quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Uma hora a gente aprende

Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”

 

Imagem: arquivo pessoal

Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.

 

Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados. 

 

Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma plateia apressada. Ainda assim, escorriam alegria e suor da testa às dobras do pescoço. 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. 

 

Duvido que tenha tomado um café da manhã decente (quase certo de que não!), antes de pegar no cabo da vassoura e ir à luta. Ou se sabe a hora em que irá lavar as mãos e se sentar numa mesa para engolir a primeira colherada de arroz, feijão, farinha e uma improvável fonte proteica (um ovo quebra o galho nessas horas).

 

Pela leveza do semblante, duvido que viva magoando feridas de uma infância dura, de poucas letras e números, e quase nenhuma esperança. Ou que culpe os pais pelos dissabores da correria de hoje na busca por merecer o salário de fome, no desencontro entre o feijão e o sonho. 

 

Duvido ainda que tenha consciência de que mais de 130 anos já se passaram desde a abolição da escravatura e, mesmo assim, o chão em que veio ao mundo continua longe de virar uma democracia racial. 


Nem desconfia, imagino, de que as marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparo seguem refletidas no nível de mal-estar da maioria da população, composta por pretos e pardos (quase 60%). 

 

Sei que o tema merece reflexão mais profunda. Mas hoje quero falar apenas de um alagoano que encontrei por acaso, sorrindo e cantando Roberto Carlos, quando talvez devesse cantar Belchior de meio século atrás: “... Quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês...”

 

Deste alagoano que, certamente, pouco entende do sistema democrático e de como funciona, da independência e autonomia entre os três poderes, da importância dos partidos políticos e do debate de projetos no Congresso Nacional. Isso deve ser coisa de brancos e ricos. Tenho dúvida, aliás, sobre se estes últimos de fato entenderiam, pois, antes de entender, é preciso querer.

 

Deste alagoano que, tudo indica, não é daqueles que apreciam o patriarcado secular existente por aqui, que vê como seres inferiores os membros pertencentes a outras "minorias" que não a sua. Daqueles que enxergam o desemprego dos outros, antes de tudo, como preguiça, falta de garra, indolência vocacional e hereditária.

 

Quem canta e sorri desse jeito não pode ser do mal, não pensa assim. Sei disso porque tenho o hábito de guardar a ferrolho e cadeado a primeira impressão sobre as pessoas que conheço, ainda que me frustre mais do que gostaria, sobretudo quando lido com algumas almas confusas, pertencentes às classes mais favorecidas.

 

Segui pelo calçadão, ruminando o meu saco de interrogações sobre a tolice que é me importar (e sofrer) com a opinião alheia sobre o que fiz ou deixei de fazer. 

 

Na volta, não resisti e pedi ao “cantor” para fotografá-lo, como retrato do bem-estar. Parecia que a alma de Drummond estava ali, lembrando: “eu não avisei que ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade?”. Ou a de Verissimo, o pai, garantindo que “felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente.” 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. Até um cabo de vassoura (inclusive de uma bruxa) e uma canção que se ouvia no rádio antigamente têm a magia de despertar coisas belas e adormecidas. 


Leva tempo, mas uma hora a gente aprende que é estupidez achar que os outros têm o poder de nos fazer infelizes para sempre.


34 comentários:

  1. Mais uma bela crônica, ficaríamos dias e dias comentando, mas, vamos desse pedacinho” felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente.” Quantas vezes fomos uma luz e iluminamos a vida de alguém, e quantas luzes nos iluminam todos os dias, um sorriso, um bom dia, um abraço, o cantar de um Gari com um microfone improvisado, felicidades são momentos e estão em pequenos gestos, não precisa muito pra ser feliz!

    ResponderExcluir
  2. Hailton, massa! Obrigado por compartilhar. Continue nos brindando com sua arte

    ResponderExcluir
  3. Ademar Rafael Ferreira26 de outubro de 2022 às 05:27

    Quem joga com as cartas usadas por este cidadão citado na crônica faz da sua voz o eco das festas dos guetos, uma atenção recebida é bastante para seguir feliz. Uma lição.

    ResponderExcluir
  4. Parabéns! O texto revela a beleza do Encontro entre as artes, mostrando-nos, no teu relato, a magia da música e a candura do intérprete.

