quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Não ia dar certo

Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).

 

Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente.


"Lembrava... Zé Arigó"

Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pude: “Que bom revê-lo, o senhor tá muito bem, corado...” Isso que a gente diz porque é como oferecer água ou chá de camomila: não faz mal a ninguém.


Depois que nos afastamos é que me ocorreu que talvez ele é que não tivesse me reconhecido. Afinal, o encontro se deu em Maceió, mas já morei no Recife, em Salvador e Brasília. E só me dissera palavras mais ou menos vagas, não me lembrava de que ele tivesse pronunciado meu nome.

 

Mais tarde, eu ainda não recordara o nome dele, mas me lembrei de alguns casos que testemunhei ou me contaram.

 

“Adentra ao tapete de madeira desta casa esta lenda viva do Sertão, este indivíduo competente… O relógio marca: três da tarde desta sexta-feira!” – assim narrou meu chefe, a imitar um lendário locutor esportivo, descrevendo a chegada, à superintendência do Banco do Brasil, daquele gerente que trabalhava no interior, mas que todo fim de semana vinha à capital, onde residiam esposa e filhos.

 

A algazarra dos que presenciaram a gozação não inibiu o visitante. Com um risinho maroto e sem deixar a bola quicar, ele emendou: "Devo ter nascido com cara de “priquito”... Todo mundo aqui gosta de mim!"

 

Quando trabalhava como caixa, no início da carreira, ao espirrar de forma mais produtiva e espalhafatosa, ele teria ouvido um cochicho entre duas mulheres que aguardavam atendimento na fila: "Esses homens são uns frouxos! Uma gripezinha de nada já derruba. Qualquer dor de cabeça acaba com a raça deles. Queria ver aguentar a dor do parto!" 

 

Ele prontamente interveio defendendo a classe, com pleno conhecimento de causa, imagina-se: "Como é que é?! Quem diz isso nunca prendeu um ovo no cabeçote de uma cangalha (artefato de madeira, acolchoado, no lombo de burro ou cavalo, para pendurar cargas de ambos os lados)!"

 

Se era espirituoso e muito inteligente, era também daqueles pessimistas ao cubo, revestidos com várias camadas de ceticismo, fonte primária de seu humor ácido. 

 

A fama de pessimista ganhou musculatura quando, apesar do histórico de boas notas na universidade, ele desistiu do curso de Engenharia sob argumento pra lá de inusitado: "No dia em que me formar, a produção mundial de cimento vai entrar em colapso!" 

 

Mais adiante, nos estertores dos anos 70, quando o Planeta vivia a expectativa da queda, em hora e lugar incertos, da “Skylab”, primeira estação orbital da NASA, confessou sua apreensão a alguns colegas de trabalho: "Sou tão azarado que é capaz dessa porra cair no quintal lá de casa!"

 

Vai ver, lia Saramago, para quem “os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas estão encantados com o que há”. Ou Millôr, que registrou que “é melhor ser pessimista do que otimista, porque o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra”.

 

Outro sinal de seu desencanto teria ocorrido numa semana em que, mergulhado até o pescoço no saldo devedor do cheque especial, contava nos dedos os dias que faltavam para sacar o salário: "Todo mundo que conheço já recebeu ou vai receber herança... Menos eu!"

 

No olho desse furacão financeiro, dizem que convenceu a esposa a cortar o orçamento doméstico de um jeito bem prático:

– Mulher, você concorda que ir ao supermercado de oito em oito dias é a mesma coisa que fazer feira pra uma semana? 

– É… Basta apertar um tiquinho…

– Então… Agora, de dois em dois meses, a gente vai ganhar uma feira...

 

Todos esses casos me vêm à cabeça, menos o nome do protagonista. Resolvo então pedir ajuda a um velho amigo, que me dá a notícia de que Santana (como pude esquecer o nome dele?) nos deixou há mais de 10 anos. Que azar, não?

 

Portanto, não o encontrei há poucos meses no aeroporto de Maceió. Ele agora desfila de alpercatas apenas na esteira de minha memória, como naquelas tardes de sexta-feira em que gozava o vago conforto de estar vivo.

