quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Dever de casa

Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.

 

É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.

 

Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas: 

 

– Andar de bicicleta.  Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro dia, um amigo ponderou que, com o tempo, a gente aprende a aliviar a área sustentando nas pernas expressiva parte do peso. Mas sob a pressão de meus irredutíveis 98 kg, retruquei numa boa: selim no cóccix do outro é refresco! 

 

– Atrasar-me para um compromisso. Há quem diga que ser pontual e gostar de pia limpa e cheirosa é coisa de velho. Concordo e acrescento lençol e travesseiro. Porém a sala de espera do consultório médico (ou qualquer outra do gênero) provoca mal-estar quinze a vinte minutos depois do horário combinado no pressuposto de que as partes envolvidas merecem mútua consideração.  

 

– Caminhar na areia fofa da praia, na maré cheia, com as panturrilhas doendo. Outro dia, vi o futevôlei na orla e, de repente, senti que a bola vinha pelo alto em minha direção. Pensei em amortecê-la no peito e, com um chute certeiro de peito de pé, devolvê-la aos peladeiros, deixando-os de queixo caído. Mas a bola, ingrata, talvez chateada com o meu sumiço, fugiu sem aceitar o afago de um antigo amor. Humilhado, tive a melhor demonstração das diferenças entre teoria e prática, entre o que sou e o que fui.

 

– Conviver no trabalho com quem se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia. Que só enxerga os outros de cima para baixo, quase sempre com um debochado risinho sobre qualquer comentário que conflite com seu ponto de vista.

 

– Faltar água no chuveiro (ou energia, nos dias mais frios em que o banho morno é imperativo) assim que a gente coloca shampoo no que resta de cabelos, isso depois de haver largado no roupeiro camisa, bermuda e cueca. 

 

– Ler um romance (ou uma crônica, para os incapazes de ir além disso) realmente marcante, daqueles que nos remetem à invejosa consulta diante do espelho: “Por que não pensei nisso antes?” 

 

– Lidar com gente que se diz franca, leal, sincera demais, como se isso fosse salvo-conduto para dizer tudo o que vem à cabeça, despreocupada se machuca ou não aos outros. Dá vontade de falar: “Nada disso! Isso é ser rude, desagradável, mal-educada”. Não digo apenas para não ser incoerente.

 

– Participar de reuniões longas, com gente que fala pelos joelhos e cotovelos, dá voltas e nunca chega a lugar algum. Coisas simples são ditas de forma tão complicada que se tornam enfadonhas e insultam a síntese e a objetividade que devem nortear a relação entre seres pensantes. 

 

– Passear a contragosto pelos shoppings lotados, na hora do cochilo após o almoço, entrando aqui e ali, observando vitrines, apenas para não contrariar a cara-metade. Os lojistas desses templos de consumo não fazem ideia de quanto lucrariam se criassem espaço de relaxamento com redes de algodão, penumbra, música instrumental, água gelada e cafezinho, destinado à restauração de maridos em trânsito.   

 


– Relacionar-se com uma pessoa demasiadamente medrosa, avessa a qualquer novidade sob o argumento de que valoriza aquilo que “sempre deu certo”. Que não quer saber de nada que traga algum desconforto em sua miserável rotina, mas se envenena de inveja quando alguém a seu lado se dá bem pela coragem de pular o córrego. 

– Rever, sem poder atacar a faca e garfo, iguarias que remontam a um tempo em que quase tudo era permitido, como: buchada de bode, pastel com caldo de cana, churrasquinho de rua, quebra-queixo, sarapatel, torresmo etc. 
 

– Sentir aquela cólica crescente e trepidante numa manhã de ressaca, no trânsito caótico, sem chance de um pit stop nos próximos dez minutos. Ainda que se evite lembrar das propriedades emolientes do azeite de dendê da moqueca da noite anterior.


 

 

Soube, há pouco, que a escola resolveu suspender a atividade objeto da entrevista de Camilinha. Boa parte de seus colegas não fez o dever de casa. Natural. Nessa idade, todo mundo têm “coisas” mais agradáveis a fazer no fim de semana.

 

 

36 comentários:

  1. Meu Deus, como as coisas que tu relaciona são de fato bem desagradáveis. A das comidas, nem me fale. Adorei todas, e da rolha foi matadora. Cada uma delas dá uma crônica, por si só. Tomo a liberdade de acrescentar a 13a. coisa. Ter que lidar com pessoas, muito queridas, que acreditam nas fake-news: das vacinas à Terra Plana. Não pinta um clima de jeito algum.

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    1. Lidar com pessoas que não param para pesquisar os fatos e o contexto em que aconteceram(se aconteceram) é realmente difícil, muito difícil!

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  2. Assino embaixo na totalidade das coisas relatadas. Certamente se a tarefa da Camilinha fosse relatar as "24 coisas desagradáveis da vida", aqui estariam expostas outras tantas que também teriam concordância. Será que por isso o termo "ranzinza" é tão popular para denominar muitos idosos?

