Sábios populares
Deus é testemunha de que não sou de ostentar, não quero ser metido, mas sou nordestino, filho de maranhense casado com paraibana (que um dia me levaram, ainda menino, para viver em Alagoas), de quem herdei a pitada cigana que me deu a graça de ainda virar pernambucano e baiano, mais adiante, antes de mergulhar de cabeça no caldeirão cultural brasiliense.
Nessas andanças todas, colecionei alguns achados incomuns – ditos populares, provérbios e outras expressões sábias que nem o Aurélio, o Houaiss ou o Michaelis explicam. Cada um mais original que o outro, anotados ao longo de décadas de ouvido atento.
O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação. Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.
Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei no fundo da mala de minhas melhores lembranças. Preparem-se, principalmente aqueles que ainda não tiveram a ventura de experimentar do Nordeste (tudo tem seu tempo, não desanimem!).
Lá estava eu, começando a carreira no setor de cadastro de um banco, onde tinha que apurar antecedentes para firmar juízo sobre a idoneidade dos clientes nos fuxicos de uma cidadezinha.
Quando alguém até parecia ser boa pessoa, mas tinha fama de vagabundo ou velhaco, por causa de deslizes de maior ou menor gravidade, eu me via obrigado a buscar nos manuais de serviços termos mais polidos para conceituá-los, mesmo convicto de que seria bem mais assertivo se assentasse aquilo que ouvira:
– É cheiro de canto de unha.
– É de dar caganeira em bode.
– É pior que falta-de-fôlego.
– Não dou nele um dedal de mel-coado.
– Não vale a bufa de uma muriçoca.
– O cabra é cano-de-esgoto.
– Pense numa carne-de-cabeça.
Um dia, em meio a uma reunião, escutei alguém criticar o comportamento de um novato que “vivia entrando onde não era chamado” (ou “se metendo em conversas acima do seu nível”). Dizia-se que o sujeito era “atravessado que só pau-de-lata d’água”. Meia hora depois, inconformado com a “insistência” do intruso em permanecer no recinto, alguém soltou: “O cara é feio e saliente que só bico de chaleira. Parece o cão chupando manga!”.
Ilustração: Jessier Quirino |
Mais tarde, quando visitava comerciantes vinculados a um programa de apoio a pequenas e médias empresas, ouvi de alguns, invejosos dos “segredos” de seus concorrentes, classificarem “adversários” com frases impagáveis:
– Aquele ensina jumento a deitar com a carga.
– Ele vive dizendo que gosta de ouvir a freguesia. Escuta mais que vizinha solteira.
– Esse aí ensinou rato a tirar manteiga da garrafa com o rabo.
– O preço dele até que é bom, mas o bicho é mais grosso que pescoço de carreteiro.
– Taí um que puxa leite em cabra morta!
Conheci um zootecnista que demorava uma vida e meia para analisar um projeto de investimento, procurando pôr obstáculos em tudo. Nada lhe dava maior prazer do que emitir parecer contrário à liberação de uma operação de crédito. Um dia, escutei seu chefe, já sem paciência com a demora na análise de um caso, desabafar: “Esse galego é como barata; não come, mas bota gosto ruim em tudo. Vou ter que arranjar ‘Detefon’ (famoso inseticida de uso doméstico)”.
Sobre quem passava por dificuldades financeiras (aliás, não sei hoje em dia, mas antigamente “bancário apertado” era pleonasmo), ouvi comentários que traduziam perfeitamente o aperreio:
– Cantando coco sem saber da toada.
– Fazendo cruz na boca.
– Liso que só bochecha de anjo.
– Não tem um couro pra morrer em cima.
– Tá com o beiço no prego.
Já próximo da aposentadoria, estive em várias cidades do Norte/Nordeste, negociando convênios de prestação de serviços com entes da administração pública vinculados aos três poderes da República.
Um secretário municipal, que morria de medo do prefeito, foi bastante sincero ao me dizer que não "daria um pio" sobre nada relacionado a sua área sem antes ouvir o "chefe". Justificou-se: “Em tempos de vassouradas, é melhor ficar do lado do cabo”
E alguns interlocutores desses entes públicos, na ânsia de conhecerem as “novidades” oferecidas a outros estados e municípios, abriam a conversa alertando que com eles a coisa seria diferente:
– Besta é coco, que dá leite sem ter peito.
– Bobo é sabonete, que se acaba pra limpar os outros.
– Não mamei em carreira de peitos.
– Quem tem filho barbado é camarão.
– Quem quer mamar que carregue a mãe na garupa.
