setembro 03, 2025

Repetir pra quê?

REPETIR PRA QUÊ?

Hayton Rocha



Um dos direitos sagrados de chatos como eu é implicar com o que, para uns, passa despercebido, mas para outros soa como tortura. No topo da lista está a mania de certos comunicadores de rádio e TV, gurus corporativos e influenciadores digitais de encher nossos ouvidos de tautologias.


Falo daquela repetição preguiçosa de ideias com palavras diferentes, mas de mesmo sentido. Clássicos como “criar do zero uma novidade inédita” e “voltar de novo para casa” já nem causam espanto. O problema é a “criatividade” dessa turma, que parece inesgotável. Volta e meia ouço disparos como “adiar para depois” ou “todos foram unânimes” e ninguém nem mais franze as sobrancelhas. Virou vício de linguagem, desses que se repete por pura economia de pensamento.



Ilustração: Uilson Morais (Umor)


No dia a dia, o repertório se amplia sem pudor: “brinde grátis”, “promoção válida somente durante o período”, “reserva antecipada”, “resultado final”. O aplicativo promete “rota alternativa diferente”, enquanto o síndico do prédio avisa no elevador que “o acesso de entrada estará liberado”. Tudo muito claro, claríssimo.


Para ranzinzas como um velho amigo meu, isso provoca azia e coceira, além de uma vontade quase incontrolável de destilar ironia nas redes sociais — o que prudentemente evita, temendo ampliar o esgoto ali instalado. Ele já pensou até em gravar vídeos indignados, mas desistiu. Prefere sugerir que os culpados passem horas em pé numa reunião corporativa, sem pausa pro cafezinho.


Ali, a proliferação de redundâncias beira o delírio: “expectativas futuras”, “seguir adiante com a continuidade do projeto”, “metas a serem alcançadas”. Tudo servido em palavrório que lembra algodão-doce: bonito, vistoso, mas some na mão se você aperta.


Em seminários de liderança, então, é praga disseminada de controle improvável. “Planejar antecipadamente”, “consenso geral”. O auditório aplaude como se tivesse descoberto o fogo, esquecendo que, na prática, a coisa queima faz tempo. Há até quem proponha um “manual de boas práticas corretas” para proteger a “cultura organizacional da empresa”. Dá vontade de pedir legenda simultânea.


Mas se nos auditórios já se aplaude o óbvio, na vida real o espetáculo não é menor. Prova disso é uma mensagem que meu amigo guardou, recebida de um conhecido — cujo nome não me revelou por caridade, segundo afirma. Começa assim: “Anos atrás, quando ainda era inexperiente, percebi que a vida, cheia de surpresas e imprevistos, ensina lições que são repetitivamente reincidentes”. Isso mesmo: “repetitivamente reincidentes”.


O cara jurava ter aprendido essa “grande verdade” ao enfrentar um dilema: escolher entre duas alternativas incertas e, ainda assim, ficar em dúvida — porque certeza, claro, só depois.


Numa manhã de domingo, resolveu planejar o futuro — seria curioso planejar o passado. Queria um emprego fixo, com salário e estabilidade — como se alguém sonhasse com o contrário. Procurou um vereador que lhe garantiu, com “certeza absoluta”, boas oportunidades. Já no presente, precisava elaborar um plano estratégico bem fundamentado, com argumentos sólidos — porque plano raso e argumento gasoso ninguém respeita mais.


Foi então a um banco. O gerente explicou que era preciso estabelecer um “elo de ligação” entre receitas, prestações e juros. Caso contrário, comprometeria a capacidade de pagamento — quem diria, hein!? Na planilha, recomendou indicadores para acompanhar “a evolução crescente dos resultados”, de preferência em gráficos “visuais”, que são sempre mais fáceis de ver.


Cansado, adiou a “decisão definitiva” para o dia seguinte. Ao acordar, consultou o tio, conhecido por frases de efeito. E ouviu a pérola:
— Meu sobrinho, a vida é um ciclo sem começo nem fim. O mais importante é agir com prudência para aumentar as chances de acerto. Quase tudo na vida se divide em duas metades iguais.


O homem falava como quem recita horóscopo de jornal: cabe em qualquer situação, serve para todo mundo e, no fundo, não diz nada. Ainda assim, o sobrinho saiu convicto: precisava tomar uma decisão definitiva. Voltou ao banco, assinou os papéis e pegou o empréstimo. Restava torcer para que sua ideia inovadora desse certo — e não virasse um fracasso retumbante.


Entre altos e baixos, disse ter aprendido uma grande lição: nada é garantido — exceto a morte e os impostos, como já disseram antes —, mas é preciso lutar com todas as forças, já que nada vem de graça.

Diz meu amigo que pensou em perguntar, mas silenciou: e se der errado? Bem… sobra o aprendizado. E a dívida, claro.


Depois de ouvi-lo, concluí: nem com ansiolítico encararia hoje um guru corporativo oferecendo um “framework inovador de repetição estratégica”, garantindo que iria mudar minha vida.


