A maior condecoração dada pelo Governo Federal é destinada àquelas pessoas que, por benemerência, trabalhos meritórios ou virtudes cívicas, se tornaram merecedoras da honraria.
Depois de ruminar a notícia na Barbearia do Onofre, uma das mais tradicionais da Asa Norte, em Brasília, enquanto aparava o resto de fios grisalhos de sua avantajada cabeça, meu amigo Chico Caixa d'Água foi de uma sinceridade constrangedora com os amigos presentes no recinto: “Sem querer ser injusto, nem negar minha origem de esquerda, não entendo como um cidadão acorda certo dia e, do nada, resolve conceder uma comenda deste calibre a alguém com quem divide a alcova e a escova matinal”.
Estranhei o tom, mistura de desencanto e indignação, pois o noticiário trouxe também a condecoração de outras mulheres de vulto sob o céu tropical: Lu Alckmin (casada com o vice-presidente), as ministras Anielle Franco (Igualdade Racial), Aparecida Goncalves (Mulheres), Esther Dweck (Gestão e Inovação), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Margareth Menezes (Cultura), Simone Tebet (Planejamento) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas). E não somente elas, também se concedeu a honraria, de forma póstuma, às cantoras Elza Soares, Gal Costa e Rita Lee.
Puxei conversa para entender melhor o raciocínio, quando ele me saiu com um inusitado ângulo de observação do fato: a desigualdade de meios para se alcançar o cessar-fogo num conflito conjugal. Coisa de diplomata em tempos de guerra!
Ele foi bem didático, por sinal. Começou dizendo ser natural que todo mundo um dia pise no tomate, vacile perante sua cara-metade. Mas adiantou que não se referia àquela situação em que o sujeito, até de modo pueril, vai a uma cerimônia e compara o vestido de sua mulher com o de outra no local, argumentando que preferia vê-la de forma menos espalhafatosa, mais elegante e sóbria.
Nem àquela em que o marido, desligado de nascença, entulha roupa suja no chão do banheiro e deixa toalha molhada em cima da cama. Se bem que, para Caixa d'Água, toda esposa sabe desde o início da relação que a maioria dos homens um dia morou com mãe, tia ou mesmo avó, quando as roupas podiam ser largadas em qualquer lugar da casa até aparecerem cheirosas e bem passadas na gaveta do armário.
Disse ainda que não falava do companheiro que, ao menor espirro ou filete de coriza, transforma uma virose numa tragédia sem precedentes na evolução humana sobre a Terra, por conta, de novo, da mãe (tia ou avó) que, só de ouvir um gemido, seguido de uma expressão facial de quem estaria prestes a se acabar, cobria de mimos a criatura fragilizada, em vias da extrema unção.
Foi além. Também não se referia àquele camarada que, sem noção do quanto viver segue perigoso demais, esquece que circula de mãos dadas com a namorada (ou a esposa) e não consegue segurar o giro do pescoço – por si, um movimento antinatural para cabeçudo como o meu amigo, o que já caracteriza a infração – quando se vê diante de um decote generoso ou de um short estilo embalagem a vácuo, ainda que a cobiçada não lhe tenha reservado nem um olhar de desdém.
Na verdade – garantiu, como faz todo mundo que abre um comentário negando o que antes fora dito por outras pessoas –, ele se refere a casos mais complexos, com reflexos nas semanas e até nos meses seguintes. Como o da madame que, após relutar meses diante do espelho, decide cortar cinco dedos das madeixas e o maridão (que já não se senta frente-a-frente com ela nem no jantar, poupando-se do constrangimento do olhos nos olhos) nada percebe.
Pronto! O caminho até o portal do inferno está pavimentado, desde ouvir mágoas requentadas ou novas, até virar alvo da desconfiança de que existe um possível rabo de saia na área, com iminente disputa territorial à vista.