Louvados sejam esses sábios populares, minha gente! O linguajar de qualquer região lateja neles mais claro, curto e reto, do que se pensa.
Pelo que escutei, dá para imaginar o que ainda existe de pepitas incrustadas por aí. Só os cegos, moucos e mudos não se deram conta disso.
Os antigos garimpeiros da Chapada da Diamantina estão se virando nas covas com inveja das pepitas garimpadas neste texto. Uma maravilha.
ResponderExcluirVocê teve “a pachorra” (como diria meu pai) de colecionar essas formas de se expressar do nordestino em seus diversos estados e Estados. Já vi coleção de carros, de selos, de chaveiros e muitas outras, mas a sua é inédita. O Nordeste é uma nação dentro do Brasil. Nelza Martins
ResponderExcluirÉ isto aí Hayton, parabénseli texto. Sou mineiro, com frevo, forró e maracatu nas veias e já me considero um pernambucano arretado.
ResponderExcluirComo passei uns tempos no Amazonas, deixo meu comentário em amazonês, que teve influência dos povos indígenas, portugueses e nordestinos:
Estava eu de "bubuia" quando recebi este texto e achei "chibata no balde". No meio da leitura deparei-me com um "carapanã" para "cortar a curica", mas no final vi que o texto foi pura magia com nossa rica linguagem.
Abraço fraterno.
Oceano
A ideia é exatamente esta, meu caro Oceano: que leitores de outras regiões possam incorporar em seus comentários no blog outros “achados linguísticos” de suas respectivas áreas.
ExcluirA gente que é nordestino nem diz muito que é do Nordeste pra não diminuir os outros, mas a Paremiologia Nordestina chega a ser um ramo da Literatura, de onde saiu um belo livro que lhe dei e ao não vê-lo citado aqui fiquei atravessado que só cu de calango, mas não vou dizer nada porque se reclamar resolvesse, porco não morria. Dedé Dwight
ResponderExcluirÉ nisso que dá viver em duas cidades ao mesmo tempo: Maceió e Brasília, onde o livro que você me deu tem lugar cativo na estante, assim como os frascos para guarda de azeite, pimenta e vinagre no parapeito da cozinha, presenteados nos meus 50 anos. Bota tempo nisso!
ExcluirÉéégua!
Excluir"Eita trem bão danado"! Sua crônica mostra "quem é tu na fila do pão". E olha que "Tem muito amendoim por aí se sentindo paçoca"
ResponderExcluirResgatou uma parte da riqueza da nossa língua , parabéns . Fiquei feliz como pinto no lixo ao ler esta belíssima crônica ! Parabéns !
ResponderExcluir"Não tem no c* o que o periquito roa", pra definir quem ostenta sem ter condição econômico-financeira compatível. Você deve ter ouvido essa, mas não teve "coragem" de citar.
ResponderExcluirMais uma crônica "arretada" das quartas, pra ser "buliçosa" com nosso acordar de meio de semana, produzindo "zuada" em nossos pensamentos e fazendo-nos rir como se estivéssemos "mangando" de um "pareia". E pra não dizer que sou pernambucano intransigente, falando somente no linguajar do meu Estado, findo dizendo que o texto de hoje foi "bão demais, sô!!!"
ResponderExcluirQue coleção você conseguiu garimpar, hein, Hayton? Não conhecia nenhum desses seus "ditos" apresentados nessa crônica!! Parabéns. A cada dia, você se supera. Obrigada pela deliciosa e divertida leitura.
ResponderExcluirClaro que escolhi a dedo os mais incomuns para compartilhar com meus leitores, Belaniza. Por isso você desconhecia. Mas o universo, bem sabemos, é de uma amplitude inimaginável.
ExcluirCom certeza há muitas outras pérolas, que se viram impedidas de vir à luz dada à exiguidade de espaço. E todas são hilárias em sua beleza e pertinência. Fala e vontade do povo. Excelente.
ResponderExcluirExcelente! Me recordo de tem quem “come angú e arrota perú” e que “cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça “. Abração, Hayton.
ResponderExcluirGradim.
Se somos pura linguagem, como querem os linguistas, nossa diversidade cultural se traduz pela via dos maravilhosos jargões que eu tanto admiro, gosto tanto disso que me delicio sempre que vou a Bahia. Meus amigos bahianos e sua linguagem imperativa com seus " me diga aí" "venha cá" ou suas expressões. Na Bahia vc n vai numa situação complicada porque é barril, vc n pressiona alguém, dizem " não aperte minha mente". Ou o conhecido "lá ele". Eu morro de tanto rir. Você tem que dedicar uma crônica só ao Bahianes Hayton, pois se bem me lembro vc andou por lá.