    ResponderExcluir
  5. A vida simples é a receita de uma vida mais leve e sem complexidades. Já em Eclesiastes está dito: "...quanto mais conhecimento, mais aborrecimentos ". Gostei da crônica, boa pra refletir sobre o quão fugaz é a vida.

    ResponderExcluir
  6. Arrasou.Todos os dias eu encontro esse trabalhador na orla, sempre feliz.Durante o carnaval,vc vai encontrar com ele,dançando ao som de vassourinha.

    ResponderExcluir
  7. AGENOR SANTOS (Salvador (BA).26 de outubro de 2022 às 06:41

    Obrigado por nos brindar com essa peça poética de grande qualidade, amigo HAYTON! Realmente as imagens do cotidiano enriquecem a mente criativa de poetas como você, que não resistem ao simples olhar contemplativo, mas usam as letras para enxergar a própria alma dos personagens! Parabéns, amigo, pela bela crônica!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Agenor. Bem dizia o poeta Itabirano: “Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”.

      Excluir
  8. Patativa do Assaré, preso pela Ditadura de Getúlio e observando uma Patativa cantar numa gaiola, escreveu: "patativa, patativa, do teu destino eu já sei. tu presa para cantar e eu preso porque cantei."
    É isso, alguém cantando é muito bom de se ouvir, ou de refletir, como faz Hayton, porque não é preciso muita coisa pra ser feliz.
    Eu canto!
    Dedé Dwight

    ResponderExcluir
  9. Homenagem muito bem feita e merecida. Felicidade não tem um lugar especial para existir. Quem chama ela vem. Parabéns.

    ResponderExcluir
  10. Tem certas profissões que costumam invisibilizar as pessoas. Gari é uma delas. Você poderia, como muitos de nós, ter passado sem perceber a existência do profissional.
    Poderia ter ficado intrigado com a pessoa utilizar a vassoura como pedestal e microfone, ao invés de simplesmente varrer.
    Mas você conseguiu ver o ser humano pleno que estava ali. E mais do que isso: se questionar por que não consegue também extrair da sua vida felicidade em oportunidades que estão por aí todos os dias.
    Aliás, fez ainda mais: provocou todos os seus leitores s fazer a mesma reflexão!!
    Muito bom!!

    ResponderExcluir
  11. Quantas vezes perdemos a oportunidade de sermos felizes, por estarmos buscando por coisas mais complexas, para fazer jus ao momento feliz. E ao nos depararmos com pessoas assim, vemos o quanto de felicidade deixamos de vivenciar. Excelente reflexão o texto nos traz.

    ResponderExcluir
  12. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES26 de outubro de 2022 às 07:35

    Parabéns por mais uma crônica. Não tem jeito, sempre me surpreende ver alguém cumprir uma missão como a sua de, todas as quartas, brindar o seu público leitor com uma mensagem. Hoje o homenageado foi o gari anônimo. A sua felicidade não deve ser superior ou inferior à do homenageado. Parabéns por mais uma missão cumprida.

    ResponderExcluir
  13. Que bom começar o dia com essa bela crônica, Hayton! Enxergar o que, infelizmente, apenas alguns olhos enxergam. Sentir, viver e ser feliz gratuitamente! Show!

    ResponderExcluir
  14. Impressionante a sua capacidade de perceber tudo ao seu redor com grande sensibilidade e senso de justiça e, também, de utilizar as oportunidades que a vida de tantos oferecem ao compartilhar conosco com tanta propriedade. Fico aqui, só aprendendo!

    ResponderExcluir
  15. Belíssimas reflexões, meu caro amigo!
    Luiz Andreola

    ResponderExcluir
  16. Belo escrito. Queria, sobre ele, destacar uma constatação. À medida que envelhecemos, temos a oportunidade de tornarmos-nos mais sábios. Vemos uma situação trivial, corriqueira, e dela fazemos brotar tantas conclusões. Algumas meio poéticas até. Mas com profundidade. Urdidas sob a orquestração de neurônios maduros e muito, muito espertos. Mais chances que temos de raciocinar junto, pensar sobre, refletir enfim. O cantor decantado foi o mote para um texto poético. Muito bom.
    Roberto Rodrigues

    ResponderExcluir
  17. Incrível!
    A primeira impressão ao começar a ler foi... Já li esse.

