quarta-feira, 20 de julho de 2022

Tem mau cheiro no ar

Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados. 


Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.

 

Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileiros”.

 

Acontece que a amada pátria, ainda estarrecida com a barbárie de dois crimes repugnantes (fadados ao esquecimento daqui a pouco), vê explodir toda semana novos mísseis devastadores, daqueles que não só destroem prédios e pontes, mas também o que resta de dignidade de uma nação.

 

Discutia-se nos bares e lares a diferença de duas abordagens policiais: a de um homem negro, pobre, que trafegava sem capacete numa motocicleta e acabou morto por asfixia no porta-malas de uma viatura em Sergipe. A outra, de um homem branco, que estuprou uma mulher em seu mais sublime momento, anestesiada – dopada talvez fosse o termo mais apropriado – durante o parto. Parecia que o segundo estava sendo convidado a tomar um chope num quiosque qualquer da Barra da Tijuca.

 

Nisso, logo após a derrota do Flamengo no jogo de ida contra o Atlético-MG pela Copa do Brasil, no Mineirão, um jogador rubro-negro, ainda no gramado, declara algo inesperado partindo de um ídolo esportivo de vulneráveis: "Lá eles vão conhecer o que é inferno!". Referia-se ao ambiente que se deveria criar no Maracanã no jogo de volta. 

 

O Galo não jogou nada e o Urubu nem precisou ser espetacular para vencê-lo: bastou empenhar-se do começo ao fim, atacando em bloco com velocidade, marcando firme e contando com mais uma atuação de gala de um uruguaio humilde e talentoso, autor dos dois gols da vitória. Mas, e se o Flamengo perdesse, como reagiria a massa contra os adversários ou mesmo em relação a seus próprios ídolos?   

 

Na noite seguinte, Cássio, 35 anos, o maior goleiro da história do Corinthians, sofreria uma voadora, pelas costas, de um torcedor santista que, inconformado com a desclassificação de seu time, invadiu o campo da Vila Belmiro. Chateado, ele repetiu numa entrevista aquilo que está cada dia mais óbvio (ululante, no dizer de Nelson Rodrigues): "Falta pouco para uma tragédia"

 









Sabe que poderia ter sido vítima fatal se o agressor estivesse com um canivete, um caco de vidro ou um pedaço de vergalhão. Vai-se ver lembrou de que em fevereiro o ônibus da delegação do Grêmio Porto-alegrense – clube onde começou sua carreira – fora apedrejado pela torcida do Internacional ao chegar no estádio Beira-Rio e alguns jogadores ficaram feridos. O meio-campista chileno Villasanti chegou a ser levado ao hospital, sob suspeita de concussão.

 

"A gente tá duvidando que isso possa acontecer", arrematou Cássio. Logo ele que, também em abril passado, teve de registrar boletim de ocorrência policial por haver recebido ameaças pelas redes sociais, num momento adverso de seu clube. O resultado das investigações? O mesmo do inquérito aberto pelo STF para investigar a existência de fake news na cena política brasileira.   

 

Quem acompanha futebol mais de perto recorda que, no começo deste ano, durante a partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, um atleta do Verdão encontrou uma faca no gramado, invadido por torcedores do Tricolor. Claro, não era um utensílio de trabalho esquecido pelo jardineiro da Arena Barueri.

 

Esses casos estão cada vez mais frequentes e absurdamente ousados. Medidas como torcida única nos jogos mais importantes ou proibição de bandeiras nos estádios, soluções adotadas em São Paulo, mostram-se ineficazes e só evidenciam a má-vontade do poder público e dos dirigentes de clubes em resolver o problema.

 

O embrutecimento generalizado é mais preocupante porque, noutras esferas tão explosivas quanto futebol e religião, incentiva-se abertamente o clima de guerra, desacreditam-se as instituições e incitam-se potenciais criminosos por meio do afrouxamento de regras mínimas de civilidade como o controle de armas. 

 

Como o pior do clima futebolístico está presente nos aspectos mais importantes da vida nacional, recorro de novo a Nelson Rodrigues, citado por Ruy Castro na Folha de S.Paulo de 16.07.22: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina".

 

Cássio está certo: tem mau cheiro de tragédia no ar.  

37 comentários:

  1. Quantas verdades nessa rica crônica, parabéns!

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  2. "Estamos numa encruzilhada/sem rumo e sem direção/E tragédia anunciada/Em ano de eleição". A leitura tem sido um bálsamo. Feliz dia da amizade.

