quarta-feira, 8 de março de 2023

Amor que fica

Era comum, antigamente, a pré-estreia de filmes nas salas de cinema do interior. Algumas personalidades eram convidadas a pagar um ingresso especial para, em primeira mão, assistir aos filmes que entrariam em cartaz nas semanas seguintes.

 

Meu pai insistiu para que minha mãe fosse com ele à pré-estreia de Love Story, que se tornaria um dos maiores clássicos de bilheteria de todos os tempos. O filme narra o drama de um estudante de direito que se apaixona por uma estudante de música. Logo depois de casados – contra a vontade da poderosa família dele –, ela descobre que não consegue engravidar e que sofre de uma doença grave, irreversível.

 

Minha mãe, cansada da faina diária envolvendo nove crias, no escurinho do cinema não viu nem a abertura das cortinas. Acordou com o choro convulsivo de uma moça a seu lado:

– O que foi, filha, tá passando mal?  

– Que tristeza... – soluçava a moça.

 

Esses dramas não eram corriqueiros na União dos Palmares – berço de Jorge de Lima, o príncipe dos poetas, autor de “Poemas Negros” – onde morei no final dos anos 1960, dos 10 aos 12 anos de idade. Mas havia outras tragédias.

 

Lá, por exemplo, não tinha água potável, encanada. Duas vezes por semana, seu Jorge, um simpático cafuzo, parrudo e maneta – mutilou-se, ainda criança, na colheita de cana-de-açúcar – vendia água da cacimba de um sítio que arrendara. Também plantava verduras, raízes e criava galos-de-briga para apostas em rinhas tornadas clandestinas por Jânio Quadros.  

 

Certa vez, perguntei se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde abasteceria suas latas para suprir uma casa próxima da minha. Não só permitiu como me ensinou a segurar firme na cangalha para não cair. 


Montado numa velha burra pelo de rato, chamada Mimosa, eu me sentia em completo êxtase, o próprio Django dos faroestes das matinês do Cine Imperatriz.

 

Fotografia: Afonso Loureiro

Seu Jorge também fornecia água destinada a outros usos domésticos, imprópria para consumo humano. Coletava-a no rio Mundaú, cujas águas serviam a lavadeiras, pescadores e vendedores ambulantes como ele. E me deixava vê-lo trabalhando. 

 

Em pouco tempo, combinei com sitiantes das redondezas, ao lado de outros moleques, um preço justo para banhar cavalos e éguas: o direito de, antes do banho, suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto apenas um laço de corda no focinho. 

 

De tanto levar os bichos pro rio, um dia arrisquei mergulhar mais profundo, voltar à tona e bater braços e pernas até a margem, vencendo o medo de ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos.

 

Se não fosse seu Jorge, aprender a montar e a nadar teriam sido bem mais difíceis para mim.

 

Eu já não era de pescar ou caçar, como alguns amigos de rua. Tinha o hábito perverso de acertar calangos e lagartixas, aprimorando a pontaria com uma peteca (estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque, noutros lugares fora de Alagoas). A ciência explica como crianças podem ser tão ou mais cruéis do que adultos.

 

Desisti do ofício de exterminador de viventes quando, no Beco do Coité, matei uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com ingênua frequência ao chão em busca de comida. 

 

Pitôta, uma cabocla esguia e risonha que ajudava minha mãe, presenciou a crueldade e foi implacável comigo. Chorei litros ao ouvi-la dizer que “a bichinha estava lavando a roupa de Nosso Senhor”. 


Tangido pelo remorso, quebrei gaiolas e alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que havia à margem da estrada que dava pro Mundaú.

 

Pitôta era mãe solteira. Como se dizia, perdeu a inocência com Lamparina (a cara do cantor Ataulfo Alves!), músico e militar do Exército brasileiro que, todo ano, preparava a banda do Ginásio Santa Maria Madalena para o desfile de 16 de setembro, celebrando a emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco. 


Ele era casado. Nunca quis nada além de meia hora nos braços da mulher que me ensinaria, mais tarde, as primeiras noções de compaixão, de respeito ao meio ambiente.

 

Contei a seu Jorge da reprimenda de Pitôta. No quintal lá de casa, das cinco às seis da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água da cisterna para a caixa de distribuição que ficava sobre a laje. “Ela está certa!”, me disse.

 

Perguntei por perguntar se ele conseguiria levantar 30 kg com o braço decepado. Ao perceber que Pitôta já coava o café, fingindo não ouvir nossa conversa, gabou-se: “Levanto até com a cabeça da Mimosa”. 


Na hora, achei que se referia ao pescoço da velha burra pelo de rato. Enquanto isso, Pitôta se contorcia de tanto rir, aparentemente com conhecimento de causa. 


Hoje, penso que cochilei, perdi parte do filme, feito minha mãe na pré-estreia de Love Story, no Cine Imperatriz. Havia algo no ar além dos gaviões fazendo carreira.