    Emocionei... Não só pelo gari cantor, mas por você também. Esse ato de parar e observar o belo é para poucos (infelizmente). Olhar nos olhos é ver nosso próprio reflexo (para alguns isso dói) no seu caso, você viu sua estada, em momentos de reflexão você pode perceber muita coisa sobre o que estava guardado a ferrolho e cadeado no seu íntimo.
    Descobrindo a felicidade em outras formas.
    Quando nós sofremos pelo que pensam ao nosso respeito, simplesmente deixamos escapar a felicidade.
    Ela, é como uma brisa, que passa nesses momentos transmitindo paz e reflexão.
    Suas crônicas estão cada vez melhores.
    Acredite!
    Está no caminho certo, ao perceber que nas pequenas coisas encontramos a imensidão.

    P.s.: Não é julgamento, apenas, percepção.

    ResponderExcluir
  18. Prezado Hayton

    Depois que publicamos um texto não temos mais controle sobre as leituras que dele farão. Cada leitor é mobilizado de forma singular, especialmente diante de um texto literário, pois este permite e estimula a multiplicidade de leituras. É assim que o leitor, de alguma forma, se torna um co-autor do texto que lê, ainda que o autor original não tenha culpa nenhuma disso...

    Achei essa sua crônica um primor! Eu poucas linhas, você conseguiu, com uma redação leve e certeira, traçar um rápido panorama da constituição sociológica cruel de nosso País.

    Recebi a leitura como um convite honesto e bem intencionado para refletirmos sobre nossa responsabilidade nas eleições que teremos neste domingo em que se confrontam dois projetos de vida, de sociedade, de país e de civilização.

    Uma das virtudes que vejo em você como escritor é tocar em temas sensíveis com elegância, gentileza e aguçado senso crítico. De minha parte, entendi o recado. E agradeço! “Antes de entender, é preciso querer!”

    Forte abraço!

    ResponderExcluir
  19. “Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz.” - Verdade! É sobre isso...
    ...e tem um trecho dessa mesma música que diz: “Não deixe tanta vida pra depois” e também é sobre isso, de viver todo dia (como se fosse o ultimo - ou como o primeiro)... É acordar e dormir e nesse meio tempo se propor viver com leveza, mesmo que a vida muitas vezes não seja! É enxergar o dia como oportunidade de ser feliz, mesmo que muitas vezes o sofrimento seja inevitável!
    A fé que o *alagoano* carrega ali, que faz da "música" combustível para caminhada é a mesma de que a gente precisa (ou deveria) encontrar pra continuar a nossa, toodo dia, todo dia!
    Parabéns ao senhor por enxergar além! Parabéns ao senhor por nos fazer enxergar além...
    ...e mais que tudo, parabéns ao “cantor”!

    ResponderExcluir
  20. Uma linda e merecida homenagem e tema para reflexão, que muitas vezes deixamos de viver, preocupados com a opinião alheia, e que a felicidade não depende de nosso saldo bancário.

    ResponderExcluir
  21. Excelente, Hayton! Nada como colher essas demonstrações de pureza da alma no cotidiano de nossas vidas.

    ResponderExcluir
  22. Coisa linda, meu amigo!
    Um primor de estilo, leveza e profundidade.
    Você quase se supera (coisa difícil para os grandes 🤣)!

    ResponderExcluir
  23. A sensibilidade humana é, sem dúvida, uma dádiva que pode transformar um momento ou, quem sabe, até uma vida...
    Olhar e perceber algo bom, no outro, permite que exercitemos nossa capacidade de amar o próximo e não de criticar o que não nos agrada nele.
    Reflitamos...

    ResponderExcluir
  24. Que lindo! Profundo… agradeço que compartilhe uma das coisas que mais gosto de fazer: aprender com todos! 🥰
    Bela lição o senhor conseguiu extrair do nosso “Roberto Carlos da Ponta Verde”. Que sejamos mais contempladores!

    ResponderExcluir
  25. Excelente crônica. Mas um Presente para nosso dia a dia, nossos olhos e reflexão.
    Especial aprendizado para enfrentarmos nossos desafios.