ResponderExcluirQue delícia de texto, Hayton.
ResponderExcluirAlém de morrer de rir, fiquei impressionado com tanta criatividade.
Dá para fazer um dicionário com esses termos... kkkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirAdorei
ResponderExcluirFico aqui só esperando o próximo artigo,
E me perguntando, qual será o assunto?
Ótimo resgate de expressões que são pouco conhecidas fora do nordeste, onde também morei por um ano (em Boquim-SE), onde ouvia demais “fio de um cabrunco”.
ResponderExcluirVou tentar contribuir com os leitores do Hayton com alguns ditados que ouvia na adolescência no Rio Grande do Sul:
“Frio de renguear cusco.”
“Se faz de leitão pra mamar deitado.”
“Bobagem é espirrar na farofa.”
“Mais ligado que rádio de preso.”
“Mais assustado que véia em canoa.”
“Mais por fora que surdo em bingo.”
“Mais sofrido que joelho de freira em semana Santa.”
“Devagarzito como enterro de viúva rica.”
“Mais faceiro que mosca em tampa de xarope.”
“Tranquilo que nem cozinheiro de hospício.”
Genial! Daqui a pouco aparecem por aqui um mineiro e um paulista do Interior e despejam na mesa mais algumas pérolas e a gente se dará conta de novo da grandeza linguística deste Brasilzão de todos nós…
ExcluirVou me fazer de morto só para ganhar sapato novo.
ExcluirQuem não pode com o pote não segura na rodilha
ResponderExcluirMais perdido que pitomba na boca de banguela
Mais por fora do que umbigo de Vedete
Mais folgado do que gola de palhaço
Mais seco do que língua de papagaio
Com mais fome do que cobra de curandeiro
Gostei desse "moído", como dizem aqui na Paraíba. Marina
ResponderExcluirAh, essa crônica de hoje está mais deliciosa do que um rubacão bem servido. Showwwww
ResponderExcluirMuito bom resgate de ditos que só quem viveu no "sítio" ouviu muito. Ainda hoje tenho uma tia que não cansa de repetir o "parece o cão chupando manga e não tem um pau para dar num gato". E aconselhando: "deixa para lá, não vou gastar vela com defunto ruim".
ResponderExcluirSão tantas as expressões que é necessário ter um dicionário de bolso o tempo todo...
ResponderExcluirCerta ocasião fui vistoriar uma propriedade rural, no meu tempo de "fiscal da carteira agrícola", quando o fazendeiro, chateado com outro fiscal que o visitara anteriormente, asseverou que ainda faria aquele fiscalzinho "capinar sentado" ao tempo em que ficava alisando a cintura... Depois desse recado, o jeito foi apressar o trabalho e dar o fora...
Hahahahahaha
ResponderExcluirEssa sabedoria popular, no modo de “dar nome” às coisas, é uma deliciosa manifestação de nossa cultura.
Uma “coleção” impagável, de fato.
O texto de hoje superou todos os outros. Conseguir uma coletânea dessa é muito difícil. E com a publicação, a coisa melhorou bastante, porque surgiram muitos colaboradores no gênero. Parabéns pela feliz iniciativa. O reservatório vai ser amplamente beneficiado. Siga em frente! Grande abraço.
ResponderExcluirAla putcha, tchê! Mas que barbaridade, guri. Bah! Loco de bueno este teu texto. É coisa muito guapa. E aqui está minha contribuição, com expressões do linguajar gauchesco:
ResponderExcluir- "Não tá morto quem peleia";
- "Entretido ("entertido") que nem piá comendo butiá";
- "Muito arisco e espantadiço, como se fora bagual"
- "Foi-se a lá cria"
- "Eta potrilho xucro, renegado e caborteiro" (de Odilon Ramos, em PAI NOSSO GAÚCHO). Um quebra costela bem apertado!
Na época que atuei como educador na Gepes, ministrava o curso de Excelência Negocial, que recebia os colegas que estavam tomando posse no BB. Após um dia de aula, saímos para conhecer um pouco o Recife e tomar um chope com alguns colegas recém empossados e muitos deles nunca tinham vindo no Recife. No percurso, eu achei de perguntar se eles sabiam onde estavam, quando um deles disse: "professor, eu estou mais perdido do que filho de rapariga em dia dos pais". Eu achei aquela resposta de uma presença de espírito fira do comum. Abraços e Hayton por esta pérola.