Vai ver começou ali, ao pé da Serra da Barriga, berço do Quilombo dos Palmares, outra mimosa história de amor – o amor que fica! – entre duas figuras inesquecíveis para mim.

 

35 comentários:

  1. Aqui, pelas bandas da Bahia, costuma-se dizer que O AMOR QUE FICA É O AMOR DE ITAPARICA! Em Alagoas, não sei se se usa esta expressão.

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    1. Deve ser por isso que o grande João Ubaldo Ribeiro amava a ilha. O encanto de suas crônicas, aliás, residia no poder que ele tinha de descobrir significados profundos nos fatos mais corriqueiros e extrair do povo mais humilde personagens inesquecíveis.

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  2. Pitôta e Seu Jorge, figuras comuns, agora míticas. É assim mesmo, Hayton. Aquilo que foi importante deixa suas marcas permanentes. E é na memória que passam a residir. Basta um lampejo, uma reminiscência qualquer, e aqueles personagens ganham vida de novo. Com clareza cristalina são enxergado. Detalhes, em cores, vêm à mente. Não raro, trazem junto lições de vida, que de tão bem aprendidas, se incorporaram ao nosso caráter. Estas lembranças são mágicas. E merecem ser amplamente compartilhadas. Valeu, então.
    Roberto Rodrigues

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  3. "Jorge de Lima em alagoas nasceu, ouviu tudo dos antigos o que aconteceu, com os escravos das senzalas e o quilombo dos palmares. Foi um bravo que seguiu a tradição, com seus versos, poemas e canções. Boneca de pano e joia rara, calabar e o acendedor de lampiões, zumbi, floriano e padre cícero. Lampião e o pampa é o amor, ô ô ô". Esse foi o samba enredo da Mangueira de 1975. O primeiro que decorei a letra e até hoje sei sem usar o google. Vai ver essa região aí é uma espécie de portal temporal, onde todos cochilamos, acordamos e tentamos entender a história. Que texto da porra! Dedé Dwight

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  4. Uma das profissões do Seu Jorge eu exerci no interior de Pernambuco. Com o dinheiro arrecadado com venda d'água comprei muito pirulito Zorro e muita bola Canarinho, além de picolé.

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  5. As coisas mudaram muito. Antigamente nos dávamos ao luxo de ter amigos assim. Pessoas que gostávamos e que gostavam da gente. Passaram por nossa vida e deixaram lembranças e saudades. Agora quanto ao viés de exterminador, nenhum de nós escapou. Hoje morremos de dó...

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  6. Simplesmente genial a crônica de hoje!
    Cochilei e dei de cara com um texto, pra mim, já antológico!

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  7. A culpa me acompanha até hoje por ter acertado com uma pedrada um lindo pássaro que pousou numa árvore nos fundos lá de casa. O bichinho despencou, como um corpo que cai do Joelma em fogo. O arrependimento veio na hora, dizendo: "O que você fez?". Ah, se eu pudesse voltar no tempo. Aquele bichinho inocente voaria amplo no céu. Linda crônica a de hoje.

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  8. Muito boas lembranças. E para quem viveu coisas parecidas na Terra do Zumbi é mais gratificante ainda.
    Valeu Hayton. Parabéns pelo resgate.

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  9. Flávio P. Magalhães8 de março de 2023 às 10:57

    São reminiscências, encontros e desencontros vividos pelo autor, na realidade ou na imaginação, como se o próprio leitor participasse de tudo, inclusive de uma história de amor carnal, o mais elementar dos relacionamentos. E sem perder de vista que o Brasil, tanto tempo depois, segue sofrendo com as mesmas tragédias de antes, desde a mutilação no trabalho infantil, a falta de água potável em algumas regiões, até a maternidade precoce, como aconteceu com Pitôta, o que enseja, no caso, uma boa reflexão no Dia Internacional da Mulher.

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  10. Prezado Hayton, quero perceber que suas crônicas revelam que o autor se sente mais inspirado quando visita temas românticos e amorosos, pois esses “causos” são arranjados carinhosamente com pedaços do passado em um texto literariamente muito bem cuidado, leve e gostoso de ler.

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    1. Depende do que “temos pro jantar”, meu prezado Artur. Às vezes, gosto da galhofa, da ironia, do sarcasmo, da meia-verdade. Mentiras sinceras também me interessam, como dizia Cazuza.

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  11. Carlos César Alves de Souza8 de março de 2023 às 11:22

    Na década de 70, na cidade de Limoeiro-PÉ, convivi com várias situações parecidas. Ao ler o seu texto viajei no meu passado.

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  12. Sabem que não cochilei? Li todo o texto e amei! Muito interessante essa crônica.
    Todas as pessoas que passam pela nossa vida, de uma forma ou de outra, deixam saudades!!

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    1. O comentário acima, é de Belaniza Maciel. Saiu como como "Anônimo" por engano.

