quarta-feira, 28 de julho de 2021

Eu vi! Ninguém me contou

 Um dos mistérios desta vida é o eterno desencontro entre expectativa e realidade. Sei que as duas são irmãs gêmeas, crias da mesma costela, mas, pelo menos no meu caso, nunca entram em acordo. Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino. 

 

De tanto ouvir as transmissões esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro nos anos 70, eu não sonhava conhecer o Cristo Redentor do topo do Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a floresta da Tijuca ou as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Queria mesmo assistir a uma partida de futebol no Maracanã, curtir o território das paixões de um Vasco x Flamengo.

 

Demorou. Só bem mais tarde, na primeira semana de agosto de 1987, a empresa em que trabalhava me designou para a “espinhosa” missão de participar de um curso durante cinco dias, no Rio, com direito a passagem aérea e estadia no velho Ambassador, na Lapa. 

 

Para evitar o aborto de alguns projetos paralelos, em minutos a minha bagagem estava pronta, inclusive com o radinho Philips, parceiro de tantas jornadas esportivas e musicais. E voei nas asas da Varig logo no sábado, antevéspera do início do curso.

 

No domingo, tornei-me amigo de infância de um taxista que, logo após o almoço, foi comigo pela primeira e única vez ao templo sacrossanto do futebol mundial, onde o Vasco enfrentaria o Flamengo, tentando conquistar seu 16º título estadual.

 


Pouco antes do início do jogo, o ar enfumado se encheu de cheiros, cores e sons de vários tons, misturando garoa fina, reconhecimento e veneração, quando os alto-falantes anunciaram as presenças de Roberto Dinamite e Zico. 

 

Os dois fingiam que nada daquilo era com eles. Caciques de duas tribos apaixonadas, nunca se viu nenhum desses guerreiros se dirigir à nação adversária com provocações. Ficou fácil compreender por que, apesar do declínio fisico a partir dos 33 anos, relutavam em aceitar que o tempo não espera ninguém. 

 

Não duvido nada que o barulho tenha arrepiado os braços da estátua de Bellini nos arredores do estádio, onde, como dizia o anjo vascaíno Aldir Blanc, camelôs vendiam anel, cordão e perfume barato; baianas faziam pastel e um bom churrasco de gato.

 

Lá dentro, éramos 115 mil almas em êxtase diante de figuras míticas como Dinamite, Geovani, Mazinho, Tita e o então menino Romário, que enfrentariam gigantes como Zico, Leandro, Aldair, Andrade e Bebeto. 

 

Dois lances traduziram bem o enredo do jogo: a bola alçada sobre a grande área rubro-negra em que Dinamite a amorteceu no peito e rolou para o arremate indefensável de Tita, e o voleio de Bebeto da marca do pênalti, no fim do jogo, para a monstruosa intervenção do goleiro Acácio.

 


A propósito, o fato de o gol do título ter sido marcado pelo cruzmaltino Tita contra seu ex-clube, que mereceu vibrante narração do locutor José Carlos Araújo "Garotinho" (reveja aqui), deu à conquista um sabor especial de bacalhau à lagareiro com vinho tinto de boa safra.

 

O esplendor da catedral do futebol, a simbiose da assistência (arquibancada e geral) com os atores em cena, o "uhh!" a cada lance mais agudo no gramado, tudo acabou bem maior do que minha melhor expectativa.

 

Quatorze anos depois, em 2001, quando estive no Velho Mundo pela primeira vez, foi frustrante dar de cara com o mais badalado símbolo do Império Romano: o Coliseu, no centro da capital italiana.

 


Tinha comigo que encontraria algo parecido com o Maracanã. Havia lido que fora construído num local que havia sido devastado pelo grande incêndio de Roma durante o governo de Nero. 

 

Sabia que o espetáculo mais comum era a luta entre gladiadores. Ou entre guerreiros e animais selvagens (leões, tigres e até elefantes), trazidos da África para matar ou morrer. 

 

Que a partir do século VI, já na Idade Média, o estádio mudou o objeto original e passou a servir de habitação, oficina, forte, sede de ordens religiosas e templo cristão. 