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  3. A única esperança é o analfabeto, traquejado em política. Morro de medo de quê seu colete à prova de bala não o proteja!

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  4. Pode-se depreender, pelo cacoete vascaíno da mão do autor, que se GabiGol não tivesse falado nada a decisão entre os rivais históricos dar-se-ia entre abraços num campo de margaridas ao som de Kenny G. Eu ri. Dedé Dwight

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    1. Não é o cacoete vascaíno, Dedé, mas a sensação de que figuras como Zico, Júnior, Andrade, Adílio (ontem) e Arrascaeta (hoje) personificam melhor o ídolo de vulneráveis. Mesmo sem margaridas nem mesóclises. 😹

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    2. Írio Medeiros da Nóbrega - Tem que fazer como a Inglaterra tratou os "hooligans". Impedindo-os de comparecer aos campos de futebol ou simplesmente colicando-os na cadeia.

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  5. O contexto é decorrente de uma escolha difícil sob a ótica de muitos.

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  6. Triste realidade relatada. Porém convenhamos , é muito difícil conviver a seu lado pessoas com pensamentos/valores tão tacanhos(fora da realidade, não falo em divergências políticas). O problema do país não é “ele”, são os que apoiam ….ele não significaria nada.
    Aguilar

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  7. Tempos difíceis. Os idiotas se sentem mais empoderados do que nunca.

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    1. E estão por toda a parte. E, pasmem, perderam o pudor.

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    2. Mais um vaticínio rodriguiano se confirmando?
      "Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos."

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    3. Vejo idiotas dos dois polos

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  8. A gratuidade de tudo quanto é violência, da mais branda (se é que se pode falar em violência branda) à mais inominável está grassando no planeta. Os nervos estão à flor da pele. Parece até coisa plasmada em nossa atmosfera.

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  9. Aprecio mais os textos com personagens antigos em episódios pitorescos. Mas este texto, mas esta reflexão é necessária.

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  10. Muitas verdades... pena que a influência italiana no país é muito forte, pois tudo acaba em pizza... vamos ver até quando.

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    1. A propósito, muitas CPIs terminaram em "pizza" 🍕, mas essa DO MEC, que está pra ser convocada, eu temo que possa terminar em conhaque. DOMECQ. ☹️

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  11. Infelizmente essa crônica precisava ser escrita e bastante divulgada, pois trás pelo olhar futebolístico, a triste situação que assola nosso país, com forte tendência a ficar ainda pior. Parabéns pela abordagem.

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  12. Percebe-se uma inquietação generalizada em todos os continentes. Existe uma guerra real em andamento, não só entre Rússia e Ucrânia... A guerra maior, talvez invisível para muitos, está entre os "poderes econômicos", cujos atores assistem de camarote o degladiar dos "apaixonados" pobres mortais.
    Forte abraço.

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  13. Parte do mundo continua vivendo como se ainda estivesse na barbárie da idade média e regido pela lei de Talião; parte, tida como democrática e civilizada, promove, através de grupos extremistas, retorno àquela idade e os demais assistem, passivos, a todo esse retrocesso acontecer diante dos olhos. A democracia é um fino cabo de guerra, eternamente tensionado: uma vez partido, encontrar suas pontas pode demorar dezenas de gerações. Em que espelho este mundo perdeu sua face?

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  14. Futebol sempre foi assim, Politica sempre foi assim o Brasil sempre foi o pacato de sempre, será que esquecemos os black blocks que destruíam e até assassinaram pessoas e os tais movimentos sociais que invadiram propriedades erradicaram plantações e até projetos científicos, de pior agora tem juiz tomando partido explicitamente, sequer é novidade a imprensa massacrando a verdade “A imprensa é muito séria, se você pagar eles até publicam a verdade”. frase do Juca Chaves
    salvo engano TUDO COMO ANTES

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  15. Realmente Hayton! Tem mau cheiro no ar. Muitos nervos não estão mais à flor da pele, mas sim na condição de fratura exposta e pior, alguns já aparecendo e parecendo em decomposição, tamanho a murrinha que exalam. E não se vislumbra melhorias para o ceticismo que não teima em nos deixar. Cruz credo, ave-maria!

