domingo, 1 de março de 2020

De pai para filho, às vezes

Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do Clube do Choro, um dos templos sagrados da música instrumental brasileira. 


Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.”

Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama:

“(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tempo, por outra razão talvez ainda mais importante: o mar nunca se cansa de repetir seu balé. Milhões de anos repetindo o mesmo ritual, os mesmos movimentos e nada abala o desempenho do mar e seu prazer em somente existir. (Hoje em dia, com a quantidade ridícula de estímulos que temos a todo instante, ficamos com a impressão de que a repetição está associada necessariamente ao tédio. Que engano). Deve ser por isso que Caymmi gostava tanto de estar junto do mar. Ali, ele alimentava e renovava suas esperanças e se enchia de infinito que depois transformava em canções. 

Gosto muito de ver ele vir macio lá de trás, subir suas ondas, quebrar na praia, fazer sua espuma, recuar sua água e depois repetir a coreografia. E por mais tempo que passe olhando pra ele não canso de olhar. Parece que nada é banal naquele espetáculo e tudo tem um significado: o som das ondas, o recuo e o avanço das marés, a espuma que surge com a quebra das ondas... 

... O mar, com suas águas macias, não respeita (no melhor sentido da expressão) a força da rocha. Ele simplesmente envolve a pedra com a fluidez do seu bailado (...)”

                                      ***

Assim que fechei a leitura, quis dizer alguma coisa a Reco, mas eram pobres os adjetivos que me ocorreram para qualificar a beleza do texto, inspirado numa praia como outra qualquer, de águas um tanto frias e areia dura, amarelada, que conheço há anos.

Ah! Se ele, o autor do texto, soubesse das praias de Pajuçara e Ponta Verde — com sargaço e tudo! , onde quase todo dia vejo o sol chegando bem devagar, calado, a render a lua e a trazer no colo uma manhã vestida de esperança.

Ah! Se eu soubesse expressar como ele, com um violão nas mãos, o que transborda no coração dessa gente resignada que passa por mim logo cedo e vai em frente mesmo sem ter com quem contar, surfando nas alegrias e agonias de cada dia. 

Ah! Se eu soubesse, assim como o autor e o pai sabem, extrair de cordas sons tão caros e raros ao coração de quem se deixa diante do palco no Clube do Choro a lhes escutar. Nunca mais eu deixaria de tocar. 

Como nunca aprendi a tocar um instrumento  nem cuíca, prato, reco-reco ou tuba —, só consigo tocar meia dúzia de corações quando escrevo. Já não me iludo mais: bandolim e violão, assim como piano e saxofone, representam muita areia pro meu carrinho de mão enferrujado. 

Por isso, rendo minha homenagem inclusive aos tocadores de cuíca, prato, reco-reco e tuba. No caso da tuba, aliás, confesso que até hoje fico intrigado quando vejo aquele sujeito, na parada militar ou no coreto da praça, carregando um treco maior do que ele apenas para, de vez em quando, soprar um ofegante "fum-fum". 

Ainda bem que os filhos nem sempre puxam ao pai. 

26 comentários:

  1. O mar é fonte de inspiração sem fim, a música uma "amante" que acena, a crônica uma brisa leve. Assim segue o cronista Hayton. Parabéns

    ResponderExcluir
  2. A minha frustração, é tocar violão. Nessa altura do campeonato, só em sonhos.....

    ResponderExcluir
  3. O mar é o mar,indescritível!
    Reco é Reco, também indescritível!
    Hayton é Hayton, também indescritível!
    E viva a vida, com O balé do mar, a música e a poesia!

    ResponderExcluir
  4. Você bem que tentou tocar acordeon...( Bora esquecer as fugidas da casa da professora Terezinha, em Patos)rsrsrs. Até hoje não entendi porque não virou jornalista, se interpreta tão bem o que vê ao redor...

    ResponderExcluir
  5. Parabéns Hayton sempre dando um toque de mais beleza na beleza que alguém disse. Elogio demais não faz mal. Parabéns por discorrer as praias de Maceió. Merecem.

    ResponderExcluir
  6. Cada qual com o seu talento. Bela crônica.

    ResponderExcluir
  7. É maravilhosa a expressão do mar meu irmão Hayton e é justamente nesse vai e vem das águas, que surgem encantados músicos, poetas e iluminados escritores como você, Reco do Bandolim e outros grandes nomes da nossa poética brasileira.

    ResponderExcluir
  8. Caro Hayton, muito boas a descrição do Henrique Neto e a sua a respeito dela. Alguns anos, depois da aposentadoria, resolvi aprender tocar saxofone, desafiando o dito de que papagaio velho não aprende falar e do que dizia minha mãe de pessoas com poucas habilidades, eram que nem chifre de bode, servia pra pouco ou quase nada...hehehe...mas sigo pelejando, já arranjo alguma e está valendo o desafio. Abraços

    ResponderExcluir
  9. Nunca é tarde para começarmos algo novo. Não duvido nem um pouco que você conseguirá dedilhar as cordas de um violão, principalmente nessa varanda olhando o mar da Pajucara.