26 comentários:

  1. Vamos "Tocando em frente" enquanto lembramos nossos nomes e mantemos nossa capacidade de ler e escrever.

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  2. Fico imaginando o senhor do Aeroporto tecendo outros fios de história, tentando lembrar quem é que o cumprimentou. A familiaridade de rostos às vezes abrem gavetas de memórias que nem sempre conseguimos ordenar para que façam sentido. Salve o grande Santana, que se eternizou no final das contas. Dedé

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    1. Como ele sempre contava com o pior – além de tudo, era vascaíno –, dá pra imaginar como estaria se sentido nos dias de hoje, se ainda estivesse por aqui neste vale de lágrimas…

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  3. Certa vez ouvi dizer que o ator Elias Gleizer (salvo a memória foi ele), em conversa com um colega, falou que a vida deles, atores, era feita de uma sucessão de esperas, enquanto aguardavam para gravarem cenas. Lembrei-me disto, associando ao início da crônica, quando relatas o fato de ficar com a mente em permanente rascunho dos textos que nos brindas semanalmente, que além de terem conteúdos muito bem lapidados, ainda que partam de uma ideia simples, dão-nos também de presente palavras novas para quem os lê, a exemplo deste, em que recorri ao dicionário para ver o significado de duas delas: "desvãos" e "estertores", as quais, confesso, se as ouvi ou vi antes, não ficaram na memória. Valeu!

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  4. É provável que fosse mesmo o Santana no aeroporto. Seu espírito pessimista deve, em vida, ter vaticinado: "...quando eu morrer é capaz de minha alma ficar vagando por aí ". Dito e feito. O pessimista de Millôr, agora tá feliz. Adorei a crônica.

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  5. Narrativa densa e cheia de leveza, ao mesmo tempo. Desfila mais um tipo, entre tantos, conhecidos pelo escritor. Quase o enxergamos, tamanhas as descrições. É uma grande riqueza de tipos e mentes. Pessoas que revivem diante dos olhos dos leitores ávidos. E já ficamos ansiosos pelo escrito que vem. Quem sabe ainda sendo gestado na mente fértil e caneta ágil que nos brinda com situações e fatos tão vívidos. Leitura que dá prazer.

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  6. Já passei por muitas dessas situações, caro Hayton.
    Como passei por alguns cargos que deram visibilidade, fui educador no BB e tal, geralmente as pessoas lembram do meu nome. Eu às vezes fico tentando ligar o semblante a algum escaninho da memória. Será ex-aluno? Será alguém de alguma
    AABB que visitei um única vez há mais de 20 anos? Será de onde?
    Até um tempo atrás, eu jogava iscas, tentava pescar algum sinal. Perguntava da família, na esperança que a pessoa deixasse escapar um nome, uma referência geográfica, qualquer sinal de wi-fi que gerasse uma sinapse significativa. Às vezes dava certo.
    Mas ultimamente tá tão difícil que tenho apelado pra outra tática:
    - Por favor, me salva: to lembrando do teu rosto mas deu um branco geral na memória e fugiu teu nome. Nessa idade, tá uma droga confundir os nomes de pessoas queridas! Me ajuda, por favor!!

    E não é que as pessoas tem ajudado!!! Rsrs

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    1. A manobra ultimamente utilizada por você é mais corriqueira do que se imagina entre dinossauros como nós, meu caro Riede. Considero-me também um especialista na tecnica. 😅

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  7. Bom Dia, Hayton. Bom Dia, seletos leitores...
    A memória realmente nos prega desconforto quando "conhecemos" a pessoa, mas não sabemos quem é. Pior quando arriscamos um nome e esse diz "acho que você me confundiu com alguém parecido...".
    Conformeno-nos que esse "mal" não atinge poucos...
    Forte abraço.

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  8. Do cimo do cinismo que o passar do tempo vem - bem ou mal - me "agraciando", aditado, quiçá, da desimportância com qualquer possível constrangimento (fruto, quem sabe, desse cinismo), simplesmente miro, com firmeza, o olhar da(o) circunstante e taco-lhe um "perdão, mas não me recordo do seu nome" ou alguma expressão eufemística que o valha, sempre deixando claro meu esquecimento, coisa que me acomete, quanto a nomes de pessoas e suas fisionomias, desde tempos imemoriais!

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  9. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES5 de outubro de 2022 às 10:09

    A introdução do artigo revela a condição natural de uma pessoa em si. É a identificação de um ser humano com suas reações pessoais ante as fontes de energia que nos cercam a todo instante.
    Resenha o caso Zé Arigó. Circulou por Maceió, Recife, Salvador e Brasília. Por fim, a memória o ajudou.
    Desnudou as estórias do chefe com voz de locutor esportivo que adentrava a superintendência do BB com seus registros do interior e brincalhões.
    Destaque para o aspecto espirituoso e contraditório com pessimismo intercalado nas atitudes verificadas.
    Além da Skylab, citou Saramago e Millor Fernandes. Por fim, lembrou o nome da pessoa que havia encontrado no aeroporto, Santana, morto há mais de 10 anos.
    Texto, como sempre, muito envolvente.
    Parabéns por mais uma missão cumprida.