 

Na virada deste século, mesmo em ruínas, o Coliseu ainda era reconhecido como uma das sete maravilhas do mundo moderno.  

 

Bem menor, porém, do que o Maracanã que conheci  naquela tarde fria de domingo e que trago comigo há mais de três décadas. Eu vi! ninguém me contou. 

 

Sei que agora nem o Maracanã nem o Vasco são os mesmos. Nem eu. Mas não me afobo. O fim não é para já. O Rio, como diz outro poeta carioca de boa cepa feito Aldir Blanc, ainda vai virar uma cidade submersa e os escafandristas virão explorar suas ruínas.

 

Quem sabe escutar o eco de cânticos e gritos de amor e dor, vestígios de glórias e tragédias de uma imensa torcida bem feliz que hoje está lá estendida no chão. Com um silêncio servindo de amém.

45 comentários:

  1. Excelente crônica, Hayton. Abraço do Sidney.

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  2. A imensa torcida, hoje nem tão feliz, pode estar lá, momentaneamente estendida no chão, mas salta aos olhos a paixão do cronista pelo Gigante da Colina e sua linda Cruz de Malta. Saudações Athleticanas deste seu amigo que já sofreu muito pelo Furacão da Baixada, mas que hoje vive um momento de relativa estabilidade dentro das quatro linhas.

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  3. É caro colega o Maraca dos "arquibaldos e geraldinos" foi engolido pelo padrão FIFA. A narrativa impecável nos remete ao templo do futebol em época de safras de craques com C do tamanho do Mário Filho.

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  4. “Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino.” Pura verdade! Mais uma bela narrativa,👏👏👏

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  5. Bela crônica e com final feliz para o Vascão - você teve a felicidade de assistir no Maracanã um dos melhores times do Vasco da história.

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  6. Como boa corintiana, sei bem como se sente Hayton. Estamos mais para os fortes massacrados no Coliseu do que os gloriosos que tantos gritos de vitória abalaram as estruturas desses templos. Mas, acredito na virada... dos nossos times. Ainda teremos muitas alegrias no Maracanã, não no Coliseu, claro!

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  7. Pra mim o final poético foi o ápice do lindo texto. Como falou de futebol me lembrou de algo vivido ontem: sentado num café com um amigo cruzeirense uma ex colega passava, me viu, veio cumprimentar e soltou um " é o sei Inter?". Eu disse a ela que estava com um cruzeirense e que no momento pretendíamos temas mais leves como política ou violência nas ruas kkkkk

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  8. O destino, às vezes, tece a realidade para superar nossas expectativas. Que bom que o curso te deu a magnífica oportunidade de ver a cena eterna de Tita correndo com a cabeça coberta pela camiseta do novo amor, depois de ter feito o antigo feliz nos 7 anos anteriores. Que nossa esperança esteja consciente de que a vida vem assim, em ciclos que de vez em quando nos colidem com a felicidade. Dedé.

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  9. Bela crônica! Pena que o futebol do meu Botafogo também vai de mal a pior.

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  11. Satisfação = Percepção - Expectativa > 0
    Frustração = Percepção - Expectativa < 0
    Taí uma bela demonstração da famosa fórmula da satisfação do cliente na teoria da administração. Se considerarmos que nos 34 anos que se seriam, o feito de 87 do Gigante da Colina se repetiu apenas por meia dúzia de vezes, diria que o amigo teve a satisfação de presenciar um episódio raro, que o torna ainda mais especial.
    "Ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória". Fantástico.

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  12. Pintura, grande Hayton. E assim, é a vida entre expectativa, realizações, constatações. Viver e não ter a vergonha de ser Feliz.

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  13. ANTONIO CARLOS CAMPOS28 de julho de 2021 às 09:04

    Acho que o Sonho é um projeto da Realidade.

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  14. Que bela crônica, trazendo a memória,lembranças de um momento tão aguardado e que se tornou inesquecível. Parabéns meu caro e eterno vascaíno.