“Vai por mim, é nessas horas que o homem perde a paciência e, buscando apaziguar a encrenca, acaba fazendo um sacrifício sobrenatural para provar à mulher que ela está sendo injusta, maldosa, precipitada!” – disse Caixa d'Água.
E confessou que foi assim que ele se viu obrigado, numa manhã dessas, a levar a “patroa” a uma liquidação de rodos e vassouras na feira do Paranoá, com a gasolina, o calor e a secura pela hora da morte!
Na impossibilidade de conceder uma comenda à companheira com quem divide a alcova e a escova matinal, não lhe restou alternativa. “Ô mundão desigual!” – protestou.
Nas entrelinhas do texto vejo ratificada a tese de que nas listas de filmes indicados ao Oscar, de convocados para seleção brasileira de futebol e personalidades para receberem comendas sempre falta ou sobra alguém. Viva a liberdade de escolha, inclusive para ler às quartas um conteúdo digno de ser lido.
ResponderExcluirPois é. Bom senso continua sendo a menor distância entre o que os outros fazem e aquilo que a gente faria.
ExcluirTriste de um povo quem não tem a percepção sequer de quem seria merecedor de reconhecimento por relevantes serviços prestado à nação. Os serviços da Janja são pessoais , não em prol do povo. Talvez a intenção tenha sido a de diminuir o mérito dos que já receberam a medalha, para mostrar que não é honraria nenhuma, o que a esquerda gosta de fazer.
ResponderExcluirSerá que os grandes Anderson Torres e Olavo de Carvalho tinham algum mérito quando receberam suas condecorações?
ExcluirSão todas mulheres que, de uma forma ou de outra, contribuíram para este país ser melhor. Uma esposa participa (e muito) da construção do sucesso do presidente e do vice. Gal e Rita ajudaram a desenhar nossa cultura. Parece-me muito mais exagerada a concessão à uma que nada fez além de ser irmã da outra e nomear cirandeiras para sua assessoria. Talvez o mais absurdo seja a própria comenda, tão inútil quanto tosca. Chico caixa dágua é muito é barriga branca. Dedé Dwight
ResponderExcluirReleve Caixa d’Agua. Perceba que ele nem cogitou a possibilidade da eventual permuta da comenda por alguns afagos, inclusive no ego. Tudo é possível…
ExcluirTempos difíceis, onde até a palavra honra perdeu sentido. Antes, honraria era sinal de mérito incontestável por todos; hoje, compensações entre companheiros. Bosco Torres
ResponderExcluirAchei uma falta monumental o Lula, com a sua sensibilidade, não dá essa comenda aquela senhora conhecida como a Dama do Tráfico, nessa pegada, poderia também fazer uma reparação histórica e incluir todas as mulheres que lêem a Carta Capital. Ticiano Félix.
ResponderExcluirO texto, como sempre, ótimo!!! Os critérios altamente subjetivos da tal “comenda” , como quase sempre, questionáveis …. Bel
ResponderExcluirDifícil avaliar sob que "pressão" o Presidente concedeu as honrarias... Mas, o que ressalto, é a construção primorosa do texto que nos faz "entrar" no cenário e tirar conclusões... PARABÉNS!
ResponderExcluirConsideradas as figuras homenageadas, penso q o patrono da diplomacia brasileira tá se revirando, e muito, no túmulo.
ResponderExcluirNão se pode exigir inteligência de quem não tem. De repente, a coisa mais importante que ele consegue ver é a Janja... e não é só a comenda, haja dinheiro para os passeios. Só assim pra segurar?
ResponderExcluirHonraria? Salvou alguém da morte? Teve reconhecida alguma ação? Alguma pesquisa?
ResponderExcluirPor isso não temos nenhum Premio Nobel. Não utilizamos os instrumentos de reconhecimento civico adequadamente. Faz se um evento para agradar apoiadores. A politica faz muito mal à nossa sociedade ao não reconhecer valores humanos independente de suas posições ideologias.
