Sábado passado, após mais uma rendição ao pecado da gula — desta vez com a feijoada do Empório da Mata, no Jardim Botânico, em Brasília —, despertei com o sol batendo nas canelas e a TV soprando fantasmas do passado. Num desses canais retrô, reprisavam a final da Copa de 1970.
Ilustração: Dedé Dwight |
De repente, me vi aos doze anos. Magro, cabelos longos, diante da TV preto-e-branco que reinava na sala de nossa casa da Rua da Vitória, em Maceió. Meu pai, além de três irmãos, completava a torcida organizada — sem bandeirão, mas com fé no “país do futuro”.
Diferentemente de alguns colegas de racha, eu não queria imitar Pelé, Tostão ou Jair. Meu herói usava braçadeira: Carlos Alberto, lateral de alma e perfil de maestro. Era classudo até erguendo a taça Jules Rimet.
Mas a reprise do jogo me prega uma peça. Vejo Gigi Riva, atacante italiano dono de uma canhota poderosa, entortar Clodoaldo e mandar um balaço no ângulo. Era o segundo gol da Itália.
Como assim, segundo gol? Até onde sei, quem desempatou aquele jogo foi nosso Gérson. Depois, Jair e o capitão Carlos Alberto selariam os 4 a 1.
Fiquei mudo. E se o jogo reescrevesse o passado? E se eu estivesse vivendo outra realidade? Um universo paralelo — chance rara de dublar a história com a voz que só hoje, aos trancos e cabelos brancos, aprendi?
Talvez o replay fosse mais que futebol: era meu próprio VAR existencial, revisando lances de minha vida com a lente do arrependimento. O que eu faria diferente, tendo outro gabarito para as mesmas provas?
Aproveitar oportunidades perdidas? Corrigir respostas marcadas por medo, omissão ou preguiça mental? Dizer o que calei, fugir do que me feriu, ou enfrentar o que deixei pra “depois”?
Lembrei de um cartum antigo — acho que de O Pasquim. Um pintor espanhol, salivando pelos olhos diante de um esplêndido jardim, cavalete montado, paleta de cores e pincéis, tela em branco. A legenda dizia: “Gosto muito deste instante onde tudo ainda é possível.”
Raríssimos são esses momentos em que a vida se oferece como tela virgem, antes do primeiro borrão, da primeira escolha, do primeiro tropeço. Quase sempre já chegamos manchados, com tintas da meninice misturadas às culpas de adulto. Ouvir que “tudo é possível” soa heresia num mundo saturado de interrogações.
Mesmo assim, sempre aparece um otimista com frases surradas: “Viva o presente! O futuro não existe e o passado já passou.” Como se fosse possível matar a sede de ontem com o gole de hoje. Nem os gatos caem nessa — por trauma de banho morno ou medo atávico de pepino.
É difícil viver só o agora sem que a memória nos interrompa com seus trailers emocionais. A gente vive reconstruindo ruínas internas, lixando vergonhas, envernizando mentirinhas pra tornar a própria história suportável — como fazia Suassuna, que exagerava até dar inveja do improvável.
Mas falo aqui da mentira criativa, não da canalha, que engana os outros. Digo daquela que dá curva no tédio, enfeita o banal e, de quebra, ensina mais que muita verdade insossa.
Entre o café da manhã e o jantar, já fui três pessoas diferentes num mesmo dia. Incoerência? Não. Desconfie, aliás, de quem nunca muda de opinião. Sou volúvel convicto — tendo a concordar sempre com a última opinião inteligente que escuto.
Tentaram me convencer de que nasci no “país do futuro”. Mas como esse futuro vive de costas, me resta puxar na unha as raízes do atraso. Porque, se é pra pintar uma nova realidade, que seja com os traços da utopia — ainda que tremidos.
Voltando à TV, já animado com a ideia de uma nova vida, comecei a rascunhar planos com a confiança de quem aposta que o passado pode, sim, ser retocado. Mas aí, sem aviso, o tempo me puxou de volta — não com alarde, mas com o calor da tarde seca, o zumbido distante da cidade e o peso da realidade pousando sobre os ombros.
O jogo, afinal, ainda era o mesmo: 4 a 1 pro Brasil. A história seguiu seu curso. E eu ali, entre um replay de um lance e outro, admitindo que o tempo não volta. Mas às vezes se insinua, de mansinho, e cochicha no nosso ouvido.
Não pra corrigir o que passou, mas pra lembrar que ainda há uma parte da tela em branco. E, com alguma tinta no pincel e coragem nas mãos, talvez reste algo interessante por fazer.