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  13. Muitas vezes, acordar de um bom cochilo, clareia as idéias, faz cintilar a luz que clareia as dúvidas, permitindo que sejam "arquivadas"...
    Acordar repentinamente de um cochilo, permite que sonho interrompido seja vivido...
    Muito bom ler sobre "histórias" que marcam e que se perpetuam em nosso subconsciente...

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  14. Que mágica volta ao passado. Cinema, pré estreia (só faltou trocas de gibis), estilingue...

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  15. Só nos trilhos urbanos do Hayton pra o sujeito dos grandes centros acreditar que, na minha infância, eu era frequentador de cinema no Angical.

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  16. Parabéns por mais um texto publicado. Desta vez buscando inspiração no interior onde a nossa imaginação viaja e revive boas passagens guardadas na memória. Muito bom. Grande abraço.

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  17. Já postei aqui que seu cérebro produz mais energia que uma usina nuclear. Não bastasse isso, a memória é descomunal - aqui até se chama "memória de elefante", nunca entendi bem o porquê, uma com essa capacidade.
    Silas colocou uma "casca de banana" em seu comentário e parece que você caiu - ou fez que não notou pra evitar arranhão em suscetibilidades.
    Em verdade, "amor de Itaparica" foi inventado pra poder se fazer a brincadeira em ambientes que não comportariam a rima original.
    É isso, mais uma vez você nos surpreende e brilha com os "causos" de nosso Nordeste.
    Continue na trilha, mande brasa.

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  18. Em União, amor que fica, na verdade, era amor de p$@a! Vi muito burro parar em frente à minha casa, no caçoa, água de cacimba pra abastecer nossos potes! Em tempo, a luz era fornecida por um gerador enorme que levava energia pra cidade toda, pelo menos das 18:00 às 22:00 h

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  19. Contribuindo para o dicionário palmaríno da época, era peteca mesmo, não estilingue. Nada de bolinha de gude, era ximbra. Nada de garota de programa ou profissional do sexo, era rapariga. Nada de gay ou homossexual, era viado!

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  20. Da sala de cinema até a cacimba de seu Jorge, a crônica da semana do grande Hayton é um filme inteiro. Ao final não me lembrava mais que havia começado a viagem com Love Story. Que riqueza de texto, meu amigo!

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  21. A _mijada_ que tomaste da Pitôta foi tão marcante que vc aprendeu a preservar e conviver com cobras 🐍 e ratazanas 🐀 na vida, né não…?
    kkkkk

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  22. Memória privilegiada, essa capaz de gravar eventos de uma vida inocente vivida em passado distante e trazê-los de forma tão lúdica. Adorei!

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  23. Um dia joguei uma pedra num chorão (árvore do sul) onde tinha um.ninho de passarinho. Vi que algo caiu numa moita de capim alto. Fui lá ver e me deparei com um filhote de bem te vi me olhando como quem me perguntasse: por que vc fez isso? Me deu um remorso que sobe no pé e coquei de volta e nunca mais fiz algo parecido. Meninos faziam isso. Por quê? Hayton, suas crônicas lindas sempre me remetem a algo que vivi ko passado.

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  24. Hayton, como é bom lembrar dessas histórias do interior, com seus personagens simples e cheios de sabedoria. Abração.

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  25. Vivi quando criança muitas partes citadas nesta maravilhosa crônica. Lembro-me dos jumentos carregando água buscada no Rio Itapecuru para vender nas casas. A mesma água onde todos tomavam banho e os animais bebiam, entre outras coisas (melhor nem citar). Também tinha futebol nas margens do rio e muitas brigas também. Excelente texto e ótimas lembranças!

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  26. Hayton, suas crônicas nos leva ao passado, reviver nossa infância. Muito legal mesmo.
    Abraços.

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  27. Agostinho Torres da Rocha Filho11 de março de 2023 às 11:30

    Lembranças inesquecíveis! Testemunha ocular do crime relatado, penso que, se o autor tivesse sido condenado pelo tribunal dos homens, eu também seria arrolado no processo como cúmplice. O fato é que, na tentativa de socorrer a vítima, lembro-me de ter aplicado na cabeça do pobre pássaro uma generosa porção de merthiolate. O resultado é fácil de imaginar... O importante é que os réus foram inocentados pelo STD - Supremo Tribunal Divino.

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  28. Concordo com Riede, essa vai para a lista das antológicas! Belíssimo texto! Com gosto de quero mais! Diniz.

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  29. Parabéns! Sempre Nos presenteando com um excelente texto.

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  30. Hayton, essa é aquele tipo de crônica, linda, que me emociona. Parabéns, mais uma vez, merecido!!

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  31. O homem que você denomina Charlie ainda existe, mesmo em número reduzido. Porém mesmo minoria tem vasta influência sobre esta Terra que Deus nos deu. E mais força impulsiona sua atitude correta que alcança o outro lado do mundo

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  32. Amigo Hayton. Mais uma crônica que nos faz lembrar da infância, que os jovens de hoje nunca vão entender. Abraços

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