ResponderExcluirUma delícia de crônica! O linguajar nordestino é rico em todos aspectos. Parabéns Hayton! Abs, Canindé
ResponderExcluirEsses ditados são pitorescos... pelo menos criatividade não falta. E são definições perfeitas.
ResponderExcluir“Parece o cão chupando manga” é uma das que eu mais costumava ouvir para se referir a uma pessoa “feia que dá dó”. Tem ainda a “Jesus do Céu!”, significando espanto com uma situação incomum. E por aí vai. É material para um bom livro.
ResponderExcluirVocê mexeu num "vespeiro" que dá prosa pra uns catorze anos, como se vê pelos comentários aí.
ResponderExcluirSem intenção de que seja dito popular, porque realmente não é, há entretanto uma expressão que era muito utilizada por um querido amigo meu, que nos deixou há três anos, quando em um papo entre amigos alguém explicava que precisava se retirar do ambiente. Invariavelmente, ele dizia - " a falta será grande, mas o alívio, incomparável".
Sempre lembro disso quando em situações onde a expressão cabe fortemente...
Mais uma crônica para não esquecer. Que bom, Hayton, sua qualidade de não passar mouco diante dessas riquezas de nosso linguajar. Sobre essas diferenças de falas, lembro de uma história de meu marido, mineiro, recém chegado a Quebrangulo (terra natal do grande Mestre Graça), ficou mais perdido que cachorro caído do caminhão de mudança ao ouvir a seguinte expressão: “Pocou a volta”. E mais besta ainda ficou quando soube o significado: “Quebrou a corrente do pescoço”. Já a minha amiga Suzel, gaúcha de Porto Alegre, diria sobre sua crônica de hoje: “Me caiu os butiás do bolso!” Ficou pra lá de admirada.
ResponderExcluirParabéns, Hayton! Isso é preservação de cultura. Eu gosto muito, também, é das versões populares que se faziam dos ditados mais clássicos. Como exemplo, os portugueses da minha região diziam para os trabalhadores escravos, para uma orientação do que hoje as ciências administrativas denominam de FOCO, o seguinte: "Dois sentidos não se assimilam.", Mas a versão popular é muito mais simples e mais didática quando você quer orientar a pessoa a ter foco: "Dois sentidos não assam milho."
ResponderExcluirO presente texto apenas fortalece a minha convicção de que a língua oficial do País poderia ser bem mais rica se pudesse voar livre de tantas regras gramaticais. Sobre a cultura nordestina, o autor deve ter material para escrever um livro inteiro. Parabéns!
ResponderExcluirA Cultura Nordetina é muito rica, você Hayton resgatou inúmeros ditos populares e os leitores colaboraram bastante.
ResponderExcluirSegue alguns:
- Mais perdido do cego em tiroteio;
- Quem avisa, meu amigo é;
- Come sardinha e arrota caviar;
- Casa de ferreiro, espeto de pau;
- Me diga com quem andas e direi quem tu és...
E por aí vai...
Forte Abraço!
Gostei muito , inclusive do título, pois muitos ditos citados aqui são verdadeiras lições de vida. E os leitores complementaram com mais sabedoria.
ResponderExcluirSábia abordagem, como sempre, de sábios populares, neste caso 👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirHayton, mas uma vez vc esbagaçou em suas crônicas, essa está tão boa que só quando Zabel casou, é uma daquelas crônicas incorroscobível, vc foi se felineando com os nossos dizeres, quando leio os seus dizidos, tenho a convicção real que, jumento carregado de rapadura, até o rastro é doce.
ResponderExcluirTiciano Félix.
Prezado Hayton
ResponderExcluirUm tal de Gaston Bachelard, filósofo francês, escreveu certa vez que "as metáforas seduzem a razão", por isso não deveriam ser utilizadas no discurso científico.
Já, na literatura, elas abundam. Gostei especialmente destas que vc utilizou com maestria literária nesta crônica:
"O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação. Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.
Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei no fundo da mala de minhas melhores lembranças. Preparem-se, principalmente aqueles que ainda não tiveram a ventura de experimentar do Nordeste (tudo tem seu tempo, não desanimem!)."
Sábios e convincentes falas que ganham o retoque Hayton... Crônica para ler, divertir e evoluir culturalmente.
ResponderExcluirGrande Hayton, que maravilha de texto. O Cabra não só envolve, como vive e saboreia uma cultura ímpar. Parabéns
ResponderExcluirEstou procurando o significado da expressão: "passar manteiga em beiço de bode".
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