Excelente exercício para nossa reflexão Hayton! Pobre Brasil, coitado do Barão do Rio Branco e também de Chico Caixa d’água…
ResponderExcluirImaginávamos que, após alguns anos de escuridão, teríamos uma luz no fim do túnel. Medidas, iniciativas e ações urgentes em prol da melhoria das condições de vida do povo brasileiro…Ainda aguardamos ansiosamente. Tão ridículo quanto conceder honrarias a quem não merece são os malabarismos verbais e linguísticos daqueles que tentam justificar o injustificável. Defender o indefensável em pleno nepotismo medalhístico. Pobre Brasil. De Rio Branco a Chico da Caixa d’água ninguém foi poupado…
Beto Barretto
Hayton, só mesmo suas ricas colocações pagam a quarta feira nossa de cada dia. Suas crônicas nos fazem refletir sobre as coisas da vida, os muitos temas, que de repente nos faz parar e pensar. Um abraço e até quarta feira de novo.
ResponderExcluirDesse desgoverno que aí está, nada me surpreende. Até quando?
ResponderExcluirE bota desigual nisso. Comungo com o autor da estranheza ao fato da concessão da honraria à primeira dama. Para mim uma pouca vergonha, carregada de desfaçatez e escárnio com a coisa pública. Nossa "escola" BB nunca nos permitiria tamanho acinte. Mais uma vez, com a leveza que lhe é peculiar à escrita, Hayton nos permite uma reflexão. Caixa D'água sim, sujeito sábio e reto.
ResponderExcluirRoberto Rodrigues
Terreno delicado o tema abordado no texto de hoje. Certamente o autor da homenagem não tinha a noção do valor a que se destinava a referida homenagem. Ou então se encontrava num dia em que mais se identificava com a eventual semelhança com a maior autoridade mundial no gênero. Uma pena porque é a grande demonstração de falta de qualificação para o desempenho do cargo para o qual foi eleito.
ResponderExcluirParabéns para o autor do texto do dia, que esgrimiu sobre um terreno de areia movediça e conseguiu dar o seu recado sem ofender ninguém.
Parabéns e até a próxima semana, certamente com mais um desafio.
Excelente reflexão. Sem entrar no mérito gostei da homenagem, do marido para a esposa. Pior já vimos: homenagens para milicianos.
ResponderExcluirA frase "o Brasil não é um país sério", atribuída erroneamente a Charles de Gaulle, vem bem a calhar no caso.
ResponderExcluirMarina.
Como é bem do perfil do cronista, mais um escrito que permite abordagens e opiniões as mais variadas. A mim, esta leitura me fez refletir sobre o que resolvi chamar de “desperdícios do beija-mão” aqui no Brasil. Desde a época da monarquia, essa prática acontece (naqueles tempos, por óbvios motivos) mas já com as consequências de desperdício de tempo de todos os envolvidos: a realeza, os nobres, os interesseiros. Com a República, o “beija-mão” sobrevive e até hoje mais forte que nunca. É cerimônia que não se acaba no setor público do País, nas três esferas dos três poderes: é beija-mão de prefeito, de governador, de presidente no Executivo; é “beija-mão” no Legislativo; no Judiciário então… Quanto custa ao nosso País esse desperdício de tempo com tantas cerimônias improdutivas? Trabalhei alguns anos com o setor público. Em algumas cerimônias ou reuniões o tempo de espera chegava a duas, três horas de atraso. Quem pagava aquela conta? Voltando dessa minha divagação, essa honraria a que Hayton se refere hoje, insere-se em mais uma cerimônia inútil de “beija-mão” de nosso pobre Brasil.
ResponderExcluirAssim fica difícil, viu Hayton.
ResponderExcluirQuando a gente pensa que já viu de tudo, aparecem coisas como essa.
“O poste tá mijando no cachorro.”
Obrigado por nos brindar com mais esse belo texto.
Abraço.