    ResponderExcluir
  10. Antônio Carlos Cámpos1 de março de 2020 às 08:47

    Fala com o Manoelzinho; toca uma sanfona como ninguém.
    O mar é tão mágico que nem precisa ser visto; só ouvido.
    Comprei, tempos atrás,uma casa velha no Pontal do Boqueirão, em Japaratinga. Era toda esquisita e desalinhada.tinhha até uma parede que se projetava pra fora da casa, ligando nada a lugar nenhum. Chamávamos de Casa Quebrada.
    Ali o mar era bem pertinho e nem era preciso ir até ele; ele vinha até a gente.
    Na descrição feita do mar pelo músico não foi mencionado o som.
    Quem passou muitas tardes, sob uma árvore, lendo Graciliano Ramos, na casa quebrada, sabe o que é o som do divino.

    ResponderExcluir
  11. Nossa, senti saudade do mar! Também não sei expressar meus sentimentos pela música, mas sei que toda vez que tenho o privilégio de olhar o mar, agradeço a Deus!

    ResponderExcluir
  12. A música é algo tão maravilhoso que nos faz pensar poeticamente sobre tudo. Quanto à rotina do mar, que vai e vem, toca a areia, nossos pés, as rochas, para nós é algo poético e muito lindo de apreciar. Em nossas vidas, porém, a rotina nos desagrada, talvez por não sabermos apreciá-la. Quanto a tocar um instrumento musical, há os que emitem sons e os que tocam o coração. Escrever não deixar de ser um deles, pois leio, recito ou canto o que está escrito. Quem escreve sabe como mexer com os sentimentos.

    ResponderExcluir
  13. Que bela "domingueira". Mais um alento de texto, para somar, de vez em quando, às nossas já costumeiras leituras de cada quarta. É uma pena se você não compartilhá-la, se ainda não o fez,com o autor que te inspirou a redigi-la.O mar sempre é uma fonte permanente de inspirações, que o diga em voz póstuma o grande Fernando Pessoa, no seu inesquecível "Mar Português ".
    Parabéns por mais uma.

    ResponderExcluir
  14. Não tenho a oportunidade que vc tem quase todos os dias, de ver o sol nascendo na sua Pajuçara. Mas de vez em quando, faço uma pequena viagen para sentir o prazer de ver e ouvir o mar e suas melodias. Sua crônica nos faz viajar.

    ResponderExcluir
  15. Fugi do mar achando que acharia um mar de coisas novas. Se arrependimento matasse...Adeus Manaíra, adeus. O mar trás , o mar leva. Leva eu sodade

    ResponderExcluir
  16. Poesias entre poesias.... Parabéns !!!

    ResponderExcluir
  17. Amigo Hayton,
    Pai e Filho fizeram e fazem pintura com os instrumentos, e Você dá um excelente toque final com Belo texto, ótima poesia.
    Parabéns

    ResponderExcluir
  18. Beleza sobre belezas. Parabéns à esses três homens sensíveis.

    ResponderExcluir
  19. O mar de Maceió, meu caro Hayton, um lago sereno de águas verdes e azuladas certamente é fonte de inspiração para suas obras, pois da varanda de seu apartamento você vê surgir o sol como se fosse das profundezas das águas, refletindo sobre elas seu raios dourados que parecem domar as forças das marés, tornando-as mansas e serenas.


    ResponderExcluir
  20. Confesso que também sobre mim o mar exerce um fascínio que transcende até a razão, contemplá-lo me enleva.
    Outro dia, ao repetir isso um amigo cobrou eu não ir à praia sistematicamente já que tenho esta adoração pelo mar. Respondí-lhe, é verdade, vou menos do que gostaria, mas o que não pode é tirar ele dali, tenho que contemplá-lo todo dia.
    No que toca à música - sem trocadilho -, chego a dizer que adoro a vida mas talvez não a suportasse sem a musica. Por aí se vê o tamanho de minha frustração por não saber tocar nenhum instrumento.
    Agora, você, irmão, com o prodígio que faz com um teclado de letras, seria já deslealdade e humilhação com nós outros, por quem de direito, se aínda tivesse o dom para os instrumentos musicais.
    Aqui é Volney.

    ResponderExcluir
  21. Temos os dons que Deus nos concedeu, Hayton. Tu, além do grande líder que és, escreves com grandes maestria. Parabéns por mais uma publicação SHOW DE BOLA!

    ResponderExcluir