    ResponderExcluir
  26. Irmão, às vezes fico me perguntando, onde você vai parar????
    Essa crônica é capaz de sensibilizar até quem nunca sentiu nada ao se deparar com uma poesia, música ou escrito desestabilizador pra os mortais comuns.
    Você extrapola, mais uma vez.
    A crônica em si já me levou a uma quase desestabilidade emocional, frágil que sou, principalmente sendo tocado pelo registro da brutal e quase desumana relação que vigora em nossa Pindorama, entre os mais aquinhoados - como nós - e os que exercem atividades tão necessárias, indispensáveis até à saúde de todos, mas que para tal recebem remuneração que sequer lhes permitem uma sobrevivência mínima.
    É difícil fazer referência a alguma ou algum, parte ou detalhe de sua crônica, mas vou ousar fazê-lo.
    O terceiro parágrafo é verdadeiramente antológico, merece ser tratado como arte, tão forte é a poesia nele embutida pra balançar com os alicerces emocionais de nós outros.
    Você ainda será consagrado na ABL, tenho forte esperança...

    ResponderExcluir
  27. Belo e emocionante texto! A individualidade que hoje impera nos impede de enxergar o outro. Nunca antes o outro, o desconhecido, o anônimo foi tão distante ou tão invisível aos nossos olhos! Fica mais uma lição sua Hayton: ver com olhos de ver para enxergar o que o nosso coração embrutecido e distraído já deixou de sentir. Beto Barretto

    ResponderExcluir
  28. Parabéns por outra belíssima crônica amigo! a felicidade depende da decisão de cada um. Exemplos como este nos faz refletir o quanto perdemos com tolices que não agregam nada as nossas vidas. abs

    ResponderExcluir
  29. Agostinho Torres da Rocha Filho27 de outubro de 2022 às 17:40

    Algumas pessoas enxergam o gari como "o homem do lixo"; outras, mais sensatas, o tratam como "o homem da limpeza". Apenas as pessoas iluminadas, porém, conseguem transportá-lo para o centro de uma poética reflexão sobre a felicidade. Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. A felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente. O anônimo gari da Ponta Verde certamente consegue assimilar, mesmo sem estudos, a importância do seu trabalho para a sociedade, por isso é feliz. A presente crônica bem que poderia ser parte integrante da "comissão de frente", talvez o carro "abre alas", do próximo livro do autor.

    ResponderExcluir
  30. Então, Hayton.

    Bela história. Fico emocionado com a trajetória desse senhor. Igual a da maioria do pobre povo brasileiro. Resiliente. Aquele que não desiste de ser feliz, mesmo vivendo grandes dificuldades.

    Muito a nossa nação deve em dignidade aos pobres. Estamos longe de merecermos o título de uma das nações entre as 20 mais ricas do mundo.

    Paulo Freire nos ensinou que uma educação que não é libertadora ensina que o oprimido reproduza o modo de ver o mundo do ponto de vista do opressor.

    Isso explica muito das razões dessa história tão emocionante que vc nos conta aqui. A felicidade duradoura e verdadeira, para mim tem três dimensões.

    A dimensão coletiva.
    Ninguém é feliz sozinho.

    A dimensão da dignidade.
    Ninguém é feliz vivendo na miséria e na privação dos direitos humanos universais.

    E a dimensão da esperança.
    Ninguém é feliz sem a capacidade de sonhar e o desejo factível de realizar seus sonhos.

    ResponderExcluir
  31. Belo é poético texto e para tão belo escrito vos digo: É possível ser feliz sozinho, é possível ser feliz acompanhado, é possível ser feliz do jeito que você quiser, porque ser feliz não depende de qualquer fator, além de si mesmo. Ame mais, ame a vida, os amigos, a família e o seu trabalho. É isso o que te fará feliz.

    ResponderExcluir
  32. Amigo Hayton
    É isso mesmo. Fica o exemplo desse conterrâneo. Precisamos de pouco para sermos felizes. Mais uma lição.
    Abracos

    ResponderExcluir
  33. Arrasou mais uma vez. A vida é simples. As pessoas é que complicam.

    ResponderExcluir