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    1. Tudo leva a crer que a rabugice, feito angu saindo do fogo, é um prato que se deve comer pelas beiradas, bem devagar.

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  3. Pense numa dúzia de coisas boas de ofertar a um amigo que amada doce de leite co um olhar. Um time é o primeiro reserva (coringa) de respeito.

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  4. Ótimo assunto para uma crônica

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  5. Bom diaaa
    Que legal!
    Talvez, a tarefa não fosse para saber como lidar com os mais velhos, e sim, com nós mesmo.

    Ao ler fui repassando coisas que também não gosto, e o mais interessante, que nós idosos, geralmente tem "os maus" gostos associados, tirando o andar de bicicleta que amo, os outros fui vendo as semelhanças.
    Quando estou no treino que o cérebro dá um comando e o corpo desobedece, aí que raiva.
    E assim por diante...
    Mas teve um que fez refletir, falar o que vem na minha cabeça, não sei se mal-educada, se machuco, até hoje julgava que era por ser verdadeira comigo, até mesmo autodefesa, porém, como estou em construção, tomei a sua chateação como reflexão.
    Modificar é sempre bom, nos faz estar sempre em movimento (não é para agradar) é crescer espiritualmente.
    Mais uma vez, obrigada por fazer o início das nossas quartas-feiras tão suave.

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    1. Verdade Cristina. Mas confesso que a parte das comidas, da buchada, AFF, tocou forte. Ha ha ha

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  6. "Eu morro de medo de ficar rabugento assim quando chegar na sua idade". Eu repito faz tempo essa minha frase de zoação, principalmente com pessoas bem mais novas que eu. Mas a grande verdade é que a cada dia que passa eu tenho mais e mais orgulho de minhas idiossincrasias, até porque deu muito tempo e muito trabalho pra colecionar cada uma elas. Dedé Dwight

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    1. Ser bem-humorado, tolerante, dado a não reclamar de nada é coisa de gente pretensiosa, tola, ainda com muito sal a engolir, com risco de hipertensão arterial em andamento. Benditos os ranhetas como você, Dedé, que conquistaram com louvor o direito de ser assim até a fita de chegada da correria.

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  7. Meu Amigo, sua relação tem muito a vê, ou melhor é identifica a maioria de Nós. Tenho o sentimento que temos muitos adeptos, um excelente abaixo assinado. Com destaque pars o estacionamento do marido em trânsito.

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  8. Muito bom! Quase todos me identificando. Com exceção a bicicleta que não aprendi a andar, por proibição de minha mãe, não ficava bem pra meninas na época.

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  9. Exceto as três primeiras, estou de acordo com a listagem.
    Observo que, ao meu ver, a escola deixou escapar uma excelente ideia, ao não buscar formas - conjectura minha - de despertar nesses adolescentes quão interessante e gratificante seria essa aproximação com a geração de idosos. Penso que formar pessoas, é muito além dos conteúdos programáticos e preparação para o tal "mercado de trabalho". Fatores importantes, sim. Mas que carecem de complementos fundamentais, tais quais a iniciativa aludida.

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    1. Na mosca! De pleno acordo. Educar, mais que empilhar, envolve compartilhar saberes, experiências.

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  10. Ótima crônica. Ainda bem que só pediram 12. Abração. Gradim.

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  11. Brilhante! muita semelhança com coisas desagradáveis que não gosto. Abs, Canindé

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  12. Muito bom e hilário. Parabéns, Hayton, por mais essa joia literária com q nos brinda.

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  13. Rapaz !!! Antes de ler os comentários, pensei : “ parece até que fui eu, o entrevistado “. Depois pude comprovar, que todos os velhinhos participaram ….. rsrs
    Aguilar

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  14. Acrescento uma muito atual: é muito chato os que hoje misturam politica em todo e qualquer tipo de conversa. A da risadinha de canto é fantástica……e como tem….são especialistas em sacanear novas ideias…..

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  15. Das idiossincrasias citadas, vejo que me identifico com 3 delas: 1. não suporto atrasos; 2. Gente metida; e 3. reuniões sem objetividade. Claro, tem outras minhas que são não suportar gente refratária às evidências (eufemismo pra gente burra), acordar cedo sem motivo, encontros ou confraternizações hipócritas cheias de salamaleques baratos. Adorei a crônica. Concordo que os pequenos perderam ótima oportunidade. Claro, se os idosos rabugentos se dispusessem a responder às perguntas, kkkkk.

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  16. Inusitada a pesquisa. Mas, como há espaço para tudo neste mundão de meu Deus, penso que o desafio foi dirigido. Afinal, alcançou um ser maduro, experiente. E num rasgo, apenas raciocinou rapidamente, e lá estava transcrita a bendita relação. Observo como foi eclética, variou da culinária à panturrilha, passando por pessoas soberbas ou chatas. Confesso que teria mais dificuldades em traçar tal rol. Elencar com minúcias e rigor descritivo não é tarefa fácil. Tem que jazer nalgum canto da consciência, adormecida, mas como coisa pronta para vir à luz. Hayton sempre nos chama à reflexão com seus escritos fartos em nuances e brilhos. Talvez, com maior detimento, possamos responder o questionário da infante. Oxalá, desta feita vingue o trabalho. E se faça uma tabulação das respostas. Com informação percentual de cada tipo escolhido. Seria bastante elucidativo.