Porque a tautologia já virou modelo de negócio: quanto mais se repete, mais parece profunda. Mas é assim que a língua murcha, o pensamento se rende — e a gente segue pagando caro por vento embalado como se fosse sabedoria de primeira prateleira. 


34 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA3 de setembro de 2025 às 05:20

    Depois dessa acho acho melhor ficar calado e não dizer nada.

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  2. Hoje você resolveu despir o nosso BB.
    Era lendo e recordando dos discursos (miolos de potes) produzidos pelas grandes “lideranças” do momento. Havia algumas que, para trucidar o cérebro dos que tinham mais de dois neurônios, arrastavam jargões em inglês. Inglês do BB, dizia o tabaréu aqui, puto da vida com a conversa mole dos pseudo doutores em negócios e vendas. 🧐

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  3. WALMIR GOMES FIGUEIREDO3 de setembro de 2025 às 05:41

    Agora vou ficar mais que preocupado com a leitura. Eu já errei bastante. Em alguns casos vou rir.
    Walmir figueiredo

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  4. FRANCISCO OITAVO PINHEIRO FERNANDES3 de setembro de 2025 às 05:56

    O brinde é grátis. O almoço nunca. Se este vem com um brinde, tenha certeza, esse será bem mais caro.

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  5. E todos foram unânimes
    Na meta a ser alcançada
    Expectativas futuras
    Da reserva antecipada
    Adiando pra depois
    O dilema de nós dois
    A rota dessa estrada.

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  6. Rindo D+. Daí resolvi até "descer para baixo", depois "subir para cima" em uma escada com 90 degraus para uma pequena atividade diária. 🤣
    "Conclusão final", sua crônica de hoje é porreta, e ajuda-nos a pensar e evitar as redundancias em nossas escritas.
    A linguagem simples, direta e objetiva, trás uma mensagem de fácil compreensão tornando a comunicação eficiente.
    Em tempo: excelente ilustração do Umor.🎯

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    1. Umor é fabuloso! Sempre consegue traduzir numa ilustração aquilo que tento com 750 palavras.

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    2. Obrigado, amigos, pela generosidade dos elogios!... É um privilégio ilustrar as crônicas do Hayton...

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  7. Eu morro de medo de ficar rabugento assim quando chegar na sua idade. Dedé Dwight

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    1. Não se preocupe! Rabugice é feito chifre e dente: só dói quando nasce.

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  8. Hayton, hoje temos o privilégio de receber um texto afiado contra a pretensão. Você capturou a essência de um problema que, à primeira vista, parece uma simples irritação de puristas da língua, mas que na verdade revela algo muito mais profundo sobre o nosso tempo. A repetição desnecessária e o uso de tautologias se tornaram uma epidemia intelectual. É a prova de que a nossa linguagem, em vez de se aprofundar, está cada vez mais rasa, como um eco vazio.
    Agradou-me muito a forma como você foi além da crítica gramatical. O problema não é só o "brinde grátis" ou a "rota alternativa diferente". O problema é que essa redundância de palavras esconde uma redundância de ideias. As pessoas estão, de fato, dizendo a mesma coisa, uma e outra vez, sem adicionar nenhum novo valor ou perspectiva. A "expectativa futura", o "consenso geral" e o "planejar antecipadamente" não são apenas frases mal construídas; são a confirmação de que o pensamento original e a clareza estão em declínio.
    Evitar as redes sociais para não "ampliar o esgoto", embora pareça um exagero, é um reconhecimento tácito de que, muitas vezes, a melhor resposta à vulgaridade do pensamento é o silêncio e a prudência. No fim das contas, a sua crônica não é só sobre a língua, mas sobre a vida. Ela nos mostra que a busca por frases de efeito e a repetição de obviedades se tornaram um modelo de negócio e um atalho perigoso. E, como você bem coloca, continuamos pagando caro por um vento empacotado como se fosse a sabedoria das antigas. É um lembrete importante de que a verdadeira sabedoria não é a que se repete, mas a que se cala, observa e, quando fala, diz algo de fato novo e significativo.
    É um texto forte, meu amigo. Parabéns.

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  9. Como diria o grande Baiaco, ex-jogador do bahia: Mãe, eu chego aí no domingo, de surpresa. Foi um "fato real", uma "surpresa inesperada".

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  10. Brilhante sua crônica. A leitura dói no ouvido.

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  11. Ótima! Pura realidade, principalmente, no mundo corporativo. E quem nunca escorregou e caiu em uma dessas armadilhas tautológicos atire a primeira pedra. Hahaha!

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  12. Certa vez, indagado sobre a qualidade de congressistas, Ulisses Guimarães teria dito: "Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior...".
    Acredito que a preocupação da crônica só será acentuada ao longo das gerações, com a entrada de facilitadores, tornando a preguiça de pensar em um monstro cada vez maior. Oxalá eu esteja errado!

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  13. Belo texto.

    Me chamou atenção palavra mais que precisa e abrangente IMPOSTO, esta parece ter cido criada por um gênio, pois refere algo que não desejamos, não recebemos o benefício e muito das vezes é punição pecuniária.

    Abraço.

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    1. A grande ironia, João, é chamar de contribuinte – como se fosse algo voluntário – que é obrigado a pagar imposto.