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  15. Ah! Como sei bem do que você fala, Hayton! Tanto dessa complexa equação expectativa/realidade, quanto da memória de um time do coração que um dia foi grande. Eu sou cruzeirense e tenho sólido receio de que em alguns anos poderemos estar falando de um clube que existia outrora em Belo Horizonte. Por isso, como sugeriu Fadanelli, to preferindo falar de assuntos mais amenos, como violência ou corrupção!

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  16. Embora tricolor de coração, por incrível que pareça estava nesta final, tb cumpria uma missão no RJ designado que fui, a época,npelo Exército Brasileiro. E jamais retornei ao majestoso Maracanã. Dez anos depois, agora já prestando sv ao BB, fui à Itália e conheci, entre outros, o Coliseu e confesso que fiquei ali imaginando se os gladiadores fossem jogadores de futebol...

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  17. Excelente narrativa. Fez-me viajar no tempo, quando há três décadas atrás, em 1990, também conheci, pela primeira e única vez, o gigante Maracanã, em um domingo do maior clássico carioca, o Fla X Flu. E tive a imensa alegria de testemunhar, in loco, a vitória do meu tricolor de coração (1 × 0). A alegria só não foi completa porque ao chegar quase em cima da hora do início da partida e, por ser marinheiro de primeira viagem ao templo, acabei entrando por um acesso que me deixou no meio de milhares de flamenguistas e, face a visto, assisti ao gol do Fluminense sem poder gritar. Mas valeu demais à pena.

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  18. Essa narrativa é minha com final diferente. Final do carioca de 1979, Flamengo 1x0 gol de Rondineli aos 43 minutos do segundo tempo. Até hoje espero Leão sair do gol para interceptar a cabeçada, mas ele não sabia fazer isso. Se aposentou sem saber tirar a bola da pequena área. Pobre de nós vascaino sofredores!

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  19. Uma final no Maracanã, por si só, já é de arrepiar. Ainda mais com Flamengo e Vasco sendo protagonistas, tendo como maestros o Zico e o Dinamite. Tive a oportunidade de ir ao Maracanã e participar da conquista do Mengão em 2004, quando o Flamengo sagrou-se campeão ao vencer por 3 x 1, com 3 gols de Jean e atuação de gala do Felipe (ex-vasco), comandados pelo tambem ex-vascaíno, Abel Braga!!!

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  20. Imagino a realização ao entrar no Maracanã. Faz parte dos sonhos dis amantes do futebol,

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  21. Bela narrativa, explorando bem expectativa e realidade e abordando o futebol, tema bem passional.

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  22. O primeiro clássico no Maraca é inesquecível. O meu foi um Fla-Flu na década de 70. No meu caso, expectativa amplamente superada.

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  23. "Oh! Que saudades que tenho da aurora de minha vida, do gigante da colina, do expresso da vitória, que os anos não trazem mais."

    Hayton, essa sua crônica traz um tema muito sensível e sentimental para nós vascaínos. Tive até de recorrer a Casimiro de Abreu para recordar o grande Vasco da Gama de minha infância, do início do templo de futebol e das grandes transmissões pelas ondas sonoras do rádio.

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  24. Essa paixão chamada futebol tem dessas coisas. Consegue aquilatar Maracanã e Coliseu; Zico e Dinamite com gladiadores da História Antiga; Rio e Roma. Jogos em que está em questão muito mais que sangue e honra. Maravilha bem contada e pontuada com segredos os mais importantes.
    Roberto Rodrigues

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  25. Poxa, que saudade, não?
    Posso imaginar sua emoção, pois já passei por algo assemelhado, na primeira ida ao Mineirão.
    Hoje não tenho mais motivo para isso. É triste! Rsrsrs

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  26. Como diria um amigo: memórias memoráveis!!
    Maracanã é berço de grandes emoções.
    Ao me deleitar com sua crônica lembrei-me do Canal 100. Por meio do Canal 100 foi que conheci o Maraca e toda a sua mística. Mas nada supera a realidade de conhecê-lo in loco e gritar gooooollllll torcendo pelo time do coração. 🇭🇺

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  27. Bela narrativa sobre a paixão nacional. Realmente é indescritível assistir o time do coração jogar e, melhor ainda, ganhar. Pena que nesses últimos tempos o mundo deu muitas voltas e nem poder ir aos estádios podemos. Mas, do jeito que o nosso Vasco está, é até bom. Basta de sofrimento.

