junho 11, 2025

Entre o replay e o risco de avançar

Sábado passado, após mais uma rendição ao pecado da gula — desta vez com a feijoada do Empório da Mata, no Jardim Botânico, em Brasília —, despertei com o sol batendo nas canelas e a TV soprando fantasmas do passado. Num desses canais retrô, reprisavam a final da Copa de 1970.


Ilustração: Dedé Dwight



De repente, me vi aos doze anos. Magro, cabelos longos, diante da TV preto-e-branco que reinava na sala de nossa casa da Rua da Vitória, em Maceió. Meu pai, além de três irmãos, completava a torcida organizada — sem bandeirão, mas com fé no “país do futuro”.


Diferentemente de alguns colegas de racha, eu não queria imitar Pelé, Tostão ou Jair. Meu herói usava braçadeira: Carlos Alberto, lateral de alma e perfil de maestro. Era classudo até erguendo a taça Jules Rimet.


Mas a reprise do jogo me prega uma peça. Vejo Gigi Riva, atacante italiano dono de uma canhota poderosa, entortar Clodoaldo e mandar um balaço no ângulo. Era o segundo gol da Itália.


Como assim, segundo gol? Até onde sei, quem desempatou aquele jogo foi nosso Gérson. Depois, Jair e o capitão Carlos Alberto selariam os 4 a 1.


Fiquei mudo. E se o jogo reescrevesse o passado? E se eu estivesse vivendo outra realidade? Um universo paralelo — chance rara de dublar a história com a voz que só hoje, aos trancos e cabelos brancos, aprendi?


Talvez o replay fosse mais que futebol: era meu próprio VAR existencial, revisando lances de minha vida com a lente do arrependimento. O que eu faria diferente, tendo outro gabarito para as mesmas provas?


Aproveitar oportunidades perdidas? Corrigir respostas marcadas por medo, omissão ou preguiça mental? Dizer o que calei, fugir do que me feriu, ou enfrentar o que deixei pra “depois”?


Lembrei de um cartum antigo — acho que de O Pasquim. Um pintor espanhol, salivando pelos olhos diante de um esplêndido jardim, cavalete montado, paleta de cores e pincéis, tela em branco. A legenda dizia: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível.”


Raríssimos são esses momentos em que a vida se oferece como tela virgem, antes do primeiro borrão, da primeira escolha, do primeiro tropeço. Quase sempre já chegamos manchados, com tintas da meninice misturadas às culpas de adulto. Ouvir que “tudo é possível” soa heresia num mundo saturado de interrogações.


Mesmo assim, sempre aparece um otimista com frases surradas: “Viva o presente! O futuro não existe e o passado já passou.” Como se fosse possível matar a sede de ontem com o gole de hoje. Nem os gatos caem nessa — por trauma de banho morno ou medo atávico de pepino.


É difícil viver só o agora sem que a memória nos interrompa com seus trailers emocionais. A gente vive reconstruindo ruínas internas, lixando vergonhas, envernizando mentirinhas pra tornar a própria história suportável — como fazia Suassuna, que exagerava até dar inveja do improvável.


Mas falo aqui da mentira criativa, não da canalha, que engana os outros. Digo daquela que dá curva no tédio, enfeita o banal e, de quebra, ensina mais que muita verdade insossa.


Entre o café da manhã e o jantar, já fui três pessoas diferentes num mesmo dia. Incoerência? Não. Desconfie, aliás, de quem nunca muda de opinião. Sou volúvel convicto — tendo a concordar sempre com a última opinião inteligente que escuto.


Tentaram me convencer de que nasci no “país do futuro”. Mas como esse futuro vive de costas, me resta puxar na unha as raízes do atraso. Porque, se é pra pintar uma nova realidade, que seja com os traços da utopia — ainda que tremidos.


Voltando à TV, já animado com a ideia de uma nova vida, comecei a rascunhar planos com a confiança de quem aposta que o passado pode, sim, ser retocado. Mas aí, sem aviso, o tempo me puxou de volta — não com alarde, mas com o calor da tarde seca, o zumbido distante da cidade e o peso da realidade pousando sobre os ombros.


O jogo, afinal, ainda era o mesmo: 4 a 1 pro Brasil. A história seguiu seu curso. E eu ali, entre um replay de um lance e outro, admitindo que o tempo não volta. Mas às vezes se insinua, de mansinho, e cochicha no nosso ouvido.


Não pra corrigir o que passou, mas pra lembrar que ainda há uma parte da tela em branco. E, com alguma tinta no pincel e coragem nas mãos, talvez reste algo interessante por fazer.