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  10. Ocorre comigo sempre esse esquecimento, embora depois me lembre, mas no memento disfarço com um “querido” ou “querida” kkk
    Perpetua

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  11. Muito boa! Minha sogra usava associar nomes a objetos, etc. Ela conheceu uma amiga, chamada Eide e a marcou com o nome do whisky(Old Eight). No segundo encontro a chamou de Dona Old, hehe...isso acontece.

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  12. Hayton, quando você começou a citar as frases pessimistas do personagem e a descrição física, associei logo ao Santana, que trabalhou na Ag. Maceió-Centro na nossa época. O pessimismo dele era notícia.
    Grande abraço!

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  13. Hahahahahaha
    Quem nunca…

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  14. Esplêndido! "Quem nunca prendeu um ovo na cangalha"? Me lembrei daquele político que, ao iniciar nova campanha na cidade Natal, perguntou ao eleitor sobre o pai. O eleitor respondeu que o pai havia morrido há 4 anos. O candidato (de ovo preso), falou: morreu proce, filho ingrato! Pra mim ele continua vivo!!!...hahaha

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  15. Esse caso teve um final produtivo. Além de você, o pseudo Zé Arigó deve ter saído também bastante inspirado do encontro. Isso é que vale e se equivalem. Mas existem situações semelhantes e nada inspiradoras. Um dias desses, topei com um cidadão lá pelos seus setenta e lá vai pedrada de carnavais, que me cumprimentou e começamos a bater papo, porém, sem ouvir meu nome uma vez sequer. Eu naquele esforço e suadouro peculiar, fazendo minhas viagens na farta memória para lembrar quem era o sujeito e nada. Até que veio dele a mim a pergunta: -Você jogou futebol profissional até quantos anos? Acabaram-se a inspiração e o otimismo.

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  16. Agostinho Torres da Rocha Filho5 de outubro de 2022 às 19:56

    Ótima crônica! Simples, criativa e profunda em sua essência, desde o título. "Não ia dar certo mesmo" está no DNA de todo cidadão pessimista. É possível reconhecer otimistas de algumas maneiras. Uma delas é pelo tempo de seu verbo. Enquanto os pessimistas falam no pretérito, os otimistas preferem falar no futuro. Os pessimistas insistem em ponderar como poderia ter sido. Os otimistas costumam discorrer sobre como poderá vir a ser. Ao mesmo tempo em que um pessimista culpa o passado pelo presente, o otimista encontra nele os elementos para alavancar o futuro.

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  17. Antes que eu me esqueça: um deleite sua crônica!!!

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  18. Há poucos dias atrás lembrei de você mestre Hayton. Um guia, que até falava bem nosso português, estava mostrando os encantos de Atenas, sobretudo a majestosa Acrópole. Ela ficou muito mais interessante do que imaginava, graças a habilidade de descrever a obra e a história que a cerca. Quando ele conseguiu tornar um simples pé de oliveiras em algo curioso, único, diferenciado e histórico, lembre do você. Sim, seus textos conseguem, embebedados de uma inspiração sem igual, transformam pequenos acontecimentos em algo bem mais aprazível e encantador do que fato são para a maioria das pessoas.
    Parabéns. Gostei. Até porque sofri muito com essa situação depois de viver em diversas cidades de 9 diferentes estados do Brasil sendo abordado constantemente por pessoas que até se sentiam íntimas, mas o meu “processador de memória” me deixava na mão. Abraço amigo

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    1. Lembrar de mim na Grécia é sinal de que alguma eu aprontei. Valeu, meu velho amigo. Rsrs

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  19. Sem deixar de reconhecer que você nos presenteia com mais uma pérola, essa aí até me causa um certo desconforto.
    Sim, pois acho que sou campeão mundial de deficiência em memória visual.
    Se fosse contar aqui os episódios constrangedores por que já passei, levaria horas intermináveis escrevendo e ninguém aguentaria ler tudo.
    Hoje acho que meu caso é de nível patológico, com certeza.
    Pra terminar, há um detalhe que me encuca, mas talvez explique a anormalidade. É que a memória auditiva sempre foi acima da média, eu mesmo me encucava com isso.
    Enfim, defeito de fabricação...

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  20. Rapaz, isso de andar na rua olhar é não ver não é prerrogativa somente tua. Não que eu ande rascunhado textos como você, antes fosse... já paguei alguns micos. Quando é um amigo, ele nos dá um tapinha no ombro e pergunta se está tudo bem. As amigas nos acham orgulhosos e reclamam de não serem vistas. Mal sabem que o diacho da idade vai nos pregando peças... como sou otimista, sei que irá piorar...

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  21. Este comentário foi removido pelo autor.

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  22. Otima crônica, como só o Hayton escreve. Destaque para "Devo ter nascido com cara de “priquito”. Muito interessante lembrar o termo que era proibido falar em casa no meu tempo de criança kkkkk

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