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  28. Nesse texto você ultrapassou todos os limites, Hayton! Como falavam os "locutores" de antigamente, sensacional!

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  29. Hayton, engraçado como a realidade geralmente contradiz a expectativa, para o bem e para o mal. Texto sublime, obrigado por compartilhar.

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  30. Excelente crônica! Maracanã, Coliseu, Vasco, Flamengo…..muitas emoções.

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  31. Meu amigo Hayton! Como sempre escrevendo lindamente. Gostei demais de seu texto, até mesmo pq somos apaixonados pelo mesmo manto vascaíno!

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  32. Tá lá o Maracanã estendido no chão. Plácido, por enquanto. Mas, daqui a pouco, a fênix ressurge na forma de uma cruzmaltina e faz voar o impossível estádio do povo, que grita: A turma é mesmo da fuzarca!

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  33. A torcida de repente não tão feliz, mas com certeza ainda muito apaixonada.

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  34. Futebol, paixão nacional! Uma decisão entre Vasco da Gama x Flamengo no Maracanã, realmente é um sonho, ainda mais com uma vitória... é uma realização!
    Parabéns Hayton!
    Bela Narrativa!!!
    Abraços,
    Maria de Jesus A. Rocha.

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  35. Mais uma excelente crônica para a minha coleção! Gostei do trecho da música "De frente pro crime", da dupla Blanc e Bosco, cuja obra coloquei agora pra ouvir no Spotify. Bela recordação. Realmente o maracanã mingou de lá para cá, e hoje não passa de uma bela recordação daquilo que foi naqueles tempos de glória.

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  36. Humilha, mas não tripudia!!!!!
    Não fosse a beleza poética e transcendental do texto, eu estaria agora em profunda depressão. Afinal, flamenguista romântico como sou, não há como negar a dor de relembrar um momento tão marcante.
    E pior, constatar que esse blog é infestado de vascaínos, parece até que sou aqui voz solitária.
    De qualquer sorte, valeu, e como!!
    Sou aquele torcedor que vibra e sofre durante o jogo, mas tudo acaba ali, é só um esporte.
    Reconhecendo a grandeza do seu Vasco, uma das glórias do futebol brasileiro, sempre, torço que ele recupere a grandeza como time - como clube é e será sempre - até em homenagem e agradecimento à beleza de sua crônica.
    que o Vasco volte forte e rápido, como time, mas que não ganhe do Flamengo...

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  37. O Hayton escreve carregando a imaginacao da gente para esse diande 1987, durante o texto vivi com ele a emocao. Parabens

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  38. Bela crônica! O Coliseu, mesmo com a sua história grandiosa, não teria como competir com um monumento “vivo” e vibrante.

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  39. A realidade às vezes nos frustra. Sem expectativas, porém, não existiriam sonhos. Ótima crônica.

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  40. Curti! O Maracanã é eterno, assim como o Coliseu, mas a galera no Maraca faz a diferença! 😉

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  41. O velho Maracanã já emocionou muita gente. Senti-me lá, durante a sua narrativa, na também única vez em que lá estive, para assistir a um jogo de futebol. E do mesmo Vasco. Obrigada por nos emocionar com suas belas narrativas.

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  42. Hayton, não é nenhuma novidade dizer quão maravilhosa crônica é seu texto.Apesar de não ser tão afeita ao futebol quanto você meu querido primo, mas a leitura taí rica de detalhes, teve como bônus, um passeio histórico pelo Coliseu romano. Parabéns mais uma vez pela excelente narrativa. Um abraço

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  43. Tem coisas que ficam na memória para sempre. Dinamite também era meu Ídolo, mas não tive o privilégio de vê-lo jogar pessoalmente. Fui uma única vez ao Maracanã, mas foi um joguinho peba entre Internacional e Flamengo. Sem graça.
    Também me decepcionei com o Coliseu.

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