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    2. Somente um mestre das palavras, como você, enxergaria esta ironia, kkk

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  14. Foi ótimo, muito bom mesmo, dar de cara com a tautologia alheia, a dos outros.
    Olhei pra trás e fiz minha retrospectiva: acho e tenho a impressão de que nunca, jamais cometi alguma. Por zelo e precaução vou rever e reanalisar os textos que tenho publicado só pra constatar, de forma irrefutável e incontroversa, que isso não aconteceu comigo!
    Pensei e refleti se seria imprescindível esclarecer e deixar explícito sobre ironias, mas acho e desconfio que não vai ser preciso nem necessário!
    Oportuna e no tempo certo a sua crônica, Hayton!

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    1. Mente quem diz que nunca escorregou. Delira que acha que nunca escorregará. Aqui também o preço da tranquilidade é a eterna vigilância.

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  15. Essa foi demais. E eu, que detesto burrice, fiquei irado ao lembrar de reuniões insípidas. E, o pior, as frases de efeito; meu fígado reagia dorido: "Vamos tracionar as metas porque, no fim do dia" precisa valer a pena. Como se metas semestrais, como tudo na vida, se resolvessem ao final do dia. Ódio.

    Adorei a crônica. Show de obviedades claras, claríssimas (sic). kkkkkk

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  16. Sempre haverá alguém que irá dizer que certas repetições não são desnecessárias, mas reforçam o "eixo" da mensagem para que seja compreendida, especialmente numa época em que as notícias e as informações nos fazem "dançar", pelo ritmo que nos impõem. São tantas "verdades" indecifráveis que o "dicionário de tautologias" em breve irá para o "Guinnes Book brasileiro"...

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  17. "Vivendo e aprendendo", mestre Hayton!
    Quartas-feiras imperdíveis, com certeza.
    E, parafraseando o filósofo do tudo e do nada, "em matéria de principalmente, não há como tudo mais é isso mesmo".
    Infelizmente a língua mãe, a gramática, o léxico, tudo o mais na nossa língua, tem experimentado assaques de toda ordem, principalmente em vista ao seu[dela] assassinato, como sói ocorrer nas conversações em redes sociais, entre boa e significativa parte de seus usuários.
    Ave Gramática!
    Ave Palavra!

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  18. A ilustração de Uilson Morais foi perfeita para as redundâncias que nos acostumamos a ouvir no dia a dia.
    As redundâncias fortalecem os discursos vazios, direcionados para uma platéia de idiotas. Aliás, não só discurso vazio, mas gritar com veemência nos microfones, a exemplo do vigarista da fé Silas Malacheia, provoca um frenesi incontrolável nos seus pares. O oba oba alimenta a alma dos ignorantes e os mantém cativos como escudeiros do narcisismo do ódio como forma de mascarar sua baixa autoestima. Parabéns, Hayton! Como sempre cirúrgico nas suas ideias e colocações.

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    1. Meu amigo Gilton, parceiro de sempre, obrigado pela generosidade do elogio. Abr...

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  19. Gente! Quantas dessas redundâncias cometemos no dia a dia sem darmos conta. Eu particularmente, sei que cometo muitas mas nunca as considerava como tal. Vou começar a me policiar. Obrigada! Você é D+

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  20. Otimo. Nos chama a reflexão, temos que Nos policiar.

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  21. Em muitos contextos, seja em práticas do dia a dia ou em reuniões, repetir uma ideia com palavras diferentes pode até parecer excessivo, mas tem sua função: fixar a mensagem. O problema é que, em tempos de pensamento enfraquecido — quando refletir se torna raro e quase um luxo —, essa repetição ganha ainda mais sentido. Talvez paguemos caro por termos deixado o ato de pensar “descansar” antes da hora. Hayton, sua crônica nos lembra disso com brilho e sensibilidade.

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  22. Apoiado, Hayton! Reproduz o cotidiano da vida. Claro, há variação nas reações, mas o texto expande-se de tal forma que nos traz visão generalizada. Dez!

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  23. Dentre tantas obviedades, acho que "a grande maioria", deve ter se lembrado do Febeapá - Festival de Besteira que Assola o País, do saudoso Stanislaw Ponte Preta.
    O fato é que no meio de tantas coisas estapafúrdias que castigam o idioma, o título da crônica poderia ser Febealpa - Festival de Besteira que Assola a Língua Pátria.
    E tudo isso é isso mesmo e quanto mais principalmente.

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  24. A crônica desta quarta me leva a duas constatações. A primeira: sim, estamos expostos aos muitos tipos de expressões redundantes, seja nos ambientes formais seja nos informais. A segunda: as piores delas são as proferidas por um tipo de pessoa que acredita que aquele discurso a coloca num patamar acima de seus interlocutores.
    Sobre o linguajar do mundo corporativo, lembrei-me de um colega muito “gaiato” que em reuniões importantes ficava ao meu lado e, após os discursos da espécie, fazia a síntese do dito pelo orador: “Tudo isso é isso mesmo e quanto mais principalmente. E uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. E pior seria se pior fosse.”

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