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  16. A violência está pra todo lado, e acaba tudo em pizza. Essa crônica nos leva a uma reflexão mais profunda de como as barbáries estão sendo tratadas. Parabéns!
    Perpetua

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  17. Tempos difíceis, Haytão! Pelo menos temos nosso profeta para mostrar em palavras a estupidez de ser humano. Também dizia ele: “Nada é mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem.”(Nelson Rodrigues)

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  18. Infelizmente este é o retrato do Brasil atual.

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  19. Carlos Célio de Andrade Santos20 de julho de 2022 às 11:44

    Bela crônica de uma triste realidade! Só achei uma injustiça com o pangaré!

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  20. Parabéns, Hayton. Bela crônica, é o retrato atual das regras de civilidade que convivemos.

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  21. O Brasil tá descendo de ladeira abaixo.Temos obrigação de fazer a nossa parte,para dormir com a consciência tranquila.

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    1. Está descendo de ladeira abaixo, mas se nos unirmos o seguraremos e o comunismo não nos encontrará dormindo.

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  22. É um triste, para usar um termo mais brando, cenário esse que estamos acompanhando em todos os recantos desse país. E o pior é a falta de esperança de se reverter isso, ainda que seja a médio prazo, pois no curto vai se deteriorar cada vez mais. O fundo do poço ainda não chegou.

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  23. Esta crônica retrata, de maneira transparente, uma triste realidade que vem se espalhando pela nossa sociedade.

    Devo confessar que deixei de falar com 2 (ex)amigos, por conta da ideologia e dos valores que defendem com unhas e dentes (e que eu considero absurdos para quem deseja conviver de forma minimamente civilizada).

    Em relação ao esporte – e mais especificamente ao futebol – a violência tem, entre seus responsáveis, torcedores, dirigentes, jogadores e parte da imprensa que não se cansa de usar, repetidamente, palavras e expressões próprias da guerra e do mundo da violência. Vejamos alguns exemplos:

    • O Time X está pronto para a guerra da Libertadores.
    • Time Z contrata matador
    • Começa a fase do mata-mata
    • Fulano na mira do Vasco
    • Cicrano amplia artilharia no Brasileirão
    • Coxa e Furacão duelam na Baixada
    • Três clubes continuam na briga pelo título
    • Time Y não mata o jogo, mas deixa o adversário ferido
    • Tiro certeiro do atacante ...
    • Precisamos dar ao técnico todo o armamento necessário para esta batalha

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  24. Luiz Andreola publicou o comentário acima

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  25. O que muitos de nós chamamos de “ideologia”, na verdade são os princípios e valores que defendemos e praticamos na vida em geral. E não apenas na eventual militância partidária.
    Deixei de jantar não com pessoas que votam em candidatos diferentes dos meus. Mas prefiro não “desfrutar” da companhia de quem sempre defendeu valores e princípios semelhantes aos meus e agora passou a defender o indefensável. Quero distância de pessoas que apoiam quem deseja o meu aniquilamento, apenas por eu continuar defendendo valores e princípios que essas mesmas pessoas defendiam antes comigo.

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  26. Com a elegância costumeira, você aborda um tema verdadeiramente nevrálgico.
    Costumo dizer que, provavelmente, nunca o maniqueísmo foi praticado com tanta contundência, em nenhum lugar, quanto aqui em Pindorama.
    Quando se trata de religião, política e futebol, então, a coisa chega às raias do inacreditável.
    Só que, refletindo bem, não se poderia esperar algo diferente de um povo que cultua figuras como Lula e Bolsonaro.
    Mas, é só a minha reflexão e conclusão, longe de mim a pretensão de que meu pensamento seja o melhor. Talvez a idiotice seja minha...

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  27. Por barbeiragem de uma mente marchando célere para a decrepitude, o comentário acima saiu como de um anônimo. Foi meu, CARLOS VOLNEY.

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  28. Ainda bem que este ano tem Copa do Mundo!

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  29. Estamos vivendo tempos muito sombris. Tenho visto cenas que me repugnam e entristece. Parece que fomos atingidos por um meteoro com poderes desumanizantes. As pessoas tem sido bestializadas. Agem movidas pelo seus mais primitivos instintos selvagens. O superego está sendo extinto em alguns, a civilidade tem se afastado para dar espaço à barbárie. É como se estivessrmos vivendo um filme de terror com monstros saindo dos armários, mas o pior é se dar conta que esses monstros sempre existiram e transitavam entre nós camuflados de seres civilizados até que encontraram um representante que lhe dessem voz e apoio.

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  30. A frase final é uma pérola. Muito linda a crônica.

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