  



 

junho 04, 2025

Domingo em chamas

Passava das oito da noite de um domingo desses em que ainda ruminamos o almoço tardio e o corpo só quer saber de sofá com almofadas. Nisso, disparou o alarme de incêndio do prédio onde finjo viver em paz. A sirene soou como a trombeta do fim dos tempos, e as escadas viraram um formigueiro de idosos em pânico.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Os elevadores, claro, travaram. A debandada rumo ao térreo parecia remake do Titanic: senhoras agarradas a poodles e yorkshires latindo, senhores segurando as bermudas com uma mão e a dignidade com a outra. E eu, admito sem nenhum pudor, fui dos primeiros a chegar na portaria com minha mulher — ela jura ter sido bruxa noutra encarnação, queimada numa fogueira e tudo.


Em poucos minutos, formou-se uma multidão de sub-septuagenários arfantes, unidos pelo susto e separados por décadas de opiniões divergentes. Uns falavam em atentado, outros em sabotagem. Houve até quem cogitasse terrorismo doméstico por causa de uma vaga na garagem.


— Quem faz um troço desses devia ser preso, depois de levar uns tapas! — vociferou um militar reformado, cuspindo indignação e pavor.
— Cheguei a sentir cheiro de fumaça vindo da varanda, e não era cigarro! — garantiu um, ainda com os óculos embaçados.
— Isso não se faz nem com inimigos! — esbravejou a médica do sexto andar, de pijama de seda, pantufas de coelhinho e máscara de colágeno na testa, parecendo uma Lady Gaga de ressaca.
— Duas escadas! Na próxima vez, prefiro morrer queimado — resmungou um senhorzinho com os joelhos avariados, calculando quantos dias de vida a descida lhe custou.


Ninguém lembrou que, semanas antes, o síndico organizara reunião sobre protocolos de incêndio. Manual impresso, cartazes nos elevadores, passo a passo na portaria... Tudo ignorado pela adrenalina e pela memória curta.


Às oito e meia, o porteiro — já rouco de tanto ouvir queixas — alertava que devia ter sido disparo acidental: talvez vapor, maresia, ou o espírito de porco de algum ex-inquilino despejado.


E todos voltaram aos seus apartamentos, arrastando pés e resmungos como zumbis de alpercatas.


Não era nove da noite quando o caos recomeçou. Desta vez, bem mais estridente, como se o prédio tivesse sido possuído pelo vocalista de uma banda de hard rock dos anos 70.


Desta vez, minha vizinha foi a primeira a descer. Esqueceu a dentadura na cabeceira e surgiu de camisola rendada que não deixava dúvidas: uma visão prévia do purgatório pra quem ainda não pecou o suficiente.


De novo, congestionamento humano nas escadas. Gritos, tropeços, justificativas insólitas:
— Eu tenho pressão alta! — bradava um.
— E eu, bursite e refluxo! — rebatia outra.
— Ajudem! Meu amigo tá no banheiro, passando mal, lá em cima! — gritava alguém em traje de academia.
— Vai ver foi o susto com o que tinha pro jantar — ironizou uma fofoqueira, celular em punho, lendo os últimos posts no grupo do condomínio.


Novo alarme falso.


Meia hora depois, o síndico — visivelmente abatido, cabelo desgrenhado, boca seca — tentou improvisar uma reunião de crise. Explicou que o sistema era sensível: vapor, maresia, partículas em suspensão... Tudo podia enganar sensores.


Ainda fez analogias, citou a ABNT, o Código Civil e até o Apocalipse bíblico, tentando convencer as criaturas mais exaltadas de que era melhor prevenir do que ser cozida viva antes do Juízo Final. Enquanto falava, uma mocinha tatuada até nas orelhas, de piercing no nariz, tirava selfies com um extintor. Outra gravava stories com a legenda: #PânicoNoCondô.


E veio a revelação. O verdadeiro motivo não era maresia, nem sabotagem, tampouco fantasma brincalhão.


Na cobertura — em obras por causa de infiltrações nas últimas chuvas —, uma gata havia parido uma ninhada de filhotes sobre duas caixas de papelão, bem ao lado de um detector de fumaça. As câmeras mostraram a heroína se debatendo em meio às contrações, junto ao botão de emergência. O sistema, sensível como coração de mãe, não resistiu à emoção e disparou em duas oportunidades.


Ironia das ironias: enquanto o prédio vivia seu falso apocalipse, novas vidas (sete pra cada filhote) chegavam de mansinho. E entre o miado dos pequenos felinos e o chororô dos humanos, uma verdade se aninhava no coração de todos: às vezes, o maior incêndio é só o susto que a vida nos prega pra lembrar que estamos mornos — nem quentes, nem frios, apenas esperando o próximo alarme tocar.





Entre o replay e o risco de avançar

Sábado passado, após mais uma rendição ao pecado da gula — desta vez com a feijoada do Empório da Mata , no Jardim Botânico, em Brasília —, ...