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  17. Ótima!
    Com a possível exceção da buchada de bode e do pedal, enquadro-me em tudo.

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  18. Coisas desagradáveis, para quem enveredou pelo caminho dos "enta" há algum tempo, são bem comuns nesse meio. Nessa lista, poderiam ser agregados outros itens ou práticas, que mostram, de qualquer forma, que nossa tolerância vai ficando refinada... Ou nossa capacidade de adaptação à velocidade do mundo dos que não vêem interesse naquilo que, para nós, é ou foi importante...
    O tema é instigante e daria para"viajar", sem medo, nessa via que interliga as gerações...

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  19. Agostinho Torres da Rocha Filho19 de outubro de 2022 às 18:42

    Conhecer os idosos deveria ser disciplina obrigatória do ensino básico. Certamente, teríamos uma sociedade mais equilibrada. Ótima crônica! Sobretudo pela forma suave como apresentada. Daquelas que, ao final, o leitor não aceita a abrupta interrupção de tão gostosa leitura. Parabéns!

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  20. Sinto-me representado na maioria dos itens da lista do Hayton.
    Mas, como pretenso cronista, o que mais me trouxe identificação foi com a “saudável admiração” (que quando praticada pelos outros a gente chama de inveja) por textos bem escritos e que provocam aquele estalo: “como não pensei nisso antes?”
    Isso inclui várias crônicas do autor desse blog! Kkkkk

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  21. Mais uma pérola, e essa "mexe" com todos e cada um de nós.
    Afinal, quem não tem suas manias???
    Dentre todas aí, só em uma não me enquadro - a caminhada na areia. Sim, faço-a de segunda a sexta, pela manhã, bem cedinho, tão logo termino a malhação na academia, só preciso atravessar a rua.
    Em verdade, nem é por gosto - mas também não desgosto - mas preocupado em manter a forma, a saúde.
    Não à toa, falam que estou bem fisicamente para a idade - acabo de completar 74. Aí digo, ah sim, estou ótimo, o corpinho ainda está em setenta e três e meio...

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  22. Kkkk! Acho que discordo de uma em que você tem raiva “por não ter escrito isso antes”, que certamente constou porque você já é um escritor notável! Mas adorei aquela do passeio a contragosto no shopping e da falta de conforto para “maridos em trânsito!”. Talvez tenha faltado “discutir política no grupo da família”, sei lá! Adorei! Diniz.

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  23. Excelente Hayton! Dependendo da idade essa sua lista varia pouco! Mas, pra quem gosta de futebol, o uso do VAR é uma das coisas que mais chateiam um indivíduo. A outra a tal da fake news. Que pelo jeito, veio pra ficar por que se tornou um programa de governo.
    Beto Barretto

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  24. Existem mais algumas pra acrescentar... mas uma que me deixa desesperado é conversar com gente pessimista... tudo irá dar errado. Já chega o que aconteceu até agora né.

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  25. Haahhah que texto criativo! Realista, mas sábio em seu interior: mostrando a serenidade para lidar com a vida
    Imagino que Camilinha recebeu uma lição que durará muito!

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  26. Você descreveu bem esses momentos quase singulares que se nos defronta no dia a dia da luta. Nesse final de semana, ao adentrar o espaço das máquinas " doadoras" de money, um cidadão me parou e disse: não está me conhecendo? Disse: tire os óculos. Porém não o reconheci bem mas achei que era uma das crianças que na década de 1940 brincávamos até cansar jogando bola ou brincando de "garrafão" ou " rouba bandeira" E isso em pleno meio da rua sem calçamento Oi qualquer outro benefício. Até a mãe dizer: tá na hora de dormir!!!.

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  27. Ahaaaaa
    Concordo no contexto em "quase" tudo rsrs
    Fica pra nós um pouco mais sobre o senhor, mas para Camilinha a frustração em não poder compartilhar sobre a "vida" !!!!

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  28. De todos os sacrifício sem duvida alguma esse eu quase chorei: "Rever, sem poder atacar a faca e garfo, iguarias que remontam a um tempo em que quase tudo era permitido, como: buchada de bode, pastel com caldo de cana, churrasquinho de rua, quebra-queixo, sarapatel, torresmo etc. " Principalmente devido a esse mosaico tão apetitoso. Meu amigo, faça isso não, desse jeito você me quebra, chega salivou os beiços... brincadeiras a parte, adorei o texto!!

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  29. Amigo Hayton
    Depois de ler sua crônica, conclui que somos muito chatos, com tendência a piorar.
    Abraços

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  30. Crônica interessantíssima! Adorei o cozido da foto, parece ser uma delícia...

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